Manfredo Rosa,Belo Horizonte,2012

COORDENAÇÃO EDITORIAL
Manfredo Rosa
CAPA
Cláudio Martins
FOTOGRAFIAS DAS PÁGINAS 14, 18, 23, 79, 137 e 251
Acervo do autor
TRATAMENTO DE IMAGENS | DIAGRAMAÇÃO
Sylvia Vartuli
REVISÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA
Célia Maria de Oliveira Soares
1ª edição — abril 2012 | 5.000 exemplares

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Rosa , Manfredo
Araxá , Canastra e Salitre — trilhas do queijo cru
Manfredo Rosa . – – Belo Horizonte : 2012 .
Bibliografia
 ISBN 978-85-913340-1-8

1.Cultura – Minas Gerais 2. Minas Gerais – História 3. Queijarias  – Minas Gerais 4. Queijo Canastra – Histórias  5. Queijos – Minas Gerais  – Histórias 6. Serra da Canastra (MG) – Descrição

I. Título
12-03107 CDD-637.3

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Índices para catálogo sistemático :

  1. Análise socioantropológica da região do queijo Canastra: Minas Gerais: Queijos Artesanais : História 637.3

© 2012, Manfredo Rosa. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito do autor.

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À Maria de Fátima.

Pelo mesmo motivo.
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Agradecimentos

As paisagens, rurais ou urbanas, doadas pela natureza ou aquelas culturalmente montadas, em majestade ou singeleza, todas elas, sempre nos oferecem ricos conteúdos para contemplação. E tanto melhor proveito usufruímos de suas mensagens, mais conseguimos extrair de sua essência se, ali, na oportunidade do encontro, pudermos vê-las também através dos olhos de um pintor, de um arquiteto, de um naturalista, de um historiador, de um geógrafo e, por certo, de conhecedores do lugar. Algo bem próximo disso eu consegui neste meu percurso por várias localidades escolhidas como foco de pesquisa para escrever este livro. Guardarei em muito boa memória as graciosas e inestimáveis atenções de tanta gente — os bons mineiros de todas as paradas. Muito aprendi com eles e, se não bastasse, reavivei em mim o sentimento da generosidade:

João Carlos Leite, pelo valioso apoio dado a este trabalho e emblemática referência de civilidade, tal como deve ser, visionário, exibindo invejável disposição para o trabalho cidadão. Fernando Silva ajudou de perto nas minhas pesquisas na terra do queijo, com simpática e inusitada atenção, sugerindo, colaborando, em participação cuidadosa. Antônio Francisco de Faria, arquivo vivo e Onésio da Costa Faria, da boa e velha guarda rural, narraram fatos importantes. Sandra Arantes mandou o desenho com o brasão da cidade. Todos de São Roque de Minas;

Rosa “Cheirinho”, assim a conhecem e a querem bem todos em Vargem Bonita, em extrema simpatia prestou muitas informações. Airton de Oliveira, bom amigo — quem quiser exercitar serenidade pode procurá-lo em Bambuí. Antônio Resende, o Toninho da padaria junto à Igreja Matriz de Medeiros, boa gente, claro, é sacre coeur, todos que ali chegam são muito bem atendidos. Pedro Domingos, presidente da Câmara Municipal de Medeiros, sempre pronto a participar, socorrer. Alexandre Habib, em Belo Horizonte, difícil de se ver prontidão assim. Bruno Cabral, mesmo de longe, lá da terra das castanholas, colaborou, participou. Tarcísio Morais, da Câmara Municipal de Vargem Bonita acode no bate-pronto, sem burocracia. Geralda Pereira da Silva, patrocinense, escritora, prestou informações e enviou seu livro de memórias. Maria Helena de Rezende Malagoli, presidente da Academia de Letras e coordenadora da Casa da Cultura, também de Patrocínio, indicou caminhos. Darlênia Almeida Guimarães, diretora, e Maria Marlene Rodrigues de Souza, orientadora escolar, ambas da Escola Técnica de Formação Gerencial em Piumhi, não mediram esforços para contribuir. José Soares de Melo, da Cooperativa Piumhiense de Laticínio, em meio a tantos afazeres achou tempo até para me buscar para conversar sobre o tema.

Alexandre Honorato (Araxá), José Baltazar (o Zé Mário) e Valdete (em São Roque), Isabel, João e Ana e Luciano e Helena (em Medeiros), Cláudio e Márcia (em Guariba, Bambuí), Maria Geralda (em Vargem Bonita) e Júlio Cesar (em Lagoa Formosa), artesãos do nosso melhor queijo, todos, tão atenciosos, mestres na arte de receber, de informar, serviram café e biscoito de queijo, deliciosos e, educadamente, ainda evitaram comentar: “Esse camarada não desconfia, um desocupado, vem aqui perguntar coisas, estorvando nossa lida!”

Ana Paula R. M. Branco, Jenniffer Ramos, Kênia Mara Dias, Kira Sehn da Costa e Vilma Cunha, (Araxá), Daniella Mendonça (Medeiros), Daniel Bolina (Bambuí), Xênia Costa (Belo Horizonte), Daniela Silveira (Piumhi), Elias Gabriel Fernandes de Rezende e Matheus Alves de Castro (Carmo do Paranaíba) ajudaram na coordenação das pesquisas e nos levantamentos de campo, de prancheta na mão.

Elmer F. Luiz de Almeida, em Belo Horizonte, Alberto Paciulli, em Medeiros, Maria Aparecida Sena, Odílio Teles Teixeira e Viviani Helena de Melo em Bambuí, Juscelina Pereira Onisto, em Araxá, Admilson C. Silva e Lucélia S. Santos em Rio Paranaíba, todos da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), exemplos de seriedade, competência e dedicação. Fui recebido de forma irretocável em cada uma das unidades dessa prestimosa instituição. Não por sorte, muito antes, inevitavelmente. Todos exercitam a mais feliz e adequada conjunção de profissionalismo e humanismo. Ajuntam, em boa medida, a competência técnica na complexidade da atividade rural e a prática da relação junto às pessoas lá na ponta, segurando o rojão, enfrentando a cansativa labuta diária no campo.

Silvana Cóser, em ajuda certeira, Silvia Dalben, Carla Mesquita e Antônio Benedito Falcão juntaram forças na arrancada do livro para a edição e divulgação.

Tanta gente colaborou, se interessou, participou. Esforcei-me para não incorrer na omissão de nomes. Espero ter conseguido, embora mais pessoas tenham participado depois do envio do livro para a gráfica.

Carinho especial pelos mais chegados, apoiando e lendo pacientemente os escritos, contribuindo com comentários e sugestões. Particularmente a Mariana, em meio a tantos afazeres acompanhou todo o processo final.

Por fim, uma referência destacada à Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), sempre presente. Escreve continuamente um balanço social denso, participando da vida de Araxá e região, em todas as suas dimensões. Tornou possível a materialização deste meu trabalho.

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Este livro está em reedição. Ver capítulos semanais clicando aqui.

Sumário

Capítulo I – Queijo pra que te quero

Capítulo II – Um rincão especial

Capítulo III – O passado “iscardado”

Capítulo IV – Agora eu PVC. Ai de mim!

Capítulo V – São Roque x Nova Iorque

Capítulo VI– Soprou um pedaço de queijo e dele fez o mineiro

Capítulo VII – Aptidão paisagística: seriemas e veredas

Capítulo VIII – As onze tribos assinaladas

Capítulo IX – Quanto menos queijo menos cultura

Capítulo X – A hora do espanto

Capítulo XI – A expectativa de quem espera

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Prefácio

Diz o dito popular que “nada acontece por acaso”. Acredito que essa máxima se tornou mais verdadeira depois de ter conhecido Manfredo Rosa.

Apesar de ter me encontrado pessoalmente com ele apenas uma vez, a afinidade foi tamanha que passamos horas conversando sobre histórias do queijo Canastra. Nessa ocasião, o tempo passou tão rápido que horas de conversas tornaram-se alguns segundos de quão grandes foram as convergências históricas que nos uniam em sonhos comuns.

Veja só que belíssima coincidência: desde quando comecei a inteirar-me sobre o valor do queijo Minas artesanal da Serra da Canastra, em todos os sentidos, sonhava algum dia encontrar um escritor — fosse lá quem fosse — para escrever sobre a saga do queijo Canastra. Mas ao mesmo tempo me perguntava quem poderia se interessar por um assunto tão específico? Eis que surge, de repente, essa pessoa, descendente de queijeiro e sociólogo ainda, que se propôs a vencer este desafio por simplesmente amar uma causa tão familiar e particular à região da Canastra.

Quando relatei a ele um pouco do conhecimento histórico relativo ao surgimento do queijo Canastra até os dias atuais, não imaginei que pudesse surgir dali um trabalho tão auspicioso, o qual tive o prazer de ler em primeira mão. Lágrimas brotaram em meus olhos tamanha emoção! Viajei pelas montanhas, campos e vales da Canastra através de um “túnel do tempo”, em que tudo parecia ser mostrado em sala de cinema, e eu, simplesmente, um espectador privilegiado, apreciando cenas cotidianas em tempo real.

A sensação, o cheiro característico oriundo do interior das casas de produção de queijo permearam meus sentidos durante toda a leitura. Embebido pelo prazer a mim proporcionado através desta belíssima obra, coloquei-me a pensar: quando realmente queremos algo, nos colocamos a trabalhar em prol do bem comum. Por maior que sejam as dificuldades, por mais impossíveis que pareçam ser, os sonhos, como um quebra-cabeça, vão-se ajuntado um a um, formando um belo mosaico. Mas, neste caso, não de uma estrutura física visível a olho nu, mas de uma organização de processos que permitem a viabilização da produção, desde o campo até os mais exigentes consumidores, apaixonados por essa iguaria, tanto do lado gourmet quanto do lado socioeconômico e cultural.

Por isso, meu “velho” amigo Manfredo Rosa, nós, produtores de queijo artesanal, agradecemos sua relevante contribuição pela brilhante literatura que retrata, de maneira simples, a vida cotidiana desses heróis, guardiães dos saberes e fazeres dos queijos Minas artesanais.

Capítulo I – Queijo pra que te quero

As contingências da vida estão sempre envoltas em grande

complexidade. Assim, qualquer interpretação que façamos

da realidade, inevitavelmente, será uma simplificação.

Findo um demorado matutar em derredor de vários concorrentes acabou vencendo esse título, Canastra, Araxá e Salitre: trilhas do queijo de leite cru, dado ao livro. Ele foi escolhido porque emparelha alimento e lugares, entremeia iguaria e paisagem ou, ainda, com um “tico” de boa vontade do leitor mistura agronegócio e lazer. Ao arrebanhar tais dimensões tão aparentadas, ele tenta aguçar a curiosidade, predispondo em favor da leitura — tomara — e também anuncia um enredo mais amplo, além do mundo do paladar, já que se fosse este o tema, tomado por si só, poderia parecer um tanto maçante, enfadonho, ou de interesse restrito a poucos. Não será assim, espero.

Certos assuntos tratados pela sociologia são figurinhas mais conhecidas, isso lá é verdade. Política, relações de trabalho e cultura transitam pela via preferencial até às estantes dos livros científicos, algumas vezes alcançando relativo sucesso editorial. Família, globalização e religião também são espaços do meio social explorados pelos clássicos da literatura especializada, em chamadas regulares dos acadêmicos (e também das reportagens jornalísticas domingueiras).

Porém, outras áreas de estudo, “curiosas” ou “estranhas” estão sob seu foco de atuação: à ciência da sociedade interessa também discutir a forma como as famílias se divertem, os ambientes de sua predileção, a dieta praticada e de que maneira se alimentam, os seus gostos e agrados, os meios de uso da terra e da destinação dada aos resultados do esforço de cada dia. Todos esses enredos são aparentados, muito próximos entre si, e neles se manifestam também os modelos de produção, a distribuição e o consumo dos alimentos, as escolhas pessoais sobre a utilização do seu tempo discricionário e o modo de vida, na cidade e no campo.

Diversos autores já se debruçaram sobre as relações entre o paladar e o modo de ser local investigando vínculos entre as preferências da mesa e os principais traços culturais do grupo social. Existem ressonâncias íntimas entre a alimentação cotidiana, trivial, e as árvores e águas de cada lugar. A cozinha narra histórias. Mais ainda, são inúmeras as conexões ligando o homem (e sua terra) ao seu fogão (e à sua mesa), atando a religião, as leis e os costumes alimentares praticados às formas das quais ele se vale para ganhar a vida.

Gilberto Freyre, no interessante livro “Açúcar, uma sociologia do doce”, nos convida para um caminhar através das relações entre a culinária e a sociedade nordestinas.1

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1 FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce. 5. ed. São Paulo: Global, 2007.

Nas origens de tradicionais quitutes, típicos, o autor analisa o cultivo da cana-de-açúcar e o impacto dessa atividade sobre a região, girando em torno da etnografia e da história no nordeste canavieiro do Brasil. Seleciona, observa e relaciona muitas receitas raras de iguarias locais e, para efeitos de comparação, ajunta exemplos de diferentes latitudes brasileiras e mais tantas de Goa. Nesse seu estudo sociológico, ao desdobrar informações sobre o modo de ser da sociedade, Freyre contribui com novas percepções sobre o ato de comer enquanto ocupação mais ampla, mais abrangente.

Lendo e assuntando esse e diversos outros textos sobre a questão, somos levados a entender que, de fato, seja burguês ou proletário (“cada um na sua” visão de mundo), cangaceiro ou beato (na crença pessoal escolhida), candidato ou eleitor (segundo os seus valores), faminto ou bem alimentado, trivial ou sofisticado, não importa a posição relativa, comemos sempre com o corpo inteiro, em intensidades e momentos diferentes. Mais além ainda: nutrimo-nos com todo o nosso ser. Vejamos como isso se dá normalmente (excluídos os que morrem de fome todos os dias, contados aos milhares).

Para começar, comparece o olfato, desfiando um prólogo de caracteres do alimento servido, possíveis temperos utilizados ou, em atino mais acurado, notando se está verde, maduro, cru ou cozido. No caso mais evidente, das bebidas, avalia se frutado, encorpado, suave e coisas desse tipo. Frequentemente, o “faro” dedilha também acordes de acompanhamento dos compassos iniciais da “overture” do processo digestivo.

Abrindo as cortinas para o primeiro ato, a visão assume a ribalta. Ela aprecia a estética das cores, da aparência e do arranjo, e avalia o conteúdo alimentar, na perspectiva do agrado. Em ação mais intensa, aguça a salivação. Muitas vezes o tato também participa, contracenando e completando informações. Os mais interessados, os iniciados, ou refinados, formulam perguntas, traçam ideias, ou tecem conjecturas quanto ao preparo da iguaria, como e aonde foram adquiridos os ingredientes, a adequação para seu proveito naquela hora e assim por diante.

O paladar completa o bloco das percepções sensoriais, de prazer ou não, cada uma delas remetendo a um sentimento, a uma experiência. Na percepção das suas quatro componentes principais, doce, azedo, salgado e amargo, o gosto se completa, em sua plenitude, através do encontro com as papilas, alcançando também as características físicas: quente, frio, seco, úmido, desmanchando, duro ou al dente. O gosto, sempre culturalmente condicionado, determinado pelo meio, varia com o tempo e o espaço. E também é imposto de várias formas, tornando válida a pergunta: “Esse gosto é de quem?”. Uma guloseima hoje pode ser rejeitada amanhã.

No ato seguinte o cenário se povoa de sucos e movimentos no velho estômago, no qual o papel principal, o da digestão, enreda satisfação e nutrição. As contingências de tempo e de lugar envolvendo o desempenho repassam detalhes sobre as condições de vida de cada um.

Mas não cai aí o pano de boca, pondo um fim à encenação. A narrativa não se limita à parte sensorial e da alimentação em si, compreendida na saciedade orgânica, na panfagia animal, no suprimento de todos os aminoácidos imprescindíveis ao metabolismo, na geração de energia para as necessidades vitais e na inevitável exoneração dos rejeitos. Seria restringir a pouca coisa todas as suas possibilidades, a sua riqueza. Mais atos compõem o enredo. Os principais, talvez.

Come-se também, simbolicamente, a própria história de vida, nas relembranças, individuais, da comunidade e do país. Repetidamente, todos os dias, mesmo sem necessariamente se divisar clara consciência disso.

Quantas vezes o açúcar adoçou e sangrou a história brasileira e a sua civilização? Os navios negreiros foram tocados por essa força motriz, vindos da África, prenhes de corpos para gerar uma riqueza imensa (e que não adubou a nossa terra). Milhares de moendas dos engenhos esmagaram, com a mesma indiferença e insensibilidade, homens e cana, reduzindo tudo a bagaço, lembra Josué de Castro. Ficaram os buracos. O melaço, o cacau e o café botaram abaixo a Mata Atlântica.

E a nossa boa cachaça, mineira? Nem tanto portando black tie em requintado bar de hotel executivo, mas principalmente calçando botina mateira sobre chão batido de vendinha de arraial, em cada talagada deita-se goela abaixo um pouco do nosso sertão, dos nossos valores, das nossas festas e alegrias, e também do trabalho escravo, suado e sofrido, do pelourinho, da resignação, dos grilhões, da desesperança. Da última beiçada sobra um fundinho para o santo, em contrita reverência, de confirmação na fé católica. A ardência na garganta é o fogo das queimadas na sequidão da labuta nos campos. Ao final, mesmo um tanto “trolada”, sob o estupor inebriante dos eflúvios, ainda que embaciada, a vista assesta todas as nossas montanhas, as nossas igrejas, a nossa gente.

