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2ª. Edição – Atualizada e Comentada

Belo Horizonte

2022

© 2012, Manfredo Rosa. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito do autor.

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As referências bibliográficas indicadas no texto serão creditadas no final de cada capítulo.

Os agradecimentos, a bibliografia e a ficha catalográfica serão apresentados no final da divulgação de toda a obra.

É proibida a comercialização, do total ou em parte

patrocinadores


 

Sumário

Capítulo I – Queijo prá que te quero

Capítulo II – Um rincão especial

Capítulo III – O passado “iscardado”

Capítulo IV – Agora eu PVC. AI de mim!

Capítulo V – São Roque x Nova Iorque

Capítulo VI – Soprou um pedação de queijo e dele fez o mineiro

Capítulo VII – [Parte 1]  – Aptidão paisagística: seriemas e veredas.

Capítulo VII – [Parte 2]  – Aptidão paisagística: seriemas e veredas.

Capítulo VIII – Parte 1 – As onze tribos assinaladas

Capítulo VIII –  Parte 2 – As onze tribos assinaladas

Capítulo IX – Parte 1 – Quanto menos queijo, menos cultura

Capítulo IX – Parte 2 – Quanto menos queijo, menos cultura

Capítulo X – A hora do espanto

Capítulo XI – A expectativa de quem espera

Ficha Catalográfica

Agradecimentos

Referências Bibliográficas

 


Capítulo I – Queijo prá que te quero.

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Desenho de pessoa com a mão no queixo

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Por que “Trilhas”?

Findo um demorado matutar entre vários concorrentes acabou vencendo esse título, “Canastra, Araxá e Salitre: trilhas do queijo de leite cru”. Ele foi escolhido porque entrelaça nutrição e lugares, entremeia iguaria e paisagem ou, ainda, com um “tico” de boa vontade do leitor, mistura agronegócio e lazer. Ao arrebanhar tais dimensões tão aparentadas, ele tenta aguçar a curiosidade, predispondo em favor da leitura — tomara — e anuncia um enredo mais amplo, além do mundo do paladar. Se fosse somente este o tema, tomado por si só, talvez se tornasse um tanto maçante, enfadonho, ou de interesse restrito a poucos. Será melhor, esperamos.

As origens destes registros.

Sociologia junto à mesa.

Certos assuntos tratados pela sociologia são figurinhas mais conhecidas, isso lá é verdade. Política, relações de trabalho e cultura transitam pela via preferencial até às estantes dos livros científicos, algumas vezes alcançando relativo sucesso editorial. Família, globalização e religião são espaços do meio social explorados pelos clássicos da literatura especializada, em chamadas regulares dos acadêmicos (e das reportagens jornalísticas domingueiras).

Porém, outras áreas de estudo, “curiosas” ou “estranhas” estão sob seu foco de atuação: à ciência da sociedade interessa discutir como as famílias se divertem, os ambientes de sua predileção, a dieta praticada e de que maneira se alimentam, os seus gostos e agrados, os meios de uso da terra e da destinação dada aos resultados do esforço de cada dia. Todos esses enredos são vizinhos, bem próximos entre si, e neles se manifestam igualmente os modelos de produção, a distribuição e o consumo dos víveres, as escolhas pessoais sobre a utilização do seu tempo discricionário e o modo de vida, na cidade e no campo.

Diversos autores se debruçaram sobre as relações entre o paladar e o modo de ser local investigando vínculos entre as preferências da mesa e os principais traços culturais do grupo social. Existem ressonâncias íntimas entre a alimentação cotidiana, trivial, e as árvores e águas de cada lugar. A cozinha narra histórias. Mais ainda, são inúmeras as conexões ligando o homem (e sua terra) ao seu fogão (e à sua mesa), atando à religião, às leis e aos costumes praticados e ao que se atreve enquanto tenta ganhar a vida.