Para Oliveira Lima, o paladar defende no homem a sua personalidade nacional. De fato, está bem presente e funciona ainda como posto de identificação para emissão de cédulas de RG, impressas com as cores dos seus rios e de suas árvores, formatadas pelos seus espigões. Ele guarda na nossa carteira as fotos dos sinos, das capelas e ladeiras coloniais enevoadas, na mineiridade autêntica. A aparência, o gosto, o sabor são também símbolos patriarcais de nossas antigas existências, copiando Garret, nesses ícones tão caros afiguram-se “as venerandas imagens de nossos antepassados”.2 Come-se também o próprio homem enquanto ser, em metáfora antropofágica, autodigestão, “num contato quase litúrgico e profundo da intimidade do eu individual com o eu coletivo, a própria cultura”.

Não guardamos todos, em terna recordação, sabores e olores da infância? Muitos apanhados gustativos são registrados na memória no apego ao nosso berço natal. Ficam bem grudados lá, na funcionalidade dos neurônios, o gosto e o cheiro do chão que nos viu crescer. Cajá-manga, café torrado em casa, exalando por quarteirões o inebriante aroma “crespo, quente e alargado”, gabiroba, jatobá, impregnando os dentes de pasta pegajosa, tão gostoso, coquinho catarro, o seu companheiro de travessuras nas arcadas de alvos dentes infantis, difícil é parar de comer, manga espada, o cheiro bom da terra molhada pelas primeiras chuvas e “o Canastra”, ou

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2 GARRET, Almeida; BACKES, Marcelo (Org.). Viagem na minha terra. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999.

“o Araxá”, ou “o Salitre” (assim vamos nomear nossos queijos, identificados o bastante nessa adjetivação, dispensando repetição substantiva), uma trindade de cilindros perfumosos, pitéus fragrantes, recendendo macega emperolada de orvalho nas róridas alvoradas de inverno. Esses aromas e gostos, marcantes, com “pepego” bom, esses registros robustos ficam gravados na nossa mente, carinhosa e indelevelmente, ad aeternum, qual tábuas dos mandamentos. São relevos entalhados relembrando muito bem como vivia cada um à sua época.

Qual elenco de sensações é vivenciado por uma criança de hoje? Quais tatuagens estão sendo ponteadas em sua alma? Certamente diferentes se comparadas aos idos já contados. Elementos vivenciados por gerações anteriores possivelmente não estão mais disponíveis, foram substituídos. O tempo muda tudo, também a vida. Cada geração estabelece suas conexões. Quais são os costumes alimentares gerais atualmente praticados? São diferentes? Em qual medida? Segundo que determinações?

José Menezes confirma: “A alimentação vai mais além, ela não se configura apenas como uma necessidade biológica, mas, de outro modo, pertence a um complexo sistema simbólico e de representações grupais povoados de significados sociais, políticos, religiosos, sexuais, éticos, estéticos, etc. A etiqueta alimentar, por exemplo, é a materialização de hábitos, costumes, ritos, rituais, formas várias nas quais as culturas denotam as ideias em torno de seus alimentos, de sua cozinha e de sua culinária. Essa etiqueta e esses hábitos vão construindo distinções sociais e diversificando relações de poder, condicionadas pelo gosto alimentar. Regras e formulações sobre produtos e formas de consumir vão, assim, sendo arquitetadas e dando eixos fundamentais a sociabilidades, a imposições dietéticas de ordem religiosa, a papéis sexuais, a identidades regionais e étnicas.” Muito apropriado, ingere-se a própria vida.

No campo da psicologia, Montanari diz que nossos “comportamentos alimentares são fruto não apenas de valores econômicos, nutricionais, salutares, racionalmente perseguidos, mas também de escolhas (ou de coerções) ligadas ao imaginário e aos símbolos de que somos portadores e, de alguma forma, prisioneiros”.3 Também o mesmo autor lembra que a “mesa é metáfora da vida” e, também, a etimologia da palavra convívio, identificando o viver junto com o comer junto. Um antigo ditado diz que uma relação efetiva entre duas pessoas somente se dá depois de ingeridos três quilos de sal junto à mesa.

A “Cozinha do Pensamento”, uma formidável e inteligente aula de Redón, traz para nossa apreciação deliciosas iguarias de uma substancial comensalidade filosófica.4 A cada um de diversos importantes pensadores escolhidos ele associa uma atitude ou uma relação com os alimentos, temperando curiosas ligações da nutrição com a filosofia, essa milenar arte de ruminar ideias para regurgitar perguntas. Assim.

Para Rousseau, o bom selvagem, a melhor comida está em um almoço rústico, e seu ideal de refeição é descansar. Kant, sinônimo de excêntrico, “comia com fruição e sempre estava feliz à mesa, em atitude amistosa para com os convidados”.

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3 MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Senac, 2008.

4 REDÓN, Josep Muñoz. A cozinha do pensamento. São Paulo: Senac, 2008.

O pavor de Kierkegaard frente à sexualidade influenciou sua dieta. Sócrates, predestinado, assumiu singular relação com as infusões. Nietzche costuma vir associado à ideia de que “infelizmente a cozinha está geralmente a cargo da mulher”. Hieráclito, recebendo visitas na cozinha, dizia: “Entrai, porque também aqui há deuses”. A Ilustração teria sido um arrematado fenômeno gastronômico, nos banquetes, pontos de encontro mais procurados pelos intelectuais oitocentistas, atraídos por preparos supostamente afrodisíacos, tais como, “testículos de touro e cozidos com vergalho de bode”. Para o autor, a Enciclopédia foi gestada no famoso Procope, em Paris, “nas longas conversas entre Diderot e D’Alambert, incitadas por rios de café”. Sartre, à sua vez existencialista, era “ávido por cultura até no que há de mais elementar: a comida”.

Ao final, coroando toda essa riqueza de relações, são nossos convivas os deuses. Faz tempo. Desde os ritos pagãos invocando proteção ao plantio ou festejando os bons resultados das colheitas, nas danças e concupiscências em homenagem ao deus Bacco, passando pelo sacrifício dos animais sobre a pira enquanto ato culinário, pelo menos na antiga Arcádia, até aos dias atuais, na prática da prece antecedendo as refeições segundo dogma protestante. Valendo-se dessa via de comunicação, o alimento ascende ao Olimpo e nos conecta com a transcendência.

Ocorreria assim também com o nosso bom queijo do oeste mineiro? Preenche ele os requisitos necessários para aguçar os sentidos e também nos saciar? Traz ele consigo, em cada naco, um pouco da história antiga dos desbravadores? Pode uma fatia nos narrar algo sobre essa gente indômita, trazida para cá em busca de um tempo melhor, e que depois, geração após geração, empreendeu a luta pela sobrevivência em cada longa jornada? Seu sabor nos coloca em contato com a terra, nos faz beber da água cristalina de nossas veredas, evoca nossos campos, nossos cerrados e nossas montanhas? Abriga-nos ele em nossas grutas? De que forma, ao longo de dois séculos, o queijo de leite cru da região conseguiu impregnar-se em nossa cultura? Montou ele autossuficiência simbólica, encorpada o tanto bom para ocupar espaços junto aos nossos padrões culturais? Seus aromas rescendem pelos ares e evolam-se junto aos vórtices das asas de nossas aves e pelas “noites de luar que tanto amei”? Seus olores inebriantes, legítimos, sobem do chão generoso e conseguem estimular elevação contrita aos céus?

Este livro procura respostas a essas perguntas. Palmeando caminhos paralelos, entrando nos currais, percorrendo ruas e vielas, visitando igrejas e conversando com pessoas ele vai farejando, aqui e ali, as pegadas desse produto deixadas nas relações e no pensamento dos habitantes da região objeto de estudo (ela será apresentada mais à frente).

O ensaio se ocupará também do turismo. Justifica-o a sua presença marcante, faz tempo, na parte central da região e agora, mais recentemente, se inclui também na cesta das atividades socioeconômicas do entorno do santuário natural da Serra da Canastra com sua graça e apelo ecológicos. Para tanto, entrevistei pessoas nas cidades, transitei pelos espaços e equipamentos oferecidos para os forasteiros e tentei entender a forma como fazem uso do lugar, a relação com os moradores, as percepções locais sobre o processo e coisas assim.

Queijo e lazer se entrelaçam e por essa razão as análises incorporarão elementos dessa segunda variável, importante. Muito embora relativamente recente, ela já impõe vínculos sociais de presença marcante, em franco processo de institucionalização, e já vai ombreando os demais vetores rumo aos resultados na componente econômica. Todas as considerações anteriores valem também para a interação com as pessoas que para lá acorrem, seja legitimamente, na afeição pela natureza, ou por indução da moda.

Já começam a dar as caras, aqui e ali, os efeitos da intervenção agroenergética e por isso ela também será objeto de considerações. Contudo, dada sua entrada recente na região, de contribuição ainda incipiente, ela não ocupará tantas páginas comparado ao que me atreverei no queijo e no turismo.

Existem também, se vê, vários elementos de interdependência autóctone, ou seja, cultivados entre os próprios moradores, filhos do lugar. Gilberto Freyre comenta: os judeus, mesmo flutuando fisicamente no espaço, conseguem manter o seu vínculo de nação através da guarda de valores e símbolos, mesmo após a constituição do seu Estado. Muito mais fortemente se dá com as nossas serras, “impávidos colossos”, ali sempre bem presentes, destemidas, referência determinante de vários dados da carteira de identidade dos seus filhos. Elas não vagam dispersas pelo mundo, sem endereço. Muito ao contrário, estão e estiveram sempre lá, pelo menos desde pequeno sei, elas moram por ali. Assim, pois, inevitavelmente, comporão minhas abordagens as considerações advindas da presença desses maciços e das suas sombras projetadas sobre os premiados habitantes do lugar.

Findas estas considerações, penso ter explicado o título do livro. As serras, algumas delas formando imensos poliedros, os homens e sua terra, seu espaço, sua vida e o alimento, no papel principal o queijo, denso de sabores, valores e história.

Na reta final desta introdução, chamo a atenção para duas outras características deste trabalho.

Não proporei solução para qualquer problema. Se o fizer, será fora da condição de sociólogo, e sim na vontade cidadã de participar dos debates, de ver um Brasil melhor, principalmente menos desigual. Já as críticas (muitas vezes indignadas e desalentadas) podem conter algum esforço de contribuição científica. Nem ao menos sei muito bem se consegui levantar uma hipótese prévia, a rigor, para ser demonstrada com os estudos. O objetivo do livro é identificar o nível de presença do queijo, do turismo e da agroenergia em meio às populações objeto da análise. E só. No meio do caminho, ele apresenta comentários, cita referências bibliográficas para ancorar percepções, transcreve textos de escritores conterrâneos, filhos da terra, em histórias de interesse, a maioria delas lavrada em belíssimas linhas, suprindo assim também as minhas insuficiências ao emprestar graça ao meu texto, e abrindo espaço de descanso em meio à aridez involuntária, mas inevitável.

A Web armazena tudo que um simples mortal precisa saber sobre o nosso queijo, suas origens, seu modo peculiar artesanal de fabricação, a legislação, os dados estatísticos, principais produtores, enfim, isso e muito mais um leitor ávido jamais conseguiria deitar vistas sobre tanta coisa, mesmo se dedicando exclusivamente nesse esforço durante toda a sua existência. Basta digitar três palavras-chave em um desses conhecidos sites de busca e pronto — abracadabra — apresenta-se na tela uma lista imensa, tal como fila do Sistema Único de Saúde (SUS), alinhando milhares de referências sobre o tema. Pela mesma via é possível relacionar dezenas de organizações não governamentais (ONG’s) se ocupando do assunto, laudas científicas, as cidades e suas características, notícias diversas, fatura do queijo, receitas, enfim, um turbilhão de dados e informações. Também através de um desses “Abre-te Sésamo”, sem magias, escancaram-se as janelas para centenas e centenas de ruas e fazem desfilar todas as indicações de hotéis, pousadas e atrações turísticas de cada lugar. Em vista disso, estando disponível toda essa imensidão de referências, facilmente materializável no plasma do computador, não vejo motivo para repeti-las aqui e nem se coadunaria com a proposta do livro. Assim, registrarei somente o encontrado de novo, obtido de primeira mão, tirante alguma informação muito especial, relacionada de forma relevante com o escopo objeto de estudo. Nesse caso, ela terá sua origem devidamente identificada.

É justo acrescentar ainda: são inúmeros os esforços desenvolvidos por órgãos do governo, federal e estadual, empresas privadas, instituições de ensino e ONG’s em projetos de diversas naturezas aplicados sobre a região e a produção. Estão disponíveis muitos textos sobre estudos específicos, atas, anais e fóruns sobre a atuação de movimentos sociais, comissões, comitês, coordenações locais e demais núcleos de articulação. Sendo assim, este livro, mesmo carregando na mochila sua autenticidade, apresenta-se em modesta contribuição diante do importante e competente acervo de documentos, planos e programas existentes, vários deles acadêmicos, compostos sob um referencial teórico da mais alta respeitabilidade.

Próximo agora ao disco de chegada deste primeiro capítulo com cara de introdução — mais uma vez insisto quanto ao caráter de singeleza do livro. Ele explica o vocábulo “trilhas” contido na nomeação do livro, adotado após abandonar uma primeira ideia de copiar Gilberto Freyre intitulando este meu esforço de “pegadas sociológicas do queijo de leite cru”. Esta escolha, mais recatada, veste bem, combina melhor, lhe assenta mais apropriadamente. Aquele aplaudido autor dispõe de revoada suficiente para escrever uma sociologia. Quanto a mim, melhor a prudência — os numes me ensinaram a modéstia. Piso aqui e ali em espaços das ciências sociais, sem montar teorias precisas ou empilhar arrazoados acadêmicos. E se o conseguisse fazer trombaria com o meu propósito inicial de gerar uma fonte de informações para acesso ao maior número de pessoas interessadas no queijo, ou no turismo, ou na agroenergia, ou todos juntos, por essas queridas bandas do nosso oeste mineiro.

Capítulo II – Um rincão especial

Todos cantam sua terra, também eu exaltarei o meu solo natal.

As fronteiras geográficas destas minhas andanças, pesquisas e achados, bem assim também das narrativas, das cismas e das conclusões, contornam uma ampla área junto ao extremo poente mineiro, o seu avantajado narigão. São as “terras vazias”, narradas desde priscas memórias como “Planalto dos Araxás”. É um divortium aquarum, divisor das águas de três importantes bacias hidrográficas — Paranaíba, Grande e São Francisco — e também sala de visitas do imenso “Sertão da Farinha Podre” — assim chamavam todo aquele canto no tempo do Brasil politicamente colônia.

Tal como em todo o Pindorama, viviam na região os índios. Quem eram eles? Duas coisas nós podemos afirmar com absoluta certeza: não foi aqui que se deu a criação de Adão e Eva, e o que mais ocorreu entre os aborígenes foram as lutas entre si, a assimilação de tribos, os acasalamentos, as disputas internas, as dissidências e os êxodos quando escasseava a caça. Documentos dizem que os primeiros a ocupar nosso sertão foram os caiapós, que eram gês (ou jês), irmãos enjeitados dos tupis. Por último, lá pras bandas do Rio Grande, teriam aparecido os araxás, tremembés meio aculturados, já misturados com brancos. Como eram amigos deram nome ao lugar e assim prevaleceu porque tem interessado mais que sejam estes e não aqueles os primeiros moradores. Afinal, o que os homens entendem como real nas suas relações é também real nas suas consequências. E vice-versa.

Na segunda metade do século XVII, chegaram os bandeirantes, lendários nos livros escolares, aventureiros na vida real, atraídos pelo fascínio das pedras preciosas, inebriados pelo sonho “Eldorado”, cobiçosos, querendo enricar da noite para o dia, envoltos na miragem de montanhas opulentas, os altivos paredões erguendo palácios do mais puro cristal, com paredes engastadas de brilhantes, de onde escorrem as linfas sobre leitos dos ribeiros chitados de esmeraldas e rubis, e borbotando pepitas à flor da vasa de cada regato. Aura furiata cupido. Indomável, sôfrega cupidez pelo ouro. Paixão que inflama e cega. Capitaneados por um tal de Lourenço Castanho Taques, exploraram toda a região, seguindo rumo norte até chegar a Piracatu do Príncipe.

Nas horas vagas, esses “destemidos” preavam índios e reservavam as índias “para os exercícios de suas torpezas”. E foram ocupando espaços, juntamente às levas vindas do sul e do leste, de tal forma que, nessas terras férteis junto à Serra da Canastra, pouco a pouco foram se assentando as fazendas, iniciando a criação de gado e a agricultura de subsistência.

Corria o ano de 1750 quando, no tapetão, em Madri, os reis João V e Fernando VI assinaram acordo, “botando preto no branco” os novos limites de suas possessões, cedendo às evidências do avanço de nossas fronteiras, far west adentro, derribando a idealizada linha de Tordesilhas. Bem diziam os coronéis: “Lei é que nem cerca, se é fraca a gente passa por riba e quando é forte a gente negaceia por baixo”.