Gilberto Freyre, no seu interessante livro “Açúcar, uma sociologia do doce”, nos convida para um caminhar através das relações entre a culinária e a sociedade nordestinas.[1] Nas origens de tradicionais quitutes, típicos, o autor analisa o cultivo da cana-de-açúcar e o impacto dessa atividade sobre a região, girando em torno da etnografia e da história no nordeste canavieiro do Brasil. Seleciona, observa e relaciona muitas receitas raras de iguarias locais e coteja vários exemplos de diferentes latitudes brasileiras e mais tantas de Goa. Nesse seu estudo sociológico, ao desdobrar informações sobre o modo de ser da sociedade, Freyre contribui com novas percepções sobre o ato de comer enquanto ocupação mais abrangente.

Lendo e assuntando esse e diversos outros textos sobre a questão, somos levados a entender que, de fato, seja burguês ou proletário (“cada um na sua” visão de mundo), cangaceiro ou beato (na crença pessoal escolhida), candidato ou eleitor (segundo os seus valores), faminto ou bem nutrido, trivial ou sofisticado, não importa a posição relativa, comemos com o corpo inteiro, em intensidades e momentos diferentes. Mais além ainda: nutrimo-nos com todo o nosso ser. Vejamos como isso se dá normalmente (excluídos os que morrem de fome todos os dias, contados aos milhares).

O ato de comer em toda a sua abrangência.

No início, comparece o olfato, desfiando um prólogo de caracteres da iguaria servida, possíveis temperos utilizados ou, em atino mais acurado, notando se está verde, maduro, cru ou cozido. No caso mais evidente, das bebidas, avalia se frutado, encorpado, suave e coisas desse tipo. O “faro” dedilha acordes de acompanhamento dos compassos iniciais da “ouverture” do processo digestivo.

Abrindo as cortinas do primeiro ato, a visão assume a ribalta. Ela aprecia a estética das cores, da aparência e do arranjo, e avalia o conteúdo nutricional, na perspectiva do agrado. Em ação mais intensa, aguça a salivação. Muitas vezes o tato participa, contracenando e completando referências. Os mais interessados, os iniciados, ou refinados, formulam perguntas, traçam ideias, ou tecem conjecturas quanto ao preparo da iguaria, como e onde foram adquiridos os ingredientes, a adequação no seu proveito naquela hora e assim por diante.

O paladar completa o bloco das percepções sensoriais, de prazer ou não, cada uma delas remetendo a um sentimento, a uma experiência. Na percepção das suas quatro componentes principais, doce, azedo, salgado e amargo, o gosto se completa, em sua plenitude, através do encontro com as papilas, alcançando as características físicas: quente, frio, seco, úmido, desmanchando, duro ou al dente. O gosto, sempre culturalmente condicionado, determinado pelo meio, varia com o tempo e o espaço. E é imposto em vários contornos, tornando válida a pergunta: “Esse gosto é de quem?”. A dimensão tempo entra na história: uma guloseima de hoje pode ser rejeitada amanhã.

No ato seguinte o cenário é tomado de sucos e movimentos no velho estômago, onde o papel principal, da digestão, enreda satisfação e nutrição. As contingências de tempo e de lugar envolvendo o desempenho repassam detalhes sobre as condições de vida de cada um.

Mas não cai aí o pano de boca, pondo um fim à encenação. A narrativa não se limita à parte sensorial e do sustento em si, emoldurada na saciedade orgânica, restrita à panfagia animal, no suprimento de todos os aminoácidos imprescindíveis ao metabolismo, na geração de energia, atendendo as necessidades vitais e na inevitável exoneração dos rejeitos. Seria restringir a pouca coisa todas as suas possibilidades, a sua riqueza. Mais atos compõem o enredo. Os principais, talvez.

Simbolicamente, cada um deglute a sua própria história, nas relembranças, individuais, da comunidade e do país. Repetidamente, todos os dias, mesmo sem necessariamente se divisar clara consciência disso.