Nestas plagas, em vários lugares por aí, encontraram abrigo os negros escravos fugidos das redondezas, formando os célebres quilombos, no proveito do solo generoso das cabeceiras do São Francisco, em quimera falansteriana. Os relatos de impiedosa perseguição, captura e morte desses novos habitantes ganharam mais páginas, dobrando enredo nas investidas. A ira se assestava rumo àqueles que se arvoraram em tão estúrdia ideia de se autodeclararem livres. Sobrou foi gente para vir até cá cometer genocídio e alcançar benesses junto ao palácio. Castanho Taques, o moço (filho do pai), Inácio Correia Pamplona e Bartolomeu Bueno do Prado (este mesmo, delator dos inconfidentes) são membros desta seita — insanidade é o seu credo primeiro. “Pegando, batendo, matando e prendendo”, eles faziam de tudo e um pouco mais para agradar, solícitos a toda prova, ansiosos para se anteciparem aos desejos e às necessidades do poder. Sobre esse tal de Pamplona, Waldemar Barbosa teria identificado que “nenhum português teria escrito tão copioso número de cartas ao governador e, em todas elas, nota-se a preocupação do autoelogio”.5 Desde aquele tempo as coisas funcionam assim.

Caiapós e nagôs, todos foram dizimados em prática vil, sem entranhas, nas guerras de extermínio, no trabalho extenuante e nas novas enfermidades até então desconhecidas por eles. Difícil encontrar provas documentais de como tudo isso se passou de fato e, mormente, nomear os autores. É sempre assim, os poderosos dispõem desta capacidade, bem treinada, de aprontar uma embrulhada tal que, noves fora, ninguém sabe, ninguém viu (ou, quando se consegue conhecer os nomes, inventam anistia e os criminosos continuam por ai, impunes). Mal entrincheirada, por muito feliz pode se dar a vítima quando consegue escapar da sentença de culpa e da condenação. Contados e recontados pelos vencedores, episódios e lendas vão-se amalgamando, formando um todo confuso, exibindo muitas contradições e poucas certezas, puxando a sardinha para o lado daqueles sempre com a mão no gatilho. Andando pelas cidades da região não se vê tantos descendentes. Duas coisas fazem sentido: não era espaço explorado o suficiente para ocupação extensiva de mão-de-obra (e, por isso, não puxou comércio de escravos de forma tão presente como nas minas gerais ou no café) e a ação de extermínio, do incineramento, tanto das ocas quanto dos valhacoutos foi muito eficiente, deveras.

A chacina dos gentios durou, pelo menos, dois séculos. Um dos capítulos deste sacrifício de etnia é trazido até nós travestido de lendário incidente, pungente, em romantismo incurável, de paixão impossível e traição, dissolvendo o amor entre Iboapi e Catuíra, filha do cacique Andaia-Aru, esposa prometida a Mau, pelos seus feitos de guerra. Inácio Correia Pamplona, nossa versão abrandada do Hernán Cortés, teria faturado a colaboração do amante tolhido nos seus sonhos, para extinguir sua própria gente (dizem não ter sido daquele a autoria, mas sim de um pau mandado). O fato se deu no ano de 1769, mais um pouco vão precisar até o dia. Pai e a filha escaparam com vida, pois a fantasia reproduz o mundo dos acordos políticos e do jeitinho brasileiro — adoramos acomodação. O traidor, por seu turno, optou pelo autoexílio e pagou pena pelo restante dos seus dias, remoendo tristezas e arrependimento, lá na capital da província, Vila Rica. A Catuíra, então, nem um nem outro dos dois pretendentes. Excelente enredo para ópera.

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5 BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: APM, 1971.

Os negros foram assassinados exemplarmente — ninguém mais se arvore em ideia tão absurda de almejar liberdade. Campo Grande, Tengo Tengo, qual pedras de dominó enfileiradas, esses quilombos, utopias de um destino próprio, foram sucumbindo perante a fria sanha dos colonizadores, sob a chancela do rei de Portugal. A crueldade que desabou sobre eles é nossa vergonha histórica à frente de todas as demais, abraçada agora com a desigualdade social. Trazidos em condições animais nos navios, chegavam aqui em fedentina purulenta e eram leiloados como cavalos, segundo a condição dos dentes, para trabalhar 18 horas por dia, fardo pesado somente interrompido para se curvar sob o açoite de cada dia, exemplar ou corretivo. Isso, dia após dia, durante infindáveis três séculos.

Esse sacrifício dos escravos, essa grande chaga brasileira ainda aberta, editou o maior holocausto do qual se tem notícia na história da humanidade. Em estimativa conservadora, três longas centúrias de ignominioso genocídio sacrificaram mais de 40 milhões de almas aqui pelas Américas, à Cabrália cabendo, mais ou menos, a quarta parte dessa consumação. Como se vê bem, nós, brasileiros, não precisamos importar indignação. Nossa história está repleta de covardias.

Eis aí, assim, um resumo histórico, bem simplificado, dos inícios da ocupação da região pelo “homem branco”. É narrativa comum, presente na formação da maioria das cidades hoje existentes neste sertão. Os índios, em seguida os brancos e depois os negros. Os taubateanos, e depois os emboabas, se impuseram e instalaram os arraiais nos aluviões. Em seguida, apareceram as fazendas e, aos poucos, foram se formando as povoações, montando as vilas, segundo interesses, econômicos na frente, meirinhos e religiosos no encalço, para estabelecer a ordem e instaurar a fé. Aqueles que desejarem obter um retrato detalhado e muito vivo de como se deu esse processo de ocupação devem ler os capítulos 4 e 5 da parte IV do importante livro “O povo brasileiro”, de Darcy Ribeiro.6

Era um rincão com características e atividades próprias e, principalmente, apartado, “bem pra lá do fim do mundo”, um ermo, como costumava dizer minha saudosa mãe, um chão velho sem porteiras, expressão antiga, um tanto desesperançada, um lugar carecido de cercas, na concepção de Guimarães Rosa, um mundão largado de não acabar mais, assim viu Mário Palmério, uma parte além dos limites da ação civilizadora. Formava um canto esquecido, relativamente isolado, muito distante da influência dos comércios maiores, graças à precariedade da malha viária, imposta, talvez, pela presença altiva da Serra da Canastra, nossos Alpes, obstando a passagem das tropas de Aníbal.

No início do século XIX, entre 1816 e 1822, estes descampados receberam a visita do francês Saint-Hilaire, naturalista, atuando em feição “ecopirata”. Os muitos e bons registros deixados por ele confirmam: tudo continuava uma soledade, aqui e acolá ponteada por moradia tosca, habitada por gente simples, rústica, muitos com

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6 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

os dois pés na miséria, de pouca ou nenhuma andança pelos fundamentos da educação, menos ainda da escolaridade. Em compensação, aquele viajante anotou também seu êxtase diante das maravilhas da natureza, das magias da Casca D’Anta, do esplendor do céu azulado vivo, da exuberância do manto estrelado, do silêncio acolhedor, profundo, dos horizontes a perder de vista e da exuberância da flora na incrível variedade de plantas. Encantou-se especialmente com a majestade do buriti. Identifico-me aqui com o referido gaulês. Faz tempo essa palmeira me fascina, talvez na majestade exibida por sobre toda a vereda, ou, quem sabe, ao rememorar gratas imagens da longínqua infância.

Nestas paragens, pelo menos até meados do século XX, as nuvens macias, pintadas à mão, alvas de ofuscar a vista, delineavam contornos bem definidos, formando figuras. O cair de cada uma das gentis tardes de meados de abril, aprazíveis, montavam crepúsculos esplendorosos em ouro e carmim. As noites de junho traziam o frio intenso, cortante e, com ele, em amplo céu, escancarado, milhões de astros cintilantes acotovelavam-se, chegando a causar constrangimento ao se imaginar demais lugares sem nenhum. E tome espigões e muitas “montanhas em cujos picos se erguiam hieráticos, cristas serrilhadas de pedra contra a luminosidade prateada do luar”, narra Autran Dourado.7

A eflorescência do capim-gordura inundava os morros ornamentando toda a terra boa com o esplendor de um trigo violeta, quaresma temporã. Seguiam-se as queimadas, desenhando ideogramas de fogo pelos campos aflitos. Mas quando entrava agosto os ipês floriam, explodindo num amarelo brilhante, vivo, em combinação perfeita de tom e sobre tom sobre o pano de fundo da vegetação ressequida. À beira dos caminhos, os bambuzais não regateavam a sombra generosa, um convite para sentar por ali, no “chão de terra”, chupar laranjas colhidas na hora ou simplesmente para lagartear as tardes mornas, quietando o juízo, “substraído” de tudo, para ver o tempo se arrastar, molenga.

De dezembro a março, era o chove que chove, aquele “tantão”, um aguaceiro ao mesmo tempo paciente e perdulário, sem fazer conta, incessante, aos borbotões, agora acabou, qual nada, mais chuva, despejando de balde, roupa para secar sobre o borralho do fogão à lenha. Aqueles dias se faziam noites e as poderosas centelhas das tempestades elétricas, “furor insano”, em assombroso concerto, rasgavam os céus como frágeis folhas de papel-alumínio. Os trovões ribombavam, acordes de fundo, compondo orquestrado conjunto de graves e agudos, próximos, ferindo os ouvidos ou nos distantes ecos, incessantemente. Para os guris, pávidos, as faíscas colossais pareciam entrar pela casa após vencer as frestas das venezianas de madeira. Na cristaleira da copa, junto ao doce de abóbora com coco, ficava o Canastra, saudável, com sabor e textura próprios, inigualável, produzido artesanalmente nas fazendas localizadas nas franjas da serra. Vinham também da roça o polvilho, o fubá e as farinhas, de milho e de mandioca. Nas casas, assavam-se os biscoitos e os pães de queijo, pêssegos dourados.

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7 Cf. DOURADO, Autran. Sinos da Agonia. 7. ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1991. p. 37.

As comadres ocupavam-se do forno o “di’ intirim”, botando as fofocas em dia, com os olhos mal abertos na vã tentativa de protegê-los dos rolos de fumaça. O café torrado na hora trescalava aroma gostoso e inebriante, sugerindo energia e prazer, por quarteirões inteiros das cidades, naqueles tempos, quando todas elas eram pacatas. Nelas, do alto de qualquer morro lindeiro, somente se avistava a torre da matriz e uns poucos assobradados. As mangueiras e abacateiros compunham “pompons” de muitos matizes, protegendo as demais construções. As folhas das bananeiras, vistosos leques, abanavam o mormaço da tarde.

As portas das casas atestavam a segura despreocupação, destrancadas, assim entrava quem quisesse e era sempre bem-vindo. Os redemoinhos elevavam as densas espirais de pó tentando varrer as ruas, a maioria de terra batida. Pela noitinha, as cadeiras iam para o passeio, “tomar a fresca”, um dedo de prosa com cada uma das pessoas em suas tranquilas caminhadas vespertinas, prenhes de bonomia. Dessa terra pródiga, generosa, escorriam também águas medicinais — linfas generosas, curavam muitos males, aliviavam só de olhar. Também do solo vêm o fosfato e o salitre, em abundância nativa, sugerindo descarado nepotismo, uma natureza em capricho tendencioso privilegiando favores na distribuição de riquezas. As argilas são muitas, muitas excelentes. Em São Roque, Campos Altos, São Gotardo, Carmo e Rio Paranaíba e adjacências, mais uma deslavada predileção na partilha da opulência, com suas terras prontas para produzir uma das melhores rubiáceas do mundo. Um descaramento! Nas matas, moravam capivaras, pacas, tamanduás, antas e onças pintadas, brancas ou pretas, e sobre todos eles voavam gaviões, curiós e mais tantas aves sem conta porque ali também é Catiara, a “terra que tem muitos passarinhos”. As codornas, perdizes e seriemas ciscavam pelos cerradinhos, campos rupestres e “ibiás”, centenas de “caminhos de pedras”. Nas veredas de águas prateadas, corriam os timburés e os lambaris, assustados, fugindo dos predadores, os peixes maiores, piaus e traíras. Atrás destes, a ariranha, “eta” bicho bonito e “brabo”! E muito mosquito, convenhamos. Os pesados carros de bois sulcavam os caminhos levando o milho, sem pressa, não carece, tá sobrando tempo. Naqueles idos, dizia-se, numa daquelas geringonças cabiam 20 cestos e cada cesto podia conter seis quartas de dezoito litros cada, sendo que oitenta litros correspondiam a um alqueire — quem tiver inteligência compreenda e faça as contas. O povo continua bom, simples, trabalhador, de fala macia, cadenciada, musicada.

Antes de soar o último jubileu do segundo milênio cristão, a parte sul dessa região experimentou visível crescimento das construções para acudir a demanda turística, e mais ao norte a agricultura vai ocupando os espaços. No Baú, pelo menos por enquanto, a herança paisagística encontra-se ainda conservada, na razão inversa da densidade populacional. O “paredão” ainda funciona como anteparo, tornando aquilo tudo um espaço isolado — não é passagem para lugar nenhum. Quem atenta para um mapa político de Minas Gerais logo percebe o “vazio” relativo dos campos a leste da Serra da Canastra. O asfalto não atravessa esse recanto. Não há ainda interesse econômico em aproximar São Roque a Tapira ou Medeiros a Pratinha. Talvez, felizmente, o lugar ainda não foi ainda alcançado pela soja. A cana já mostra suas caras para os lados de Bambuí. A agricultura vai transformando o cenário de áreas improdutivas, mas consumindo a riqueza da fauna e da flora. Paciência. Assim seja. Pelo menos os espaços possam continuar bonitos, tomadas as medidas de minimização dos impactos, aliviando o preço a se pagar, em paisagem e bioma, vai aí uma inquietante preocupação. Guimarães Rosa, em “Noites do Sertão”, deleita-se em trinta e sete páginas para descrever os cenários de seu conto.8 A riqueza da diversidade o inspirou: “O luar, pegava-se com a mão. O mato, vozinha mansa, aeiouava”. José Saramago, em crítica certeira, faz referência à monotonia dos extensos milharais híbridos, cada pé da planta uniformizado, perfilado, “todos com a mesma altura, talvez com o mesmo número de folhas nas canoilas e amanhã talvez com a mesma disposição e o mesmo número de maçarocas e cada maçaroca talvez com o mesmo número de bagos”.9 Pronto. Três linhas bastaram para o brilhante escritor descrever o novo cenário, suprimidos os olivais. Estes, também no seu tempo, meteram em calças jeans a vegetação original. Nossa paisagem, local, ainda é imensamente rica, maravilhosa. Sobre ela, um escritor “faixa preta” consumiria centenas e centenas de páginas de rica descrição. O futuro, só quem viver verá. Um pouco à frente vamos conversar um pouco mais sobre isso.

Quem me contou este “assucedido” foi um comunicativo e galante piumhiense. Aconteceu num desses altos isolados, dentre os muitos chapadões esquecidos. Dois amigos viajavam numa caminhonete, em noite de breu, fechada de brumas druídicas, arrepiante. Junto aos sons dos trovões seguiam os clarões dos relâmpagos, aqui e acolá, mal alumiando as silhuetas de túmulos e campas semiabertas de um antigo cemitério abandonado junto à estrada, cenário sugerindo o aparecimento repentino do Freddy Krueger. Cruz credo. Pois o danado do veículo resolveu encrencar justo ali, quando já tinham contado pra mais de légua sem avistar uma choupana sequer. E para frente também não seria muito diferente.

 

— “Compadre, eu espero aqui e você vai tentar buscar socorro”.

— “Eu? Andar sozinho por esse cafundó-do-judas? Mas é neim! Cê tá é maluco!”

— “Tá bom, tá bom, você fica vigiando e eu vou “caçar” recurso”.

— “De jeito maneira, também não! Vamos já parar com essa brincadeira. Quer saber de uma coisa? Num e num fico…”

Nesta região insere-se hoje o espaço previsto na definição oficial do “Circuito da Serra da Canastra”. Formam-no os municípios de Sacramento, Perdizes, Araxá, Ibiá, São Gotardo, Tapiraí, Bambuí, Medeiros, Tapira, São Roque de Minas e São João Batista do Glória. Não consegui levantar qual foi o critério que orientou essa seleção e, assim, ficou parecendo que é cidade demais querendo fazer parte. Araxá, Ibiá e mais ainda Perdizes e São Gotardo estão muito longe. Em compensação, não incluíram Vargem Bonita, bem próxima, encostada no paredão.

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8 ROSA, João Guimarães. Noites do sertão. 11.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1998.

9 SARAMAGO, José. Levantado do chão. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

Já um portal lista seis municípios componentes da região ecoturística: São Roque de Minas, Delfinópolis, Sacramento, Vargem Bonita, São João Batista do Glória e Capitólio. Melhorou, um clube mais restrito, mas a serra está contida apenas nas áreas dos três primeiros. A outra trinca de cidades (Vargem Bonita, São João Batista do Glória e Capitólio) deve estar figurando porque sedia a Serra da Babilônia, irmã siamesa da Canastra, considerada metade do continuum, como de fato é, inclusive no deslumbramento.