Quantas vezes o açúcar adoçou e sangrou a história brasileira e a sua civilização? Os navios negreiros foram tocados por essa força motriz, vindos da África, prenhes de corpos para gerar uma riqueza imensa (e que não adubou a nossa terra). Milhares de moendas dos engenhos esmagaram, com a mesma indiferença e insensibilidade, homens e cana, reduzindo tudo a bagaço, lembra Josué de Castro. Ficaram os buracos. O melaço, o cacau e o café botaram abaixo a Mata Atlântica. E a nossa boa cachaça, mineira? Nem tanto portando black tie em requintado bar de hotel executivo, mas principalmente calçando botina mateira sobre chão batido de vendinha de arraial, em cada talagada deita-se goela abaixo um pouco do nosso sertão, dos nossos valores, das nossas festas e alegrias, e do trabalho escravo, suado e sofrido, do pelourinho, da resignação, dos grilhões, da desesperança. Da última beiçada sobra um fundinho para o santo, em contrita reverência, de confirmação na fé católica. A ardência na garganta é o fogo das queimadas na sequidão e da labuta nos campos. Ao final, mesmo um tanto “trolada”, sob o estupor inebriante dos eflúvios, ainda que embaciada, a vista assesta todas as nossas montanhas, as nossas igrejas, a nossa gente.

Para Oliveira Lima, o paladar defende no homem a sua personalidade nacional. De fato, está bem presente e funciona ainda como posto de emissão de RG, com as cores dos seus rios e de suas árvores, formatadas pelos seus espigões. Ele guarda na nossa carteira as fotos dos sinos, das capelas e ladeiras coloniais enevoadas. A aparência, o gosto, o sabor são também símbolos patriarcais de nossas antigas existências, copiando Garret, nesses ícones tão caros afiguram-se “as venerandas imagens de nossos antepassados”.[2] Ingere-se, ainda, o próprio homem enquanto ser, em metáfora antropofágica, autodigestão, “num contato quase litúrgico e profundo da intimidade do eu individual com o eu coletivo, a própria cultura”.

Não guardamos todos, em terna recordação, sabores e olores da infância? Não são poucos os apanhados gustativos registrados na memória no apego ao nosso berço natal. Ficam bem grudados lá, na funcionalidade dos neurônios, o gosto e o cheiro do chão que nos viu crescer. Cajá-manga, café torrado em casa, exalando por quarteirões o inebriante aroma “crespo, quente e alargado”, gabiroba, jatobá, impregnando os dentes de pasta pegajosa, tão gostoso, e o coquinho “catarro”, seu companheiro de travessuras nas arcadas de alvos dentes infantis, quantos havia quantos se devorava, manga espada, o cheiro bom da terra molhada pelas primeiras chuvas e “o Canastra”, ou “o Araxá”, ou “o Salitre” (vamos nomear desta maneira os nossos queijos, personalizados o bastante nessa figura de linguagem, dispensando repetição substantiva), uma trindade de cilindros perfumosos, pitéus fragrantes, recendendo macega com rosário de contas de orvalho nas róridas alvoradas de inverno.

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Esses aromas e gostos, marcantes, com “pepego” prazenteiro, esses atestados, robustos, ficam gravados na nossa mente, carinhosa e indelevelmente, ad aeternum, qual tábuas dos mandamentos. São relevos entalhados relembrando, nitidamente, como vivia cada um à sua época.

Qual elenco de sensações é vivenciado por uma criança de hoje? Quais tatuagens estão sendo ponteadas em sua alma? Certamente diferentes se comparadas aos tempos de antanho. Elementos vivenciados por gerações anteriores possivelmente não estão mais disponíveis, foram substituídos. O tempo muda tudo, inclusive a vida. Cada geração estabelece suas conexões. Quais são os costumes alimentares gerais atualmente praticados? São diferentes? Em quais medidas e determinações?

O caro leitor deve ter dado tratos à bola:

“qual tem sido a minha experiência?”

Pois mais horizontes podem ser divisados.

José Menezes confirma: “A alimentação vai mais além, ela não se configura apenas como uma necessidade biológica, mas, de outro modo, pertence a um complexo sistema simbólico e de representações grupais povoados de significados sociais, políticos, religiosos, sexuais, éticos, estéticos etc. A etiqueta, por exemplo, é a materialização de hábitos, costumes, ritos, rituais, pelos quais as culturas denotam as ideias em torno de sua cozinha e de sua culinária. Essa etiqueta e esses hábitos vão construindo distinções sociais e diversificando relações de poder, condicionadas pelo gosto. Regras e formulações sobre produtos e maneiras de consumir vão sendo arquitetadas e dando eixos fundamentais a sociabilidades, a imposições dietéticas de ordem religiosa, a papéis sexuais, a identidades regionais e étnicas.” Deveras apropriado, saboreia-se a própria vida.

No campo da psicologia, Montanari diz que nossos “comportamentos alimentares são fruto não apenas de valores econômicos, nutricionais, salutares, racionalmente perseguidos, mas também de escolhas (ou de coerções) ligadas ao imaginário e aos símbolos de que somos portadores e, de alguma forma, prisioneiros”.[3] Este mesmo autor lembra que a “mesa é metáfora da vida” e que até a etimologia da palavra convívio, assemelhando o viver junto com o comer junto. Um antigo ditado diz que uma relação efetiva entre duas pessoas somente se dá depois de consumidos três quilos de sal junto à mesa.

Com a “Cozinha do Pensamento”, uma formidável e inteligente aula de Redón, apreciamos deliciosas iguarias em substancial comensalidade filosófica.[4] A cada um de diversos importantes pensadores escolhidos ele associa uma atitude ou uma relação com os manjares, temperando curiosas ligações da nutrição com a filosofia, essa milenar arte de ruminar ideias e regurgitar perguntas:

Hieráclito, recebendo visitas na cozinha, dizia: “Entrai, porque também aqui há deuses”. Para Rousseau, o bom selvagem, a melhor comida está em um almoço rústico, e seu ideal de refeição é descansar. Kant, sinônimo de excêntrico, “comia com fruição e sempre estava feliz à mesa, em atitude amistosa junto aos convidados”. O pavor de Kierkegaard frente à sexualidade influenciou sua dieta. Sócrates, predestinado, assumiu singular relação com as infusões. Nietzsche costuma vir associado à ideia de que “infelizmente o fogão está geralmente a cargo da mulher”. A Ilustração teria sido um arrematado fenômeno gastronômico, nos banquetes, pontos de encontro mais procurados pelos intelectuais oitocentistas, atraídos por preparos supostamente afrodisíacos, tais como, “testículos de touro e cozidos de vergalho de bode”. A Enciclopédia foi gestada no famoso Procope, em Paris, “nas longas conversas entre Diderot e D’Alambert, incitadas por rios de café”. Sartre, à sua vez existencialista, era “ávido por cultura até no que há de mais elementar: a comida”.

Ao final, coroando toda essa riqueza de relações, são nossos convivas os deuses. Faz tempo. Desde os ritos pagãos invocando proteção ao plantio ou festejando os bons resultados das colheitas, nas danças e concupiscências consagradas a Baco, passando pelo sacrifício dos animais sobre a pira enquanto ato culinário (pelo menos na antiga Arcádia), até aos dias atuais, na prática da prece antecedendo as refeições segundo dogma protestante. Valendo-se dessa via de comunicação, a vianda ascende ao Olimpo e nos conecta com a transcendência.

Pois então. Ocorreria desta maneira com o nosso queijo do oeste mineiro? Preenche ele os requisitos necessários aguçando os sentidos e nos saciando? Traz ele consigo mesmo, em cada naco, um pouco da história antiga dos desbravadores? Pode uma fatia nos narrar algo sobre essa gente indômita, trazida em busca de um tempo melhor, e que depois, geração após geração, empreendeu a luta pela sobrevivência em cada longa jornada? Seu sabor nos coloca em contato com a terra, nos faz beber da água cristalina de nossas veredas, evoca nossos campos, nossos cerrados e nossas montanhas? Abriga-nos ele em nossas grutas? Ao longo de dois séculos, o queijo de leite cru da região conseguiu impregnar-se em nossa cultura. Como se deu esse caminhar? Montou ele autossuficiência simbólica, encorpada o tanto animado para ocupar espaços junto aos nossos padrões culturais? Seus aromas rescendem pelos ares e evolam-se junto aos vórtices das asas de nossas aves e pelas “noites de luar que tanto amei”? Seus olores inebriantes, legítimos, sobem do chão generoso e conseguem estimular elevação contrita aos céus?

Esta pesquisa procurou respostas a essas perguntas. Palmeando caminhos paralelos, entrando nos currais, percorrendo ruas e vielas, visitando igrejas e conversando com pessoas ela farejou, aqui e ali, as pegadas desse produto deixadas nas relações e no pensamento dos habitantes da região objeto de estudo (ver mais à frente).