Encontra-se em processo de implantação uma primeira iniciativa de certificação na produção do queijo artesanal. É o projeto piloto de Denominação de Origem Controlada (DOC) do Canastra. Iniciativa necessária demais da conta e muito bem-vinda, benfazeja. Pena tenha sido tão longo o tempo contado até se concretizar. Além de garantir junto ao consumidor procedência e qualidade, tal certificação potencializa a abertura de novos mercados, inclusive no exterior. E ainda empresta ares de maior importância, uma titulação com jeito aristocrático, Appelation d’origine Contrôlée, largamente utilizada na França para queijos e vinhos, associando ao rótulo características esperadas e garantidas, segundo critérios previamente estabelecidos.

(Aqui vai o mapa da Região da Serra da Canastra)

Região da Serra da Canastra e as cidades do circuito

Porque nada existe sem embutir contradições ou efeitos colaterais deve-se cuidar, assim, que o acompanhamento não desemboque em foro monopolístico. Nosso queijo de leite cru guarda história, ostenta “pedigree” natural. Aprimore-se e atualize-se sua presença, mas garantindo a melhor diversidade possível. Também não pode ser processo fomentando concentração e expulsando o homem do campo. Que todos os artesãos tenham oportunidade de aderir aos novos tempos. Assim, portar esse diploma não deve significar empecilho à atuação de todos.

Segundo a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), existem pelo menos 30 mil artesãos, mas apenas uma pequena parcela pode exibir a DOC. O tradicional, queira ou não, sofre as influências do tempo, conforme determinam as forças econômicas, mas a referência da procedência não deixa de ser uma forma de fortalecimento do produto, no pressuposto da garantia de um queijo produzido com qualidade na região indicada.

Essa aplicação oficial local do selo DOC Canastra ainda tropeça nos primeiros passos. Ela abrange os municípios de São Roque de Minas, Medeiros, Bambuí, Vargem Bonita e Piumhi, na região a leste do extremo sul oriental da serra. As razões da escolha são ditadas pelas condições edafoclimáticas (solo e clima em linguajar técnico). Se bem fizeram, devem ter lastreado o processo de seleção num conceito qualquer de talento, de polo produtor, de cluster e coisas assim porque englobaram localidades mais distantes do maciço, por exemplo, Piumhi, e excluíram Tapira, mais próxima. As duas últimas cidades dessa lista não fazem parte do Circuito, apesar de Vargem Bonita se achar mais próxima da famosa serra, comparado a Bambuí ou Medeiros.

Por questões práticas, o livro concentrará as buscas e as análises sobre onze municípios: Araxá, Bambuí, Carmo do Paranaíba, Ibiá, Lagoa Formosa, Medeiros, Piumhi, Rio Paranaíba, São Roque de Minas, Tapira e Vargem Bonita. Esse conjunto foi composto para incluir as cinco cidades da DOC de fabricação do Canastra (Bambuí, Medeiros, Piumhi, São Roque de Minas e Vargem Bonita) e mais duas, (Araxá e Tapira), para somar também o mesmo tanto do circuito, reforçando, assim a dimensão turística. São Roque de Minas, Medeiros e Bambuí compõem a intercessão dos dois conjuntos — DOC e circuito —, pertence a ambos, significando dupla possibilidade de exploração econômica e de chamamento turístico. Carmo do Paranaíba, Lagoa Formosa e Rio Paranaíba é a trinca representante do queijo Salitre. Ibiá cumpre a função de fechar uma continuidade de espaço, garantindo um todo geográfico de Piumhi a Lagoa Formosa.

Capítulo III – O passado “iscardado”

A história é a ciência das ciências.

Seu estudo abrange os mais apreçados interesses da humanidade.

São Roque de Minas, reconhecidamente, é o principal centro produtor e irradiador do famoso queijo de leite cru do oeste mineiro, cantado em verso e prosa, desde pelo menos, o final do século XIX. Em honra ao mérito, na reverência a esta saga, destacarei neste capítulo as percepções de diversas pessoas dessa cidade e da sua vizinha, a pequena Medeiros. Um privilégio ouvi-las, em conversas tão proveitosas.

João Carlos Leite, presidente da Cooperativa de Crédito da cidade, a Saromcredi, além da competência técnica, do dinamismo, do transpirar cidadania por todos os poros, também opera milagres na multiplicação do tempo. Transita com desenvoltura em meio aos seus incontáveis afazeres junto à gestão de diversas instituições, desincumbe-se em bom termo e boa hora de diversas ocupações nos seus negócios particulares e na sua atuação profissional, participa das inferências políticas, atende ao rosário de amigos e cuida da família. Sabendo desse meu projeto de levar para o papel uma sociologia sobre o queijo, num pulo prontificou-se em acolher meu pedido para responder a algumas poucas perguntas — coisa rápida, dizia eu, o homem é presidente, imagine se vai ter tempo para receber um ilustre desconhecido. Pois em meio a todas essas tarefas, ainda conseguiu separar duas manhãs inteiras do ensolarado agosto de 2010 para conversar comigo.

Enquanto me acompanhava até à sua sala, esquentando a prosa, alertou no bate- pronto: para se arvorar a escrever, antes de qualquer coisa, é preciso conhecer a história da região, os primórdios da povoação e do queijo, as condições, os meios e o modo previamente existentes condicionando seu aparecimento. Concordei sem pestanejar. A memória dos povos, e que se encontra em toda parte, nos lugares impensáveis, num singelo monjolo, em uma curva de estrada, deve preceder qualquer descrição sobre espaços e momentos — a vida, enfim. José Saramago certa feita afirmou que se não ligasse o seu trabalho à história, não faria coisa alguma.

Quando Joãozinho e eu nos aboletamos em seu escritório, estávamos, assim, muito certos e ajustados quanto ao rumo da conversa. Ao meu lado, minha mulher, primeira mestra em responsabilidade social empresarial do país, exímia digitadora de 140 toques por minutos, chamou para si a responsabilidade pelo registro das notas, colocando-se a postos à frente do notebook.

Do alto do seu conhecimento acadêmico, somado a uma invejável experiência de vida, no profícuo vórtice da interação entre teoria e prática de todos os dias, manhãs, tardes e noites, Joãozinho Leite contou longa história. Sua apresentação, detalhada a seguir, se justifica na importância dos seus relatos. Misturados com percepções minhas, acabaram ocupando todo este capítulo. Através deles, identifiquei os elementos da cultura engendrada por uma competência específica. Ela nos presenteia com esse maravilhoso queijo e confirma a necessidade da sua preservação como patrimônio. Vejamos.

As raízes profundas das quais brotaria, mais tarde, a produção do queijo talvez sejam encontradas no distante correr do século XVIII. O bicho-homem, segundo seu feitio, segue a mesma regra de qualquer ser vivo com capacidade de locomoção. Se o lugar não está bom, partimos em demanda de novos pastos. Se no Brasil de hoje a tendência se repete na ocupação de novos espaços em Mato Grosso, Rondônia e Amazonas, há quase trezentos anos, as “novas fronteiras agrícolas” tocavam as barrancas do Rio Grande.

Cumpria-se, naquela época, o tempo de vida do processo de extração de ouro. A exaustão das reservas junto ao Itacolomi, pouco a pouco provocou desemprego, gerando incontável excedente de mão-de-obra. A Serra Pelada daqueles idos, depois de entregar muito ouro para a Europa, a “prostituta com o cálice na mão”, mas muito ouro mesmo, tanto assim ela jamais tinha visto em toda sua existência, após embarcar para o Velho Mundo uma profusão em barras e lingotes do vil metal, depois de ter irradiado prosperidade por vários lugares, até mesmo o Rio Grande do Sul, fazendo de Minas, segundo Darcy Ribeiro, “o nó que atou o Brasil e fez dele uma coisa só”, Ouro Preto viu minguar suas opulentas reservas exauridas em atividade predatória, sedenta.10 Ao mesmo tempo, foi esvaziando sua população de duzentos mil habitantes. É a regra. A maioria dos aventureiros atraídos por esse tipo de atividade não consegue criar raízes junto aos barrancos auríferos. Acabou? “Simbora”. As diásporas são próprias dos desenraizados. Ouro não serve para comer. Há registros de gente comendo raízes e bichos imundos com as mãos cheias de ouro. Nesse compasso, novos espaços de ocupação pelas muitas sesmarias seriam a tábua de salvação natural para milhares de pessoas sobre cujas cabeças pairava o fantasma da fome.

O êxodo provocado pelas grupiaras esgotadas encorpou-se, nos ecos das entradas e bandeiras que ainda retumbavam por ali, na atração frutificada pela doação das sesmarias, com os fugidos de dívidas perante a Coroa e, ainda, com os tropeiros transitando pelos caminhos rumo a Goiás, tudo desembocando no adensamento populacional dessas bandas. Essas circunstâncias fomentaram o movimento de interiorização e o consequente aumento da demanda por alimentos na região.

Vejam a vida em toda a sua complexidade. No início do século XIX, deu-se um fato socioeconômico de monta: a chegada das cortes reinóis ao Rio de Janeiro: 1808. Nas carteiras das salas de aula da instrução primária, aprendemos o quanto esse evento representou para a colônia. Abertura dos portos às nações “amigas” (a rigor somente uma, transferindo o monopólio da Casa de Bragança para a coroa Hanover, inglesa), permissão de instalação de manufaturas (começaram a poluir aqui o indesejável por lá, pagando mão-de-obra mais barata), elevação à categoria de Reino Unido, fortalecimento do Estado, com mais ministros e funcionários, e criação de várias instituições, educacionais, artísticas, recreacionais e financeiras.

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10 Cf. RIBEIRO, 2006.

Veio até uma missão francesa para transformar o panorama das belas artes e do ensino. Bonjour, monsieur — uma glória! —, sem contar o “oba oba”, o frisson incutido na mente dos colonos pelo charme da presença da aristocracia — nós, brasileiros, nos lambuzamos todos diante desses fascínios! Existem ganhos não muito citados: talvez tenham acontecido também nessa época importantes movimentos, ainda que embrionários, rumo à libertação da mulher.

Os historiadores não estão muito certos quanto ao tamanho da comitiva real desembarcada no Rio. Segundo uma estimativa modesta, quatro mil pessoas teriam apeado, de súbito, no paço de uma cidade contando apenas umas trinta mil almas. Mas essa sobrecarga populacional deve ser somada várias vezes em termos de demanda de gêneros, bens e serviços. Pelo menos no julgamento de Padre Vieira, para quem são necessários muitos peixes pequenos para alimentar cada peixe de porte. Assim, é como se a cidade, da noite para o dia, visse dobrar as bocas para alimentar. Por certo que sim. Enquanto a maioria dos moradores era composta de escravos, habituados a costumes salutares, dieta frugalíssima e muito exercício físico, os invasores, ao contrário, eram todos gordinhos, epulários ventripotentes, acostumados a comer e a beber do bom e do melhor, o dia inteiro, o dolce far niente já praticado desde aqueles tempos, ou antes.

Podemos até imaginar todo aquele pessoal de sangue azul e seus assessores morando, vestindo e comendo do bom e do melhor, uma “trenhera” não disponível por aqui e calcular o quanto de carne, vinho, queijo, cerveja, manteiga e talvez até água os nativos precisaram multiplicar para abastecer aquela nobreza “itinerante”.

E para não restringir a história aos heróis, façamos um exercício mental. Vamos centrar o pensamento no corre-corre das massas, a lufa-lufa de cada dia no entra e sai das casas, no empreendedorismo tupiniquim, na manufatura de quintal, no jeitinho, nos aproveitadores, na improvisação, na criatividade, gente como a gente percebendo oportunidade de amealhar uns vinténs. O alfaiate recebe mais encomendas. O sapateiro não dá conta dos pedidos. O açougueiro passa a levantar mais cedo. Um padeiro de maior tino pode ter mandado vir receitas especiais, visando um nicho privilegiado, com novo nome na porta, escrito em azul, moderno: boulangerie. Alguém lá, atento, “bolou” o primeiro delivery nacional: de leite. E tome o frenesi do vai-e-vem pelas ruas apinhadas de gente, entregadores, carregadores, vendedores ambulantes, todo mundo ocupado, quanto progresso, “a gente miúda: os pajens e negros trombeteiros e gaiteiros, com suas dragonas, alamares, passamanes, fivelas e botões dourados”, do Autran, também “dourado”. “Vejo escravos arcados ao peso das pedras… carros de bois gemem lamuriantes, transportando material… vejo muita madeira de lei… montes de areia… milhares de adobes. Os alicerces são erguidos vagarosamente. Os negros, peças d’Angola, cansados trabalham sob as ordens de um feitor”, assim descreve Maria Teixeira a sua percepção da vida como ela era, montada a cada jornada.11 E continua sendo.

Bem ou mal, vão ganhando seu dinheirinho e, macaquitos, consomem mais, também anseiam por uma mesa mais sortida, comer queijo e tomar vinho.

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11 TEIXEIRA, Maria Santos. A cantiga do carro. Uberaba: Vitória, 1985.

D. João VI canalizou recursos incentivando várias iniciativas, certamente da elite da época. O Estado, como sempre, acode a minoria, é da sua natureza. Amém, tal qual no mundo todo, faz tempo. Não pode, Chomsky alerta, é “proteção estatal e subsídio público para os ricos e disciplina de mercado para os pobres”. Privatização dos lucros e socialização dos prejuízos. Mecanismos de defesa para os fortes e desarmamento para o povão. Proteção institucional para os poderosos e peso da lei para os fracos. Dentre as diversas providências, Sua Majestade teria definido uma política de apoio à manufatura de queijos nas Minas Gerais. Não é fácil encontrar provas documentais a respeito, porém, tudo indica a existência dessa força indutora abraçada à ideia de se produzir aqui algo semelhante ao fornecido pela Serra da Estrela ou Ilha dos Açores. Faz sentido. Apresente-se agora na mesa tropical algo do paladar metropolitano.

Não se sabe dizer muito bem qual apoio específico para a atividade teria autorizado o filho de Dona Maria I, a Rainha Louca. Mas, se bem assessorado, o Príncipe Regente deve ter mirado dois objetivos com uma só penada: suprir o aumento de demanda de munição de boca no Rio de Janeiro e acudir o excesso de mão-de-obra, de olho na agropecuária (queijo, leite, carne, manteiga, café, energia, tração animal) como alternativa de solução, no proveito das terras disponíveis, propícias, na região além de São João Del Rey. E mais impostos, é claro.

O meu ilustre entrevistado narra um pouco sobre seus antepassados. Eram portugueses. Estabeleceram-se originalmente na terra do Tancredo — João Leite chegou a identificar na cidade do Porto sepulcros da família. Lembra também de certidões antigas, inadvertidamente incineradas por familiar, sem botar tino na importância histórica dos documentos, mais precisamente, na região de Carrancas. Fica lá no Campo das Vertentes, no olho do furacão emboaba, palco de conflitos sociais derivados da decadência das atividades minerárias. É a história do homem. Faz correr sangue na disputa alucinada pelos ricos aluviões, seguem-se os duelos de capa e espada no pressuposto da defesa da honra em meio à desvairada euforia provocada pelos seixinhos flamejantes, ao final, a luta porque se acabou. Ouro, sangue, escravidão, cobiça e crimes. Auri sacra fames — sagrada fome de ouro.

Jean Baptiste Debret esteve no Brasil entre 1816 e 1831. Segundo ele, a província de Minas Gerais abastecia o Rio de Janeiro de queijo. Saint-Hilaire passou também por São João Del Rey aproximadamente na mesma época e descreve a presença da atividade.12 Desceu para Piumhi, e dali seguiu para a região da Capela de São Roque, Araxá e Arraial do Patrocínio, mas não cita ter visto esse produto nessa parte do sertão. Registra é a saída de toucinho com destino a São João Del Rey, mas nada diz sobre o queijo, levando a crer, assim, não ter se desenvolvido ainda o bastante por ali naquele tempo para chamar a atenção. Viu muito pouco gado. Os animais se embrenhavam pelas matas, assim lhe disseram, podendo significar coleta irregular do leite, não devia ser diária. Encontrou foi muito borrachudo, isso sim, além de mandioca, milho, águas medicinais, criação de carneiros e até fabricação de tecidos grosseiros de lã, nas fazendas. Anotou dados sobre a atividade pecuária em toda essa região e comentou que o “comércio de gado era o único ramo de exportação que a região poderia explorar”. Acrescente-se a baixa qualidade zootécnica do plantel, com pequena produtividade, as dificuldades para obter sal, caro, e para abater animais (tatu, capivara) para conseguir o coalho.

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12 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do Rio São Francisco. Belo Horizonte: Itatiaia, 2004.

Pohl, naturalista austríaco, também passou por aqui entre 1818 e 1821 e anotou que pouco se fabricava de queijo. A chegada da fidalguia pode ter fomentado esse pendor, mesmo sendo no rebote. Aquele naturalista registrou também a ocorrência de queimada de pastos por toda Minas Gerais, sem estranhar, porque era expediente utilizado também na Europa. A Revista do Arquivo Público Mineiro, volumes VIII e IX, editadas respectivamente em 1903 e 1904, descrevendo Araxá, cita vários itens da produção local (café, algodão, cana, milho, feijão, mandioca e outras algumas até desconhecidas atualmente, tais como baunilha, cevada e goma araxina) e não inclui queijo. Fabrício Ferreira, no seu bonito e importante livro “Ávila, 300 anos de história e sabores”, narra as atividades da fazenda do Morro Alto, produzindo desde, pelo menos, a segunda metade do século XIX. Não inclui a fatura do queijo. Se existia, devia ser ocupação acessória.