O ensaio se ocupará um pouco do turismo. Justifica-o sua presença marcante, faz tempo, na parte central da região e agora, mais recentemente, se inclui na cesta das atividades socioeconômicas do entorno do santuário natural da Serra da Canastra com todo seu encantamento e apelo ecológicos. Neste intuito, foram entrevistadas pessoas nas cidades, transitando pelos espaços e equipamentos oferecidos para os forasteiros e tentando entender o jeito do uso do lugar, a relação com os moradores e as percepções locais sobre o processo. Queijo e lazer se entrelaçam e por essa razão as análises incorporarão elementos dessa segunda variável importante. Embora relativamente recente, ela impõe vínculos sociais de presença marcante, em franco processo de consolidação, e vai ombreando os demais vetores coorientados aos resultados na componente econômica. Todas as considerações anteriores aplicam-se à interação com as pessoas que para lá acorrem, seja legitimamente, na afeição pela natureza, ou por indução da moda.

Nestes últimos tempos começam a dar as caras, aqui e ali, os efeitos da intervenção agroenergética cabendo, então, tornar-se ela objeto de considerações. Contudo, sem ocupar tantas páginas, comparativamente, dada sua entrada recente na região, de contribuição ainda incipiente.

Bem mais fortemente se dá com as nossas serras, “impávidos colossos”, ali sempre bem presentes, destemidas, referência determinante de vários dados da citada cédula de identidade dos seus filhos. Elas não vagam dispersas pelo mundo, sem endereço. Ao contrário, estão e estiveram sempre lá, pelo menos desde pequenos sabemos, elas moram por ali. Destarte, inevitavelmente, as abordagens incluirão considerações tratando da presença desses maciços e das suas sombras projetadas sobre os premiados habitantes do lugar.

E, é claro, sempre na mão preferencial de todos os capítulos, comparece o primeiro protagonista, notável, o Queijo Minas Artesanal. Ele será objeto de várias apresentações, descrevendo, o modo de fazer (no empenho pessoal do homem do campo, e nas dificuldades), a sua história (muitas histórias), seu papel na cultura e nos negócios locais, a importância nutricional, tudo revestido pelo grande diferencial da sua presença singular, distinguida. De fato, o mundo moderno de colossais movimentações de commodities, aperta custos para ganhar centavos às custas de grandes produções insensíveis do simples toque de botões. Enquanto isto, o nosso produto comparece acenando com o espremer manual, um a um, em trabalho árduo, apaixonado, exibindo habilidade. De um lado, os processados, aditivados, inclusive com ar para aumento de ganhos, do outro a receita simples, caseira, natural, orgânica. Do negócio de “ferramenta”, da antítese da realização pessoal, para a vocação dedicada. “Quem come Snickers está provando, química, industrialização, concessões baseadas no custo e na disponibilidade de matérias-primas, exigências das máquinas e uma cadeia global de abastecimento”[5]. Um “Canastra”, por sua vez, é a síntese das manifestações de reprodução da vida de gerações de produtores rurais. Ao consumo aplainado de “munição de boca”, apressado, insonso, ele se opõe com intimidade, cuidado. A cada mordidela prova-se, ou momento de extremos, ou acolhimento, história e cultura.

Findas estas considerações, fica explicado o título do livro. As serras, algumas delas criando imensos poliedros, os homens e sua terra, seu espaço, sua vida e o alimento, no papel principal o queijo, denso de sabores, valores e história.

Campo com montanhas ao fundo

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Altos da Serra da Canastra: Maravilhas sem fim

Na reta final desta introdução, devem ser destacadas duas características de todo esse trabalho, duas orientações que se procurou perseguir.