Esses relatos parecem fechar na ideia segundo a qual, aqui na nossa região, se existia fatura de queijo em 1820 era embrionária, em gestação, engatinhava, de forma acanhada. É o mais provável. Economia incipiente, fraco interesse em intercâmbio, baixa densidade populacional e relevo acidentado dificultando as trocas são ingredientes suficientes para ensejar no máximo, aqui e acolá, a sua fabricação como alternativa de armazenamento do eventual excedente de leite.

Segundo o Dr. José Pessoa, falando agora sobre a parte mais a leste da região, fora da Canastra, para muitos esse tipo de ocupação tinha o gosto amargo da ressaca.13 Na falta de mineração, vamos criar gado e plantar, sobrevivência com um pé na miséria, casas de pau a pique, chão batido, barbeiros, bócio, analfabetismo, impaludismo, bócio (de novo), desnutrição, nasciam vinte filhos morria mais da metade, mais bócio. Religião? Muito distante, somente em festas ocasionais. A realidade da vida os obrigava a trocar “o idealismo aristotélico pelo materialismo histórico”. Nas relações de trabalho e de barganha, na ausência do dinheiro contante, prevaleciam a corveia e o escambo. Nem o Leviatã vinha até aqui para extorquir — seria empreitada inútil. Ao contrário de Vila Rica, aqui a oeste do Indaiá a presença do Estado e a formação de classe média urbana ainda teria que aguardar condições para poder acontecer.

João Castanho Dias, entre muitos outros autores, nos traz uma curiosidade: em 1703, referido ao ouro, moeda corrente em Minas, um queijo podia custar de 3 a 4 oitavas (cerca de 12,5 g de ouro), atingindo, assim, a absurda cifra de 900 reais aos preços de hoje.14 Esse dado é importante. Por ele, podemos bem imaginar quanto essa escassez do produto (como, de sorte, dos alimentos em geral), deve ter incentivado a sua feitura. Decorridos quase cem anos, mais registros o informam, o preço era de 1 tostão (5 vinténs, ou seja, 100 reais da época), aproximadamente só metade de um grama, portanto, 35 reais de hoje. Como se vê, o ouro escasseou e o queijo deve ter aumentado a sua produção. De lá para cá veio caindo mais ainda o preço e hoje paga-se 20 reais por uma peça maturada, “do bom”, ou seja, 1/4 de um grama. Seu valor teria encolhido a um cinquenta avos do que era, a um quinquagéssimo daquele de antanho, referido ao precioso metal, passadas três centenas de anos, umas doze gerações. Era muito caro e está barato.

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13 PESSOA, José. Cruzes na estrada: outro capítulo na história de São Gotardo. São Gotardo: J. Pessoa, 2002.

14 DIAS, João C. Uma longa e deliciosa viagem. São Paulo: Barleus, 2010.

Voltando ao Baú, Saint-Hilaire parou em três pontos por aqui. Na Serrinha, em São Roque e em Vargem Bonita. Depois rumou para Araxá. Contando somente com a sumária descrição do viajante, não se consegue localizar precisamente esses locais.

Ainda existe a capela em homenagem a São Roque. Quem sabe por ali o cientista se hospedou? Na Serrinha, assentava-se a família Simões Cruvinel, na primeira metade do século XIX. Dificultoso obter maiores informações sobre a vida, os acontecidos nesse período. Seria necessário esmiuçar, sem muita esperança, pelos poucos arquivos disponíveis. No mais, por enquanto, conta-se somente com poucos relatos de antigos moradores. Segundo eles, grupos familiares foram se mudando para as bandas da nascente do São Francisco, nosso rio de cinco estrelas, encorpando a atividade econômica na pecuária de corte. Vacas, bois e bezerros, garrote gordo para serviço mais requisitado nos jantares palacianos.

Paracatu do Príncipe era centro mais avançado em 1818 e formava mercado bastante para pretextar a fabricação de queijo, conforme relata Johann Emanuel Pohl na sua passagem por aquelas lonjuras. Mas lá na região centro-sul, já nos idos de 1820, os habitantes consolidaram sua posição de importante centro comercial. Outros viajantes ilustres registraram a sua riqueza, seu progresso e sua beleza, na diversidade da produção econômica e nos equipamentos urbanos. O queijo, combinando aroma e sabor suaves e picantes, era o principal produto de exportação. Em chacota alusiva, o nome da cidade era trocado para São João dos Queijos. No Serro, documentos atestam sua presença pelo menos desde 1772. Nesse tempo, uma portaria mandava furar para ver se não estavam servindo como instrumento de tráfico de ouro e diamantes. Sendo assim, além do “Santo do Pau Oco”, transitava também o “Queijo de Massa Oca”, ambos avoengos de certa peça íntima do vestuário masculino, muito em voga hoje em dia.

Já em 1845, escritos deixados pelo pesquisador francês Saint-Adolphe indicam ocupação dos derivados do leite na região de São Roque e já exportando para cidades vizinhas e Rio de Janeiro. E durante a segunda metade do século XIX, aí sim, o aumento da população e a melhoria das estradas explicavam o crescimento da produção. O queijo passou a se fazer mais presente, impondo aos poucos sua majestade.

João Leite narra mais. Segundo tradição oral, três irmãos vieram de Portugal para a região do Rio das Mortes (ainda existem descendentes por lá). Depois chegaram até Piumhi e Capitólio. Paulinho Leite da Cunha, seu tataravô, um dos portugueses saídos de Carrancas, estabeleceu-se nos costados da Canastra. Era a região da Buraca, ou Buracas (os relatos não a citam, o nome teria vindo mais tarde), no município de São Roque, em alusão à “bruaca”, nome genérico de uma espécie de mala de couro utilizada para transportar queijo. Uma vez assentado, Paulinho trouxe seus sete irmãos. Compraram terras e foram os principais iniciadores da produção de leite e do queijo. Por força do segundo sobrenome, Leite, os Farias e os Cunhas eram predestinados. Sua descendência teria deixado um manuscrito sobre a história, mas, muito infelizmente, ele se perdeu.

Um galho da árvore, brotado em 1840, aos dezoito anos teria amargado o desgosto de mal-sucedido pleito da mão de uma prima. Foi preterido pela promessa em favor de outro parente — os nossos romancistas regionais poderiam aproveitar esse mote e vestir com linda roupagem essa história do queijo em São Roque. Desiludido, ainda remoendo vãs esperanças, apronta sua montaria e se autoexila na região de Capitólio onde moravam familiares. Por ali, acompanhava um parente que comprava gado nas fazendas dos flancos da serra. Vagando por esses novos caminhos, perdido nos devaneios dos desenganos, acaba indo ao encontro de seu destino pela notícia que lhe chega sobre uma moça casadoira, muito bonita e rica, da família Bento Cruvinel. Esse relato encontra alinhamentos com Saint-Hilaire descrevendo sobre um membro dessa família por aqui, talvez, na única fazenda existente. De uma tia, Dona Manuela, João ouviu contar sobre um pioneiro, de nome Antonio Simões Cruvinel, único produtor de gado da região, senhor de escravo. Há descendentes vivendo hoje por ali.

As manchas arbóreas, manifestações de transição da Mata Atlântica, nos capões dos talvegues, nos tufos ciliares junto aos cursos d’água eram propícias à aplicação do sistema chamado de coivara, derrubada de árvores e uso do fogo para completar a limpeza do terreno, ao mesmo tempo conseguindo o desejável e indispensável aumento de concentração de materiais orgânicos. Seguia-se a plantação de gêneros alimentícios, durante dois ou quatro anos, conforme a fertilidade do solo. Na medida do enfraquecimento de nutrientes, utilizava-se a área para o plantio do capim- gordura, importado da África, transformando-a em pastagem de cultura. Apesar da perda do vigor, ainda assim a terra era melhor, comparada ao campo nativo. E forrada com um capim de melhor espécie garantia mais produção de leite por teta e durante um período maior do ano. Ampliou-se também o tempo de cria, contribuindo para a maior duração da safra do leite e, como consequência, engordando o calendário anual da produção. O gado era da estirpe caracu, mistura genética de raças europeias, tão bem adaptada às condições brasileiras ao longo de quase três séculos. Tudo segundo um processo paulatino, desenvolvendo-se lentamente.

A mesma tia Manuela, confirmava a história, acrescentando. Muitos da região teriam aprendido a fazer queijo com os Leites. As queimadas e o uso do sal aumentavam a produção. Foram aprendendo coisas, muito leite provocava diarreia nos bezerros e passaram a utilizar o excesso para fazer o queijo. Na família Simões Cruvinel, a produção servia somente para consumo próprio, não se comercializava. Era elaborado com escrupuloso esmero, tudo iscardado em água quente, passado nas formas de bananeira, com muito carinho, a bancada limpinha, ambiente muito bem higienizado. As peças nasciam no tempo das águas e eram guardadas até a entressafra. Assim, a produção, embora pequena, era estocada durante até seis meses. Essas informações guardam importância relevante. Configuravam-se os primórdios da produção de queijo bem cuidada, seguida de processo de maturação no armazenamento de longo período. Obediente a esses ensinamentos, seguindo esses preceitos, o queijo criou fama.

O estoque, por certo, abriu novos espaços para a lida culinária. O soro, subproduto, era dado para os porcos, gerando alimento (toucinho para São João e dali para o Rio de Janeiro) e energia (banha para as lamparinas).

Tudo isso faz muito sentido, guarda coerência. As narrativas do nosso prestativo João Leite traduzem bem como deve ter sido a história. E foi seguindo assim a vida, mudando, a passo lento. Instauradas essas novas condições, pouco a pouco entram em cena novos atores: os mascates. Percorriam a região, seguindo as pegadas de Saint-Hilaire. “Seu” Salim, labuta incansável, difícil, passava por aqui, levando esse nome genérico do imigrante, entre muitos dessa boa gente da saga beduína vinda para o Brasil. Barganhava trecos. Vamos montar ficção, não seja atrevimento meu tentar romancear a história.

A matula da viagem de volta devia incluir o queijo. No “conversa vai, conversa vem” dos escambos devem ter provado lá em Campinas, em São Paulo, e adoraram. “Seu” Salim, traz mais… tão gostoso… “Seu” Salim, “me dá cá” uns três queijos, vou tentar “botaire” na minha venda… Do lado de cá, no sertão: “Seu” Salim, quando vier, quero um “surtido de pano mode fazê vestido pras menina-moça…” e aquele pó de arroz… tão cheiroso … “Seu” Salim, a Mariazinha, “… de graça, eu mais ela…”, queria um vidro do “Parfum de La Nation”, tá na moda. E o “Seu” Salim, trazia e levava, buscava e entregava. E pensava. Dona Tiburcinha, esposa do “coronel” Durvalino, encomendou deshabillé francês, coisa chic, e também chapéus, da Rua do Ouvidor, sim senhor. Ora, na roda dos mexericos, Dona Prisciliana já deve estar sabendo, não vai aceitar desfeita e, certamente, também comprará. E iam também óculos, sabonetes, pentes, e até luvas, além dos indefectíveis específicos, miraculosos, matavam piolhos, traziam de volta a pessoa amada, (o Elixir do Amor), devolviam vigor ao septuagenário e até curavam o mal de fígado, muito comum na época. Tudo na base da confiança, naquele tempo o comércio envolvia nomes a zelar, os “reclames” nas revistas e os almanaques traziam o nome, desenho e abaixo a foto do proprietário, mostrava a cara. A responsabilidade, familiar, era gravada na razão social: “Caixeta, Filhos, Sobrinho, e um menino qui nóis cria”.

Um desses viajantes era o Sr. Habib, Turco por alcunha — assim eram chamados, alternativamente, muitos sírios ou libaneses por aqui aportados. João Leite conheceu três dos seus filhos. A casa da família na cidade foi demolida recentemente. Um filho dele, o Sr. Tufy, dentista, narrava muitas histórias:

Era grande a aceitação do queijo, saboroso, e sua venda imediata, não somente em Sacramento, mas também em outras cidades. Toda a produção de queijos dos fazendeiros era vendida para meu pai e para meu tio Jorge, que os estocavam em seus depósitos, até completar uma carga para dois carros de bois. Quando isto acontecia, o fundo do carro era forrado e os queijos eram separados e protegidos por palhas de milho, fileira por fileira, camada por camada, até onde o sabiam os experientes trabalhadores, entendidos. Cheios os dois carros de bois, toda a carga era protegida por um toldo de couro, tudo muito bem acomodado. A etapa seguinte cuidava da formação das oito ou dez juntas de bois para compor o grupo que transportaria a preciosa carga. Os mais fortes formavam a junta do cabeçalho e a do pé do cabeçalho. Eles eram dóceis e bem adestrados. Os que compunham a junta da guia e do pé da guia eram mais mansos ainda. Carvão, graxa e querosene eram colocados no encaixe do eixo com o cocão para um bom deslizamento e também fazer o carro cantar. Depois que as provisões de alimentos, água, utensílios para cozinhar, remédios de emergência e outras coisas mais estavam preparados e acomodados no carro, com os bois já cangados e em disposição, podia ter início a longa jornada. Quatro ou cinco carreiros para cada carro, já experientes. Com o sinal da cruz pediam a proteção divina e iniciavam a longa e difícil viagem.

Levantando a vara, o carreiro da frente deu o sinal, os outros seguiam o gesto. As juntas de bois se enfileiram e simultaneamente ao movimento do carro o seu canto choroso se projetava no ar. Lentamente, a caravana vencia as distâncias pelas estradas mal conservadas. O canto choroso acalmava os animais, diziam. As etapas, por dia, não podiam ser longas para não levar os bois à exaustão. Havia as paradas nos riachos para que homens e animais pudessem beber água. Às sombras, quando apareciam, paravam para o descanso. A caminhada do primeiro dia terminou no meio da tarde, junto a um riacho. Chegou a hora do descanso para os animais e para aquela gente. As cangas foram retiradas e os bois soltos para pastarem e descansarem. Após um bom banho no riacho, os carreiros improvisaram um fogão de pedras e prepararam a sua refeição: arroz, carne seca, linguiça e toucinho foram para as panelas. Como complemento, rapadura e, obviamente, queijo. Bem alimentados com aquela comida tão gostosa, com os bois por perto e calmos, toscas barracas foram montadas para o descanso. Um revezamento de um carreiro de guarda era necessário por causa de histórias de roubos e assaltos a essas caravanas. De manhã, depois de todos os preparativos para juntar os bois, cangá-los, e com os carreiros bem alimentados começava a segunda etapa da viagem.

Os donos da mercadoria não seguiam junto. Três ou quatro dias depois da partida dos carros, meu pai e meu tio Jorge, e mais dois empregados de confiança, a cavalo, começavam a lenta e longa cavalgada ao encontro dos carros que já seguiam bem adiante. Uma vez no alto do Chapadão da Zagaia, as estradas não tinham fortes subidas e a viagem se tornava mais fácil e exigia menos esforço dos bois, na extensa região plana.

Na quarta etapa, os donos e seus dois empregados encontravam a caravana, com os carros cantando, chapadão afora. O agrupamento de todos deu mais confiança, segurança e alento a toda a comitiva.

De etapa em etapa, de caminhada em caminhada, vagarosa e pacientemente, chegaram a Sacramento, terminando assim a longa viagem de ida, muito bem transcorrida, quando todos, em agradecimento a Deus, fizeram o sinal da cruz.

A aceitação e a procura pelos queijos foram grandes e bons negócios fizeram os seus donos, tornando-os felizes com o êxito da venda e o cumprimento de parte da missão. Meu pai e meu tio foram fazer as compras das mercadorias para as suas lojas lá da roça. O sangue árabe certamente se fez presente nas negociações e nas pechinchas. Muita coisa foi comprada, principalmente aquelas que o povo tanto precisava: querosene, sal, os remédios mais urgentes, ferragens, utensílios para cozinha, tecidos mais usados, fumo de rolo goiano, pinga, vinho, conhaque, linhas, botões, agulhas e tantas e tantas miudezas… e até brinquedos.

Os carros ficaram completamente lotados e a viagem de volta começou, com todos repetindo o sinal da cruz, pedindo proteção divina. A caravana se deslocava vagarosamente no referido chapadão, em meio às campinas verdejantes e floridas. O tempo estava lindo e contribuía para a tranquilidade e sucesso. No alto do chapadão as noites são frias, mas o agasalho não faltou aos carreiros e as capas “Ideal” aos cavaleiros. Nas paradas para pernoite e o descanso, já à noite, à volta da fogueira para se aquecerem, uma lua cheia e milhões de estrelas cintilantes serviam de teto para acalmar aqueles corpos cansados. Depois dormiam sob as toscas barracas, sempre protegidos pela guarda de um carreiro.

A viagem de volta sempre parece mais rápida e sua extensão mais curta, talvez porque a gente está se aproximando do lar e das pessoas amadas. A realização da boa venda e das boas compras iria levar satisfação àqueles que ficaram e aguardavam ansiosos o regresso de seus entes queridos.”

Narrativa tão bonita, bem conduzida, em riqueza de detalhes, nos coloca junto ao grupo, nas curvas e subidas de tão cansativa ocupação, em cada arranchada sob o céu povoado de astros, uma aventura simples, de gente também simples. Uma justa homenagem a esses homens reais, protagonistas reais, da história real, de fato, como ela é, sem heróis. Sigamos em frente.

Quando o Sr. Habib por aqui viveu já existiam também mascates vendendo também panos, sapatos e medicamentos, mas valendo-se de nova rota já formada no final do século XIX para São Paulo, passando por Casa Branca.

Nesse quadrante, um movimento importante reforçou a interiorização e a demanda por alimentos: o boom da cultura cafeeira, demandando reforço de mão-de-obra, atraindo levas e mais levas de novos coadjuvantes, galgando os mesmos obstáculos, enfrentando muita precariedade de condições de vida, inclusive quanto às estradas. Imigrantes de várias partes do mundo acorreram para cá, principalmente italianos.

E toda essa gente chegando precisava comer. Na outra mão, muito dinheiro gerado pela riqueza do café incentivava investimentos. A agropecuária sempre foi uma tentação empresarial, o bem-sucedido capitão de empresas nela se aventura. Nesse andamento, aos poucos a fama do queijo foi-se consolidando e a demanda, naturalmente, aumentando também. Ao mesmo tempo, o dinheiro do café financiou nossa industrialização em vários setores, inclusive laticínios, adotando técnicas modernas.

O crescimento do negócio começou a convocar especialização, fazendo aparecer os primeiros mercadores dedicados exclusivamente ao queijo, transportando cada vez maiores cargas nos lombos de burros e carros de bois. Esse novo ator agora se chamava queijeiro. Veremos no próximo capítulo.

Pois bem, eis aí, este seria o modelo bem mais plausível representativo do aparecimento e do desenvolvimento do famoso Canastra, desde os seus primórdios no final do século XVIII até o início do século XX. No resumo: aumento populacional, exaustão das minas, desemprego, D. João VI no Brasil, “as armas e os barões assinalados”, demandando comida, interesse no sabor do queijo português (Açores e Serra da Estrela). A busca por novas fronteiras, a ocupação paulatina do lugar, as queimadas,15 o chão de cinzas se transforma em bom capim logo após a primeira chuva, vaca boa, produção cuidadosa do queijo, iscardado. Mascates iniciando a comercialização, aceitação crescente pela fama. Maturação por seis meses para degustar durante a seca. Boom do café, mais imigrantes, mais gente para alimentar. Queijeiros consolidando tanto a demanda quanto a produção e a distribuição — um puxando o outro.

Trata-se de uma pincelada rápida, uma simplificação, mas dentro dos limites do sertão talvez seja representativa. O cabresto e as rédeas da dependência do Brasil, passados das mãos de Portugal para a Inglaterra, obrigaram a abertura dos portos e assumir de vez o liberalismo, eufemismo para “baixar mais as calças”, compondo uma determinação poderosa, um gigante abraçando toda a nossa existência. Continuamos impedidos de adquirir e avançar em conhecimento tecnológico, de produzir aqui todo o necessário e, mais ainda, fomos obstados na capacidade de montar os nossos projetos e decidir qual o nosso destino. Assim limitados, manietados, nosso crescimento econômico se deu bem aquém das suas possibilidades, do nosso trabalho, daquilo que poderia e deveria ser. E do que conseguimos produzir, boa parte não fica aqui. O queijo, incluído nessa lógica adversa, não foi valorizado. Tivesse sido prestigiado, caído na graça do gosto estrangeiro, vendido por preço melhor, garantido no nome, à feição metropolitana, nosso artesão, o pequeno pecuarista, teria progredido e conseguido montar conforto e sossego, para si e para sua família e hoje veríamos as “casas” famosas, de grife, seculares, um Château Cruvinel ou um Veuve Faria — com acentuação tônica no “a” final —, estocando peças de alto valor.

Os verbos estão conjugados no passado sugerindo tempo presente porque a história continua. Vejamos.

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15 A vida em si mesma, não importa a espécie, fauna e flora, causa impactos ambientais, a queimada também. Poluir o ambiente, matar plantas e animais, incinerar ovos, secar nascentes, somar forças ao aquecimento global e colocar em risco moradias, criação e pessoas são os principais efeitos danosos, a maioria de natureza temporária e intensidade pequena ou média. Favorecer a germinação de sementes, animar o rebrote da cobertura e limpar e compor o solo com sais minerais são contados como benéficos, também temporários e de pequena intensidade. Obedecendo a manejo controlado, sob supervisão de órgão competente, as parcelas negativas podem ser minimizadas. Curiosidade: a ema, dizem, vigilante junto ao ninho, ao ver aproximar um desses perigos inflamados, corre até à água mais próxima, empapa suas penas e volta para aspergir em toda a volta do ninho onde estão os ovos, salvando-os.

Capítulo IV – Agora eu PVC. Ai de mim!

Os que morreram nunca partiram.

Eles habitam as sombras que se adensam,

movimentam as distantes frondes farfalhantes,

perambulam por toda a parte “tolhendo os vivos”.

O meu apego pessoal ao nosso queijo é antigo. Envolve nutrição, cultura e afeição, transcende os interesses desta pretensa contribuição sociológica. Apareceu e cresceu junto comigo, no berço e interando com o nosso jeito de ser. Desde a mais tenra infância desfrutei da sua presença bonita e benfazeja, cheiroso, ingrediente de receitas, polvilhado sobre a macarronada domingueira, ou em parceria com os doces caseiros de vários tipos.

Tais laços, muito bem atados, ensejaram vantagens no desenvolvimento deste meu livro e, também, convidando à autossocioanálise citada por Bourdieu, da própria relação histórica com o objeto de estudo, no meu próprio “percurso social”, exigindo atenção redobrada para exorcizar os inevitáveis vieses.

Esses vínculos remontam ao meu avô paterno, Ernesto Rosa, etrusco. No início de suas muitas atividades empresariais, foi queijeiro, lá pelos idos de 1925. Escoava o produto de forma aparentemente inviável, de se admirar mesmo como conseguia fazer chegar a bom termo aquela peripécia toda! Ei-la, contada aqui e ali pelos descendentes e um pouquinho conforme narrado por ele mesmo.

(Retrato do Sr. Ernesto Rosa com os queijos)

Ernesto Rosa, queijeiro — 1927 (Foto: acervo da família)

“Arné” percorria a cavalo a região, principalmente a Buraca, onde até hoje existem propriedades da família Leite — é fascinante imaginar: talvez ele tenha passado por fazendas de geração anterior à do Joãozinho, agora me distinguindo com tanta atenção. Comprava, levava para Araxá, juntava em carro de bois com demais coletas e transportava tudo para a Estação de Conquista, um terminal avançado da Mogiana, da banda de cá do Rio Grande. Ali, valendo-se dos serviços do chefe ferroviário, embarcava a carga para a capital paulista, onde alguém contratado desembaraçava e se encarregava da distribuição. E valia a pena vencer esse emaranhado de passos. Por ele amealhava o rendimento que acudiu o sustento da família e montou base para novos arranjos empresariais, inclusive, pecuarista. O ramo do queijo continua rentável porque, crianças ou idosos, homens ou mulheres, católicos ou protestantes, cruzeirenses ou atleticanos, não importa, as pessoas não deixam de comer.

O gostoso e saudável costume de saborear o queijo foi trazido para a mesa da minha geração e nos acostumamos a ele, aprendendo a diferenciar sabores, cuidados de preparo, coisas assim. Além disso, minha cidade natal era importante centro de distribuição. Ainda na década de 40 do século passado, eu cheguei a ver caminhões carregados daquelas “rodelas”, duras, exalando olor inconfundível. Dentro do depósito, um “chapa” jogava habilmente uma meia dúzia de peças por vez para o companheiro na carroçaria, a sua vez empilhando-as em várias camadas até completar toda a carga (podia pisar em cima) e cobriam com lona. A gordura impregnava tudo, botinas mateira e mãos, coberta e madeirame do veículo, pulmões e espírito. Dali seguia para São Paulo, recendendo estrada afora o cheiro maturado, entrando pelas narinas e fixando na lembrança. Mas, certamente, as peças já não contavam mais os seis meses de cura praticados no século anterior.

Meu avô não era o único a ganhar a vida nesse ramo. Mais pessoas e empresas estabelecidas cuidavam da coleta, armazenamento e escoamento do produto até a Paulistarum Terra Mater. A atividade era intensa, e rendosa.

A logística de distribuição ia se aparelhando para acompanhar o crescimento da rica ocupação. Mais veículos na frota, novos depósitos construídos, demandando mais mão-de-obra. O site da Emater narra que os “funcionários dedicavam-se exclusivamente às funções de receber os queijos, selecioná-los para viagem e acondicioná-los nas grades de madeira onde passavam pelo processo de higienização e pesagem. Limpavam-se os queijos e lavados eram colocados de pé, nas grades, ocupando posições de cima para baixo, conforme a consistência e o grau de maturação apresentados. Os mais frescos ficavam abaixo, recebendo sal na sua parte superior. Na medida em que se curavam eram transferidos para as prateleiras acima, sendo virados frequentemente. Antes do transporte, as peças ganhavam um banho de óleo de cozinha visando à conservação do seu teor de gordura. Em frente aos depósitos, partes das ruas eram cobertas por lonas que secavam ao sol, antes de cobrirem os caminhões. Estes, geralmente, eram forrados com tecido de algodão cru. Às vezes, os queijos recebiam camadas de sal para ser melhor conservados”.16

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16 In: <http:www.emater.mg.gov.br>. Acesso em: 5 fev. 2011.

Importante transcrever esse trecho para se perceber o cuidado envolvido nesse elo da cadeia produtiva. Nem todos esses passos são cumpridos hoje em dia. Em Cruzeiro da Fortaleza, visitei um depósito. Três empregados lavavam as centenas de peças mergulhando-as em um tambor com água, com cuidado para não desmanchar, fresquinhas.

Vamos agora ao microscópio. Tal como o vinho, o queijo é um ser vivo. Sua massa é uma Xangai de bactérias, imperando a diversidade da microflora, no privilégio do seu sabor. E nem tudo são flores. “A vida é luta renhida, que aos fracos abate e aos fortes só faz exaltar”, a poesia nos ensina, e se aplica ao mundo pequenino. No microecossistema superpovoado, cada um precisa digladiar na arena da sobrevivência, matando-se e devorando-se entre si. Eureka! Quanto mais longa a maturação maior o tempo de embate e, consequentemente, mais chacina e mais mortos. Ao final, obedecendo à antiquíssima regra do mundo, sobrevivem as mais resistentes, para nossa sorte, justamente as mais salubres. E dizem que estas, vencedoras, aos poucos fixam residência na casca. A bibliografia acrescenta mais um capítulo: com a idade, essas campeãs enfraquecem (assim também os homens), perdem a virulência e, ao ser ingeridas, funcionam mais como vacina estimulando a fabricação de anticorpos. Só vantagem. E mais: esses bichinhos adoram água. No queijo fresco, o ambiente é mais propício. Já na peça maturada, em umidade nordestina, a segurança aumenta. Tudo de bom!

Os perigos contidos nos derivados do leite existem em variegados padrões e escalas. Entre eles destaca-se a tal de Listéria monocytogenes, para quem a mãe natureza, dizem, não dotou de melhores equipamentos de sobrevivência — é pouco dotada em resistência, bucha de canhão, no queijo curado é soldado desconhecido, não figura nos memoriais. Já no leite UTI, pasteurizado, se ocorrer contaminação, ela pode nadar de braçada em SPA fora de temporada, exclusivo. John Mawe, geólogo inglês, visitou a região diamantífera em 1809 e ficou impressionado com a sujeira e o mau cheiro reinante nas queijeiras e não citou perigo, ou registrou ocorrência de doenças. Feitas todas as contas, subtraídas todas as parcelas, a diferença é quase nula, nada vai de trágico, podemos baixar a “neura”: se um indivíduo normal consome diariamente uma porção de 30 g de queijo contaminado na razão plausível de cem bactérias por grama, ele corre o risco de contrair patologia uma vez a cada… 4 milhões de anos!

Voltemos à história. A fama do queijo se consolidou e o século das duas guerras mundiais viu sua demanda crescer continuamente.

Ainda nos idos de 1930, com a maior disponibilidade dos veículos automotivos, apareceu um novo queijeiro. O “Seu” Antonio Pedro foi um pioneiro na Buraca. Montou ali o entreposto, comprou um caminhão e abriu estradas, ampliando a entrada do Canastra no comércio local. Um visionário, com ação facilitada: os tropeiros indicaram o traçado do caminho e a mão da providência descarregou um mundão de cascalho por ali. O terreno mais plano do chapadão também favoreceu a construção. Os novos meios de transporte, assim, operaram uma mudança, uma evolução. Se “em antes” era coisa de três dias em carro de bois, agora a viagem se cumpria em poucas horas, com caminhões em percurso melhorado, facilitando a distribuição, atendendo e fomentando o comércio. O pequeno fazendeiro ouve o chamado e procura aumentar a produção, sentindo-se mais seguro com o aparecimento dos contratos de compra garantida, no longo prazo, informais, não importa. Ele levava seus queijos para o “Seu” Antônio, porque não havia estradas carroçáveis do meio rural até ao entreposto.

Tudo seguia bem, mas… “Na década de trinta, eu não sei em qual desses anos a recessão foi mais acentuada. No Furão, as notícias de mudanças das famílias retratavam a desolação daqueles tempos tão difíceis. A desesperança, a tristeza e a dificuldade para se alimentar, com o passar do tempo, provocaram o êxodo, de maneira vagarosa, silenciosa, até ruir o último rancho, abandonado e nada mais sobrou além das recordações das vidas sofridas de cada família, do vazio e da solidão” lamenta Joãozinho Leite. “A cidade morria devagar”. Já naquele tempo o mundo se globalizava no encontro mais estreito das economias. Os Estados Unidos contraem gripe forte, nós aqui baixamos hospital com pneumonia dupla.

Em 1952, um importante fato se deu. Quem sabe diante da pressão, ou convencido pelo lobby dos poderosos, o governo brasileiro, através do Ministério da Agricultura, edita a primeira lei de qualificação do queijo, emulando aqui a lógica ianque de favorecimento da produção em alta escala, industrializada. As chaminés pasteurizantes venceram a batalha. A partir daí o queijo artesanal se tornou um proscrito, um cruzamento de Pancho Villa com Robin Hood, opondo-se às ditaduras e tirando dos ricos para entregar aos pobres.

O capital, munido de argumentos defensáveis, alcançou o objetivo de retirar queijos artesanais das prateleiras de todos os empórios. Os interesses políticos e econômicos normalmente selecionam uma faceta parcial da realidade: queijo industrializado é mais limpo, mais seguro, dizem. Em sociologia, costuma-se chamar essa versão, a que é apresentada, de “parecer social”. O importante, o crucial da decisão, está por trás da aparência, na outra face da moeda, escondida, onde se estampa a explicação completa, é o “ser social”, no caso em questão, a pressão exercida pelos produtores em massa, das grandes corporações. Na lógica monopolista, importa eliminar os concorrentes, de olho na apropriação de mais fatias do mercado. Estendiam-se sobre o Brasil esses tentáculos impondo uma nova ordem, igualmente pelo mundo afora. No parecer social nos incutem a ideia de higiene, da necessidade de uma vida saudável e eliminação de tudo que pudesse representar perigo para a saúde das pessoas. No ser social escancara-se o interesse das indústrias impondo a sua produção, exclusiva.

Divulgam as vantagens dos nutrientes do alimento industrializado, convencendo sobre a necessidade de se atender a essas demandas orgânicas. Ocultam a forma de produção e seu conteúdo de muitos aditivos. Rotulam o tradicional, nosso, de antiquado, superado ou mesmo nocivo. Buzinam a crença na ineficiência da produção doméstica, inferior, não confiável. E o pior é que, contado um tempo, o falso se torna “verdade”. Pressionam constantemente para suprimir a alimentação qualitativa, nos moldes antigos do fogão da vovó Maricota, repondo no seu lugar as fórmulas mágicas de calorias e vitaminas, com pitadas bem dosadas de produtos importados de transnacionais, no pressuposto do seu monopólio de seriedade. É a ideologia do nutricionismo, comer para viver, levado às últimas consequências, sem estética, esterilizado. No mundo global, a industrialização vai impondo um cardápio universal, diversificado é verdade, na gama de produtos e serviços oferecidos, mas todos eles equalizados na artificialidade dos compostos químicos. O saboroso de fórmula envenenada. O aromático sintético sufocante. Forçam crescente tendência rumo à oferta de alimentos de maior concentração energética, promovida pela indústria através da produção abundante de “delícias”, de alta densidade nutriente e menor custo. No bojo do pacote, também conseguiram mexer com a cabeça das pessoas, levando-as a não questionarem o fato, e mesmo considerar normal e até moderno comer fast food com cheiro horrível de coisa deteriorada, estragada, perceptível a metros de distância, e pagando bem caro pelo acesso à etiqueta. Um queijo vale menos que um sanduíche com refrigerante e fritas. Incluem a falta de tempo nos temperos da comensalidade atual. Os “refris” vendem mais que leite, café e água. Nos restaurantes, beber um desses gasosos durante as refeições tornou-se obrigação. Contra a saúde. E você pode escolher qualquer um, desde que entre Coca-Cola e filhos da Coca-Cola. Sinto-me um “ET” neste meu costume de não tomar líquidos durante as refeições. Os garçons não se conformam. Já aconteceu de insistirem duas vezes: “O senhor vai beber alguma coisa?”. Na hora de pagar a conta no caixa, estranhando a falta do item no romaneio, o gerente pergunta se o atendente não se esqueceu de anotar a bebida. Se os remédios oferecidos pelas multinacionais são tão bons, qual a razão para tanta propaganda? Soterrados sob toneladas de dólares despencados sobre suas mentes na forma de ardiloso marketing engendrado pelos agentes influenciadores do gasto, não percebemos muito bem essas componentes. É um amplo projeto de socialização através do qual o cidadão toma para si uma vontade externa, não dele, apreendida graças à mídia, na comunicação global. Em retumbante sucesso, conseguem formar uma mentalidade compradora sojigada sob o interesse do sistema, tanto mais cristalizada quanto mais televisão se assiste. Cuidam de manter girando a roda da obsolescência, planejada (estragar logo), e/ou induzida (celular de um ano é coisa do passado, descartar). Agora, com o advento do e-commerce, a facilidade de aquisição atende à tentação do tinhoso, a ânsia de compra ultrapassa as nuvens e alcança o etéreo das transmissões via satélite. Tudo graças aos bons serviços da TV. Olha, se avie, vai comprar, rápido, todo mundo está gastando horrores, você vai ficar por baixo?