Não serão propostas soluções de problemas. Se acontecer, terá sido fora da condição de sociólogo, e debite-se na vontade cidadã de participar dos debates, de ver um Brasil melhor, principalmente menos desigual. As críticas (muitas vezes indignadas e desalentadas) podem conter algum esforço de contribuição científica. Nem ao menos é certo se conseguiremos, a rigor, levantar uma hipótese prévia, a ser demonstrada com os estudos. O objetivo do livro é apontar o nível de presença do queijo, do turismo e da agroenergia em meio às populações objeto da análise. No meio do caminho, ele apresenta comentários, cita referências bibliográficas que ancoram percepções, transcreve textos de escritores conterrâneos, filhos da terra, em histórias de interesse, a maioria delas lavrada em belíssimas linhas, suprindo as insuficiências do autor ao emprestar graça ao texto, e abrindo espaço de descanso em meio à eventual aridez involuntária.

A Web armazena tudo que um simples mortal precisa saber sobre o nosso queijo, suas origens, seu modo peculiar artesanal de fabricação, a legislação, os dados estatísticos, principais produtores, enfim, isso e muito mais. Um leitor ávido dificilmente conseguiria deitar vistas sobre tanta coisa, mesmo concentrando-se exclusivamente nesse esforço durante sua existência. Basta digitar três palavras-chave em um desses conhecidos sites de busca e pronto — abracadabra — apresenta-se na tela uma lista imensa, tal como fila do Sistema Único de Saúde (SUS), alinhando milhares de referências sobre o tema. Pela mesma via é possível relacionar, dezenas de organizações não governamentais (ONGs) se ocupando do assunto, laudas científicas, as cidades e suas características, notícias diversas, fatura do queijo, receitas, enfim, um turbilhão de “entradas e bandeiras”. Igualmente, através de um desses “Abre-te Sésamo”, sem magias, escancaram-se as janelas diante de centenas e centenas de ruas e fazem desfilar todas as indicações de hotéis, pousadas e atrações turísticas de cada lugar. Em vista disso, estando disponível essa imensidão de referências, facilmente materializável no plasma de qualquer dispositivo, torna-se dispensável repeti-las aqui e nem se coadunaria com a proposta do livro. Registraremos somente o encontrado de novo, obtido de primeira mão, tirante algo especial, de relevância para o escopo objeto de estudo. Nesse caso, ela terá sua origem devidamente nomeada.

É justo acrescentar ainda: são inúmeros os esforços desenvolvidos por órgãos do governo, federal e estadual, empresas privadas, instituições de ensino e ONGs em projetos de diversas naturezas aplicados sobre a região e a produção. O que não faltam são textos sobre estudos específicos, atas, anais e fóruns sobre a atuação de movimentos sociais, comissões, comitês, coordenações locais e demais núcleos de articulação. Sendo assim, este livro, mesmo carregando na mochila sua autenticidade, apresenta-se em modesta contribuição diante do importante e competente acervo de documentos, planos e programas existentes, vários deles acadêmicos, compostos sob um referencial teórico da mais alta respeitabilidade.

E agora, junto ao disco de chegada deste primeiro capítulo com cara de introdução, outra vez, insista-se quanto ao caráter de singeleza do livro. Ele explica o vocábulo “trilhas” contido na nomeação, adotado após abandonar uma primeira ideia de copiar Gilberto Freyre intitulando-o de “pegadas sociológicas do queijo de leite cru”. Esta escolha, mais recatada, veste bem, combina melhor, lhe assenta mais apropriadamente. Aquele aplaudido autor dispõe de revoada suficiente e pode escrever uma sociologia. Aqui, melhor a prudência, os numes ensinaram a modéstia. Pisamos aqui e ali em espaços das ciências sociais, sem montar teorias precisas ou empilhar arrazoados acadêmicos. E, caso conseguisse, trombaria com o propósito principal de gerar uma fonte de informações para acesso ao maior número de pessoas interessadas nos temas escolhidos, por essas queridas bandas do nosso oeste mineiro.


Clique aqui para ver o sumário com todos os capítulos disponíveis


Veja o Capítulo II


  1. FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce. 5. ed. São Paulo: Global, 2007.
  2. GARRET, Almeida; BACKES, Marcelo (Org.). Viagem na minha terra. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999.
  3. MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Senac, 2008.
  4. REDÓN, Josep Muñoz. A cozinha do pensamento. São Paulo: Senac, 2008.
  5. DAVIDSON, Adam. A Economia da Paixão. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.

Posted by Brasil 2049

One Comment

  1. Que maravilha!
    Lerei semanalmente os capítulos!

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