O Canastra beirou a extinção porque é produzido sem obedecer aos preceitos de sanitização e homogeneização. O Food and Drug Administration dos EUA adverte: queijos de leite cru podem causar “graves doenças infecciosas, incluindo a listeriose, a brucelose, a salmonelose e a tuberculose“. Parecer social.

O queijo artesanal é, econômica, ambiental e socialmente mais sustentável, fixa o homem no campo, contém mais valor agregado e, assim, normalmente, pode representar melhor fonte de renda comparado à venda do leite, in natura, direto. Interesses estranhos tentam pressioná-lo de alguma forma, diminuindo seu lucro e abocanhar sua fatia infinitésima. Ser social.

Reforçando um pouco pela repetição. “Os queijos de leite cru carregam história no seu âmago, são mais típicos, próprios do seu meio de origem porque naturalmente inseminados com os micro-organismos presentes na biosfera, desde os campos onde pastam os animais até às queijarias”.

Nas produções não artesanais, o tratamento térmico destrói os microorganismos presentes e o processo inocula novos, selecionados, padronizados. E os queijos adquirem, assim, a “característica típica” desejada. Pouco a pouco, sob a pressão da globalização, no futuro veremos tudo centralizado em uma única fábrica, um só sorvedouro, insaciável, sugando para as entranhas de uma única e imensa autoclave todo o leite de todas as vacas, homogeneizado e pasteurizado, suave mar inerte, sem vida, separada a manteiga para vender por fora. Cumprido esse ritual de batismo da purificação, segue-se o processo de fabricação do queijo, conforme instrução computadorizada da programação da produção, em sofisticados modelos de pesquisa operacional, otimizando lucros. Dela vem a definição: hoje vamos produzir queijo Canastra. Automaticamente são acionadas as bombas e as válvulas e tome lá o coalho específico Canastra, o pingo sintético Canastra, o corante Canastra, o sabor artificial Canastra e o aromatizante Canastra. Em medidas centigramétricas, precisas, acrescentam os estabilizantes, os acidulantes, os conservantes e mais tantas químicas necessárias para garantir consistência, maciez, ausência de furos e não endurecimento. Por fim, sal, muito sal, ufa, haja rótulo para descrever tantos componentes! E pronto, sai lá na ponta o legítimo, o primeiro, o único, o original, o inigualável Canastra. No dia seguinte, é a vez do parmigiano. É só girar as válvulas, sem intervenção humana, tudo muito asséptico, seja feita a vontade do computador interconectado com as bolsas de alimentos e tome lá toneladas do famoso queijo, fresquinho, recém-saído da UTI. Todas as peças com absolutamente as mesmas dimensões e a mesma densidade, assim atesta a amostra levada para o laboratório de controle. Como se não bastasse, junto segue garantida a vantagem da total segurança sanitária. E dependendo da sinalização do mercado, se a indústria assim desejar, pode-se valer de aditivos sintéticos para emular fermentos, capins, pingos, floras experimentais, tudo, enfim, nos ditames do lucro. Ei! Este é novo, experimente o Canastra Pizza, você vai adorar! Não há, também, limites para os teores de gordura possíveis, segundo o agrado e, é claro, os dividendos. Podem também simular sazonalidades reais, com erva fresca da primavera ou o feno de cocho, tudo em mágicas poções disponibilizadas pelas misturas dos químicos importados. A tecnologia hodierna dispõe também de condições de compor rótulos sofisticados, atendendo a clientelas exigentes, nichos aristocráticos, custosos.

As fazendas situadas a maiores distâncias dos eixos rodoviários coletores do produto serão obrigadas a vender o seu pequeno pedaço de chão e mudar para a cidade, tentando fazer algo para sobreviver, só Deus sabe. O Estado exige a legalização e a maturação por 60 dias, assim as febres bovinas não sejam disseminadas através do produto. Mais tempo na queijeira para a cura significa mais capital de giro, inviabilizando a atividade para muitos.

As grandes indústrias da alimentação, nada sutilmente, vão passando o rolo compressor sobre todos os pequenos indefesos. Poderosos lobbies exercem influência sobre os legisladores. Nossas mães e avós, e “em antes” delas, as bisavós e tataravós, sabiam assar biscoitos e muito bem. Nossas raízes, aos poucos, vão se enfraquecendo e sem conseguir botar tino nisso reaprendemos nossa maneira de ser. Árvores diferentes aparecem, novos gostos são adquiridos.

Toleram o varejo dos minguados quilos produzidos artesanalmente, no quintal, deixam pra lá quando o custo da eliminação é alto. Assim, um regulamento de inspeção sanitária autoriza a produção na falta de estrada para escoar o produto. O dedo dos principais aglomerados parece tocar em tudo. Onde não compensa, onde fica muito caro buscar, aí sim se pode produzir o queijo. Tão logo o Estado, com dinheiro público, construa a rodovia superando a insuficiência, o produtor será obrigado a entregar o leite. Essa lógica parece eterna. A infraestrutura é por conta do povo, o poderoso só se apresenta para receber. Atrair capital, parecer social, rimado. A maioria desses investimentos é mais centro de custo que de lucro, ser social. Ou melhor, ficam conosco as despesas e a agressão ambiental e esvaem-se as receitas, as riquezas, o trabalho. Construímos por aqui modestas igrejas, enquanto alhures são erguidas enormes e vistosas catedrais. Nossas peanhas são ocupadas por santos estrangeiros. Materialismo histórico.

As rédeas de comando do atacado interno também estão nas mãos das corporações. Sklair chama de vínculo regressivo.17 Elas se apropriam do atacado, no turbilhão das toneladas, milhares delas. Agregam valor e redistribuem por todo o país, ocupando de forma cartelizada as prateleiras das lojas.

Servida toda esta salada, não nos comportemos então como inocentes quaisquer imaginando vigilâncias sanitárias, regulamentos dos blocos econômicos, portarias etc., preocupados com nossa saúde. Se assim fosse, proibiriam cigarros, bebida alcoólica, refrigerantes, frangos clonados tratados com hormônios, galinhas botando ovo sem casca, vacas que nunca viram um pasto, e muito menos um touro, rações químicas para engorda, alimentos geneticamente modificados, coloquemos mais etc. porque a fila dobra esquinas, assim como ocorre onde dependuram uma placa “Há vagas”. Um produtor de Medeiros apresenta uma crítica bem-humorada, inteligente, inclusive aproveitada no filme “O mineiro e o queijo”. Diz ele: talvez seja o caso de comercializarmos nosso produto colocando no rótulo que ele contém bactérias que podem ser prejudiciais à saúde. Tal como no caso do cigarro, e o freguês decide se quer comprar ou não. Tomar Maracugina também envolve riscos.

Interessa ao país bem diferente solução. Produzir com controle sanitário, da mesma forma como em diversos lugares, tais como Portugal e França (onde 75% dos tipos de queijos derivam do leite in natura). Lá essa atividade anda de braços dados com mecanismos de apoio e proteção à produção local. Defendem sua riqueza econômica e cultural. Resguardam seu capital, contante ou social. Estão armados de unhas e dentes, eles conhecem o poder do inimigo e anteveem o combate ferrenho, sem tréguas. A Alemanha já montou suas barricadas contra essa intenção global. A Europa se fundiu em um bloco autônomo e forte o bastante para não se submeter às regras de interesses externos (entre diversas razões). Consegue proteger os seus pequenos produtores e o artesanato agroalimentar. Já blindou seus interesses com legislação adequada. A tradição por ali anda com colete à prova de balas, garante a permanência do homem no seu lugar e segura empregos. Sem contar importante ganho, correndo por fora, importante e muito. Graças a eles o mundo do queijo não se transforma em uma planície sem relevo, toda ela formada de uma mesma massa, enjoativa, desprazeirosa, inerte, sem gordura.

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17 SKLAIR, Leslie. Sociologia do sistema global. Petrópolis: Vozes, 1995.

(Foto da carroça com os latões de leite cru)

Carroça e latões de leite — Iguatama (Out/2010)

Esse gigantesco tabuleiro de xadrez se torna mais complexo (é sempre essa a história) com a participação de interesses coorientados aos de grupos da agroindústria, como é o caso da comercialização do leite.

O leiteiro da hora certa, delivery na porta de casa, entregando o produto in natura, pertence a um tempo que se esvai. Em Araxá da infância, uma imensa carroça, de guizos chocalhados pelo calçamento poliédrico, percorria as ruas da cidade. Uma caneca enfiada dentro do latão despejava o leite na vasilha da casa, trazida até à calçada. Fervido e esfriado, era preciso furar a espessa camada de gordura para poder se servir do precioso alimento. Da nata, fazia-se manteiga caseira. Ainda existe esse tipo de comércio por aí, em cidades menores, eu vi. Contudo, esse sistema, de mão-de-obra intensiva, vai chegando ao fim.

Enquanto isso, as dificuldades de transporte limitam a investida da industrialização e a região vai resistindo. É um canto de mundo meio isolado, já vimos, o paredão composto pelo binômio Canastra e Babilônia (boa sugestão de nome para dupla de música sertaneja) e, ainda de sobra, o fosso do Rio Grande, diminuindo as chances de conversão em local de trânsito. Se for verdade, o imenso Baú, tendo visto nascer o queijo, é também vigilante guardião da sua sobrevivência. Reside aí uma bruta contradição. A estrada é bem-vinda para o turismo e para melhorar o escoamento da produção, mas pode significar o dobre de sinos do queijo, ou pelo menos dificultar mais ainda a continuidade da sua teimosa longevidade.

Vem muito bem a este propósito a consideração que encontrei num dos portos da navegação virtual — não consegui recuperar a origem, me perdoe o autor, certamente também um cientista social: “Os modos de fazer e as técnicas e tecnologias que envolvem o processo produtivo dos alimentos a partir do mundo natural distinguem identidades e formatam patrimônios regionais e grupais. Essa é uma essencial questão para nós: não dissociar o alimento do homem que o produz, que o consome e que o transforma, dando significados especiais ao seu fazer”. E acrescento, homem e queijo se transformando, se reproduzindo, em relação dialética. Após cada peça feita, nenhum dos dois é mais o mesmo. Um pouco adiante, referindo-se aos fabricados, o mesmo autor diz: “Produtos perfeitos e sem alma estão disponíveis a preços cada vez menores. Aqueles produtos que trazem casos, história, aventura, que a natureza levou milhões de anos construindo, estes sim, são valores fortes à medida que o mundo se globaliza”. Abordagem muito feliz. É precisamente esta nossa necessidade: valorização, divulgação, institucionalização. Venha selado, carimbado, rotulado e por aí afora, emendando com Raul Seixas, se quiser voar. Se a opção é reduzir-se à vala comum dos processos digestivos, dos nutrientes, ora então qualquer barra de cereal serve, dá lá um desses energéticos envenenados, água, sais e corantes, tudo sintético.

Não é somente sobre a alimentação que investem as temidas e enormes fauces desta fera. Também em outros ramos da atividade humana está presente o perigo de não mais se desfrutar da convivência com os espíritos, de não se usufruir das heranças do passado. A propaganda nega, alardeando respeito à diversidade cultural, mas muitas coisas já vão se equalizando pelos quatro cantos do mundo. Não bastasse a realidade de nossa identidade já se ver solapada na essência pelo menos por três razões: não somos propriamente donos da nossa história, cerceada que vai por um complexo número de circunstâncias. Nosso inconsciente está sempre em transformação, nos cutucando a todo o momento com novidades e o idioma que falamos nos impõe, da mesma forma, certas restrições, impedindo que nos expressemos da forma que gostaríamos.

Assim, cada sociedade deve se conscientizar quanto às perdas envolvidas cada vez que assimila uma nova componente de identidade importada. Ela deve procurar compreender todos os perigos do tempo de mudança, das trocas de referências, e consiga se acomodar em novo patamar, com novos valores e novas crenças, preservando, pelo menos, os laços autênticos para não se dissolver e não se extinguir em completa assimilação pelas novas vontades, abandonando de vez as suas próprias.

Essa dinâmica é avassaladora e pouco tempo tem-nos restado para conseguir institucionalizar nossos traços, nossas pegadas. Não é difícil nos vermos a nós mesmos perambulando pelas ruas, zumbis desnorteados, vítimas de uma sensação horrível da falta do chão onde pisar. Anuvia-se o orgulho de pertencer a algo porque nada nosso consegue passear pela praça e por ali se sentar, instaurar presença. Todas essas percepções de desmoronamento das instituições, de implosão de valores, podem ser resultantes de uma causa comum.

Assim, do mesmo modo, o homem do campo, apoiado num modo tradicional de feitura do seu queijo, ao sucumbir sob a pressão de interesses externos, é forçado a tentar se ajeitar em outro canto qualquer da sua consciência, construir uma nova referência, e isso é muito dificultoso, deveras penoso. Bota angústias e ansiedades até alcançar a superação e estabelecer novas certezas! Amargará um stress psicossociológico diante da desorganização dos seus laços sociais. Sua existência, por um tempo, perderá sentido. Não terá mais em mãos o sextante para orientá-lo entre tantos icebergs da pirataria. Não conseguirá divisar em meio à neblina de dúvidas e perplexidades o farol que o guie até ao porto onde possa atracar. Por mais que “percure”, não divisará os pontos conspícuos de sua existência, levados que foram pelas ondas e correntes marinhas da concorrência desleal, covarde. Ao final de cada dia de trabalho, não contará com a poita e as amarras que o protegerão dos vendavais que sempre sopram mais impiedosamente sobre as pequenas e frágeis embarcações.

A tal da globalização, efetivamente, aplaina, homogeneíza, iguala, através de acomodações e incorporações de valores. Isso não é bom normalmente. Ao mesmo tempo, é fato, tem fomentado reação de resistência à sua ação. Já isso é do bem. Mas há ainda uma terceira faceta, qual seja, da preservação de identidade como “atração pela fascinação para exploração mercantil de uma etnia ou alteridade” qualquer. Essa é difícil classificar, se é bom ou ruim.

A realidade nos permite pensar: o Estado brasileiro, a rigor, não estabelece posição própria a respeito do queijo de leite cru. É, isto sim, compelido a assumir determinação internacional. E procedendo dessa forma atua “contra um Brasil histórico, saboroso, refinado”, e ainda minguando a comida no prato de milhares de pequenos pecuaristas. A política atual é de favorecimento à expansão dos laticínios e desestímulo à produção do queijo artesanal. Agindo compelida, gera vetores contrários à fixação do homem no campo. Ele sabe que a produção doméstica demanda mais mão-de-obra e que o número de vagas abertas na indústria mecanizada da cidade não cobre as perdas junto ao curral, que a contabilidade fecha no vermelho. Ao mesmo tempo, lê-se sobre a existência de ações governamentais, ou ouve-se discurso sobre o interesse público na fixação do homem na roça. São medidas divergentes, peitando-se. No varejo defendem o nosso, mas no atacado o projeto vem de fora. E tem mais: o erário púbico está de olho também na perda de controle sobre o imposto não recolhido pelo artesão na venda direta, na porteira. Produzindo na indústria fica mais fácil para o Estado.

Toda esta longa, mas necessária, digressão sobre diferentes peças do jogo nos desviou do eixo principal. Retomemos o fio da nossa história.

Pelo menos até aos anos 70 do século XX o leite ainda era tirado manualmente. O vaqueiro servia-se de um banquinho de três pés, criativamente amarrado no seu traseiro, simplificando tempos e movimentos. Nele assentado, ordenhava a vaca com as mesmas mãos com as quais acabara de atar o bezerro às pernas da mãe, usando a corda puxada dos ombros e arrastada sobre o chão de estrume e mijo. Condições de higiene bem precárias, mas nem por isso se tem conhecimento de problema associado ao consumo do queijo.

Hoje em dia não é assim. As coisas vão se modificando com o tempo, isso não se consegue e não há razão para impedir. Contudo, em aparente paradoxo, as sociedades parecem resistir às mudanças. As normas sociais impõem “um assalto ao espírito”, definindo comportamentos esperados, mesmo inconscientemente. Já dizia o velho barbudo, as transformações somente podem acontecer a partir do que se cristaliza. Se algo ainda não se instalou é porque não formou espaço para mudança. E quando se afirma, se organiza, traz em si o germe da desorganização.

Em 2002, com a implantação da nova lei regulamentando a fatura do queijo de leite cru, muitos artesãos, apreensivos, levantaram os braços invocando: “Meu Deus, o que será de nós?”. Mas o processo segue avante, removendo as resistências presentes, acirradas ou não.

O queijo produzido hoje nos entornos da serra difere, certamente, daquele mascateado pelos “Seus” Habibs, pelo menos desde a alvorada da República. A forragem se alterou, a ordenha é mecânica, a alimentação dos animais é suplementada por ração, a composição do coalho deve ter mudado, o gado “dimudou” muito, até Jersey há. A duração do período de produção de queijo veio aumentando, de seis, para sete meses e assim cada vez já vai tomando o ano todo, dissolvendo a entressafra. Hoje em dia as queijeiras das fazendas trabalham de janeiro a janeiro. Isso é do bem ou do mal? Se a regra é a mudança, por que insistir nessa ideia de manutenção da cultura? Para que esse esforço todo? A resposta, a justificativa se encontra no que se pode conseguir de sobrevida, mesmo com adaptações. Eu sou outro com o passar do tempo, mas sou eu mesmo. Seja bem-vinda se não invalidar todo o elenco de traços culturais. E, melhor ainda, será a glória se as alterações se derem segundo vontade do grupo, autêntica, própria, orientada ao seu destino. E mais aplaudida na continuidade da feitura à mão de um queijo diferente dos demais, constituindo no meio de sustento de muita gente, repetindo referências praticadas por seus ancestrais.

Talvez se possa estabelecer um paralelismo com o futebol. Ele foi importado da Inglaterra no início do século passado. Apareceu por aí, estranho aos nossos traços culturais, e se incorporou até se tornar uma das mais autênticas manifestações na nossa consciência. Hoje, os estádios, as regras, a frequência, os uniformes, tudo, enfim, não é mais como dos primórdios, mas a relação nacional com o esporte bretão continua única, própria. Ou seja, embora muitas coisas tenham mudado à sua volta, está mantida essa tradição, esse atavismo, vendo e interagindo com esse jeito exclusivo nosso. General de cinco estrelas.

Voltemos à cronologia entrando nos anos 80. A produtividade respondia favoravelmente, e a produção alcançava o ano inteiro, já vimos. Mas, na tensão da mola da demanda, puxando, pouco a pouco, o tempo de maturação foi minguando, contradição recorrente em qualquer forma de produção de sucesso. Passou-se a entregar queijo cada vez mais fresco e, infelizmente, apreciado assim mesmo pelo público. Esse queijo, ainda carente dos contornos definidos pelas sombras de nossa prosápia, caiu no gosto do povo em geral, inclusive, ou principalmente, em São Paulo. No dizer de João Leite, esse frescal “chia na boca”, aproxima-se mais do tipo de queijo coalho produzido no Nordeste, vindo ao encontro do gosto da imensa colônia migrante para a terra da garoa. Faz sentido, muito interessante. Umas treze décadas após o retorno da corte chegou ao Sudeste o “pau-de-arara”, no tanto de carinho que pode conter o apelido, pois estes vieram trabalhar, construíram os edifícios, fábricas e estradas, mas a necessidade final foi a mesma: comida. Contudo, essa preferência é também mineira. Já fiz teste aqui em casa, oferecendo “bilisquetes” para amigos, — o potinho com pedaços de frescal se esgota logo, enquanto que o meio curado da melhor procedência “canastrense” toma chá de cadeira.

E assim se deu. A mudança chegou a tal ponto que, durante pelo menos uns quarenta anos, o paladar foi-se modificando. Hoje, a maioria quer mesmo é o “frescal”, não mais fazem questão do maturado, legítimo.

Os queijeiros de hoje continuam recolhendo as peças diretamente das mãos dos artesãos. Mas são diferentes, chegam montados em caminhonetes, com celular, balança e calculadora. E improvisaram uma técnica para levar esse novo produto. Com cuidado de quem carrega um recém-nascido, ainda cheirando a leite e curral, acondicionam os queijos em tubos de PVC. Foi a solução atinada para os “bebês” não amassarem a moleira, não se esborracharem. Desse novo queijo, branquelo, frágil, esquálido, quase inodoro, ainda escorre um resto de soro — infiltra pelas gretas da carroçaria e vai pingando estrada afora. Mais um pouco de ficção, agora levada para o mundo das microssociedades: olhando com atenção o veículo se afastando, sacolejante, vê-se até vários bichinhos sendo jogados para fora, tal o aperto. Ao mesmo tempo, nossos avôs vão se revirando nas tumbas.

“Estima-se que cerca de 90% da produção é comercializada desta forma, irregular, perseguida pelas sirenes da polícia. Assim, o Queijo Minas Artesanal debate-se em profunda contradição: é patrimônio da nação, é preferido nas formas menos curadas, mas tem que viajar na clandestinidade até chegar aos principais centros consumidores”. Existem cancelas de aduanas protetoras inclusive dentro do próprio Estado. Mesmo em Minas Gerais há fiscalização barrando a entrada do frescal, de olho na proteção da produção local — rimou.

Em maio de 2011, pesquisei o comércio de queijo nos mercados centrais de Campinas e de São Paulo. Antes eram os dois principais centros de comercialização do nosso queijo agora neles não se vê uma peça sequer do Canastra. Encontrei somente da marca Brinco de Ouro, procedente de um laticínio de Coromandel, devidamente embalado e sifado, e com indicação no rótulo como artesanal, mas é difícil de acreditar que possa conseguir tal proeza para tanta mercadoria exposta, tantas peças, aos milhares, tão iguaizinhas! Há também um de marca Casca D’Anta, sem indicação de origem, o que pode representar um deslize na fiscalização. Minas padrão, industrializado, isso lá há aos montes! Há também o Ouro Fino, queijo artesanal pasteurizado, diz o rótulo — como pode ser isso é coisa de se averiguar. Tanto na terra de Carlos Gomes assim também na Rua da Cantareira, o que mais se vê é produto rendado, mal prensado, com certeza chiando na boca. Quer dizer, queijo bom sem ser sifado não pode, mas é permitido vender aqueles de qualidade duvidosa. Mais recentemente, li uma boa reportagem no jornal sobre a clandestinidade do queijo. O repórter acompanhou os caminhos da burla noturna. Segundo o artigo, a mais substancial fatia vai mesmo para a região de Campinas — para onde seria especificamente não consegui ver por lá. Por fim, é interessante notar a insistência do uso do vocábulo “ouro” nas marcas. Do que não há na região levam para o que não há no queijo.

O turismo vai incrementando o comércio no varejo direto, na porta da queijeira. Em cada fazenda visitada, comprei uma ou mais peças. O produtor recebe com interesse e atenção. Ele sabe da disposição de pagar um pouco mais pela garantia da procedência. O visitante, por sua vez, abre a mente para as vantagens da visita, desfruta o ambiente, propiciando também experiência única para os filhos que estiverem juntos e, ainda por cima, percebe e assunta o caráter implícito na artesania. Que se amplie cada vez mais ainda esta forma de relação. O artesão recebe a remuneração completa, limpinha, pelo seu produto, sem intermediação e sem passar pelas garras sujas do Leviatã. Bons ventos soprarão no dia em que esse interesse alcançar toda a produção, diretamente da mão do produtor. Será o estado ideal, da paga justa. Esse homem ficará no campo.

Existem diferenças na apresentação do queijo quanto às medidas. No começo da fila, em ordem crescente de tamanho, vi na zona rural de São Roque uma miniatura. Chamam-no “merendeiro” e pesa cerca de um terço da peça normal. Em Lagoa Formosa, produzem peças de mais de dois quilos, peso um pouco acima do padrão normal e no final do alinhamento está o Real, ou Canastrão, grandão, de seis ou sete quilos. Porém, Joãozinho, um dos produtores desse requinte, explica que a diferença não é somente nas estranhas dimensões. Enquanto o queijo normal é feito da coleta total do leite do dia, misturada, o Real, “preconceituoso”, é feito de leite segregado, de um mesmo determinado período de lactação, mais rico. Por isso mais sutil, de paladar mais apurado. Parece um Grana Padano, na aparência externa. Difícil de encontrar, e o preço é para poucos. Casa bem com a expressão “reservado para o bispo”, pois, segundo consta, antigamente era elaborado na previsão da vinda de autoridades civis e eclesiásticas. Exagero. Eu tive a oportunidade de adquirir — uma vez, lá em Medeiros, um bom pedaço de uma bela peça que já soprara velinha do primeiro aniversário. Ele é mais seco, esfarelando-se sob a faca. Muito difícil uma bactéria conseguir sobreviver naquele Saara, só se muito precavida, com um bom cantil de água. A casca não causa boa impressão na sua cor e aspecto estranhos, endurecida, bolorenta, com luzes puxando para um tom acinzentado. O sabor, muito gostoso, tem toque picante suave, esnobando personalidade. Também consegui adquirir uma peça inteira lá na porta da queijeira da Fazenda Agroserra, em São Roque, no centro de irradiação da legitimidade. Impossível resistir ao seu aroma e à sua cor amarela suave, uniforme, esbanjando qualidade. Há de se comer ajoelhado, em sinal de respeito. Ainda com pouca idade, sua massa apresenta-se macia, tenra e o sabor é sofisticado, atendendo aos mais refinados paladares, ao mais exigente gourmet. Muito parecido com o Gruyère. Somente lá, nessa abençoada região, consegui ver esses refinados primores. Esses queijos podem disputar medalhas em concursos pelo mundo e não vão fazer papel feio. Uma missão francesa, do acordo internacional de cooperação com a região da Serra da Canastra, provou e elevou-os à seleta condição entre os melhores do mundo. Não deve ter sido por simpatia, pois os gauleses não são muito dados a esse tipo de coisa.

Duas observações complementares: nessas peças maiores abrem-se buracos no interior da massa, “causa de que” os eflúvios não conseguem vencer a maior espessura e ficam aprisionados. E está muito bem também. Pude notar certo orgulho do artesão ao exibir essa prole diferenciada. Fiquei com a percepção — quem sabe desejo meu— de que lhe confere status de competência ou símbolo de prosperidade da fazenda.

Voltando à história, os produtores passaram a vender o queijo com maturação cada vez menor, já repetimos. Se o tempo de prateleira já não cumpria a quarentena, na década de 80 do século passado não contava nem ao menos uma lua, e mais para o final, “desensofrido”, não conseguia rezar a novena. A feição original foi desaparecendo aos poucos, perdendo as características, a sua identidade, o seu jeitão. O Sr. José Mário, pecuarista de São Roque, contou: “Antes o queijeiro passava uma vez por mês, ainda andava sobre a carga. Hoje, vem três vezes por semana, não é queijo, é massa. Chega ao destino azedando”. Devia estar se referindo à produção em geral porque o do seu sítio, mesmo fresco, certamente não se perderia. Digo isso com pleno conhecimento de causa. Levei para casa queijos desse artesão. Olha, são pra lá de muito bons!

Devaneio. História e fantasia contam que no século XII um duque e bispo tedesco, amante de vinho, precisando viajar para a Itália, enviou adiante um fiel servo, instruindo-o para que provasse os néctares das tavernas dos burgos onde estavam previstos seus pernoites. Na hospedaria onde o emissário encontrasse o melhor vinho do lugar escreveria “EST” na porta de entrada, indicando que ali “é” onde o seu amo deve se acomodar naquela cidade. E funcionou muito bem. Corridos dois ou três dias, chegava o senhor, percorria as ruas e apeava do cavalo junto à identificação combinada. Montefiascone, mais do que famosa pelos seus excelentes vinhos, era uma das paradas previstas. Lá chegando, o exigente nobre leu na porta de um albergue: “EST, EST, EST”. Na primeira oportunidade possível eu vou pedir autorização ao casal José Mário e Valdete para colocar esse emblema junto à entrada da sua queijeira.

“Eu, João Leite, com cinco anos de idade, na fazenda, filho de um produtor típico, com raiz em Portugal, de que me lembro? O queijeiro chegando a cada trinta dias, e só levava o queijo que ele apertava e estava duro. A idade das peças girava por volta dos quarenta dias. Ainda fresco, minha mãe lavava-os no soro para impedir a contaminação. Um trabalhão danado. O queijo ficava amarelinho, com aquele aroma gostoso, compondo estoque, empilhando todos eles. Assim era a produção. A pastagem era orgânica, tudo era orgânico. Na virada para a década de 80, veio o boom do crescimento. Aumento do PIB, correção do solo aumentando a produção, selagem no período das secas, entrada de gado girolando, melhoria das estradas, caminhão Mercedes foram fatores que contribuíram para o aumento e explosão de vendas do Canastra. Mas, mesmo assim, o sistema de produção não conseguia suprir a demanda que aumentava mais e mais. Moral da história: queijo de trinta dias cai para vinte. Foi entrando no estoque, de vinte para sete dias. Hoje em dia se vende queijo com três dias de existência. Ou seja, caiu a qualidade e apareceu a pergunta: é da nossa cultura, que foi criado, saboreado, consagrado ao longo da história por várias gerações?”

Assim, um século após Orígenes Tormine, renomado queijeiro, ter embarcado de Sacramento, no ano da graça de 1910, uma centena de mil “tijolos” produzidos nas Buracas e adjacências, muito bem maturados, hoje, de forma esmagadora escoa-se um novo produto, não o autêntico, aquele original, culturalmente institucionalizado ao longo de tanto tempo. Para não confundir, vamos batizar esse novo rebento com nome diferente, seja lá “Queijo Minas Frescal do Oeste”, pois nem se identifica bem onde é produzido. Se assim desejam, paciência. Mas esclareçamos sobre as diferenças, não iludamos. Ao mesmo tempo, importa tentar modificar hábitos voltando ao antigo gosto, garantindo a sobrevivência do maturado artesanal.

A produção perdeu o passo no aumento da população, na elevação da renda, no êxodo rural, tudo facilitado com melhoria do transporte. Ora, sabemos se “aonde a vaca vai o boi vai atrás”, tendo crescido tanto a procura, por que os produtores não elevaram, na mesma proporção, a oferta, mantendo a maturação? Na falta de um estudo mais apropriado, eu aventuro um palpite.

Quem visita as fazendas da nossa parte do oeste mineiro encontra, na maioria delas, um cenário de trabalho, um ambiente de luta pela sobrevivência. Somente no cinema ou em fotos vemos as espetaculares propriedades agrícolas de Iowa ou Quebec. Aqui no nosso canto, bem diferente é a situação, a história. O estado de conservação das construções, das instalações, dos equipamentos e dos pastos nos diz que o dinheiro é sempre contado. Um dos proprietários comentou que espera 45 dias para receber a ração, mas para liquidar a fatura o prazo é de somente um mês. Quer dizer, ele financia a indústria rica. E desabafa: “Eu passo apertado”. Não existe a ruralidade feliz, serena, dadivosa.

Façamos uma conta. Se a patroa de um pequeno produtor consegue prensar dez peças por dia, e quiser vender o legítimo, maturado, precisa ver diariamente nas prateleiras, “dormindo”, dia após dia, cerca de meio milheiro de peças. Ao preço de doze reais cada uma, comporia um imobilizado de seis mil reais. É um montante não atingível pela maioria. Esperneia, mas não arrebanha, espicha e enverga, mas não consegue amealhar. Entre os antigos era a prática, “causa de que” o impunham as restrições de escoamento. Assim sendo, talvez esteja faltando capital ao artesão de hoje. Financiamento para formar estoque inicial de dois meses e dar a partida ao processo de venda maturada.

A realidade complexa traz mais elementos à discussão. Como sempre. João Leite puxou para a conversa nova variável, no caso, agravante. A inflação do mesmo período, chaga maligna, de apetite voraz, covarde, ataca os desarmados, sem condições de defesa. As perdas de poder aquisitivo e de renda podem ter juntado força, obrigando o fazendeiro a se desfazer de seus estoques.

Mais considerações: são duas as principais destinações para o leite — fazer queijo ou vender in natura. Conforme o humor do todo-poderoso mercado, a “vontade” dos produtores varia e a partir de certo valor pago pelos laticínios, para garantir um dinheiro a mais, acabam entregando o leite diminuindo, ou mesmo interrompendo, seu artesanato, parte de sua vida. Lendo o Relatório Anual de 2010 da Sociedade Cooperativa Piumhiense de Laticínios (Cooperlat) percebe-se que o fazendeiro não consegue prever o dia de amanhã. O gráfico do preço pago ao produtor parece um eletroencefalograma de um esquizofrênico. Só Deu sabe quanto vai ser pago pelo litro! Não há sazonalidades, nem acompanha inflação, nada. Depende de humores que nos são estranhos. Já o volume de leite captado viveu um boom em 2008 — quando o preço devia ser melhor — e vem caindo nos últimos dois anos. Uma ressalva: os laticínios menores pelo menos ainda guardam riqueza regional. As grandes empresas estrangeiras é que causam o grande prejuízo do escoamento do lucro para plagas distantes.

Um mecanismo apareceu recentemente, “tresandando” mais ainda a situação: venda não mais por peça e sim por quilo. O queijeiro leva sua balança na caminhonete, compra o frescal mais pesado, mas deve fazer lá suas contas para compensar a perda de água durante o transporte. O retalhista final, de papel e lápis na mão, define quanto vai comprar e por quanto vai vender, de olho no ressecamento se o produto resolver filar hospedagem mais de uma diária na vitrine do balcão refrigerado. Essa nova conformação, deste penúltimo elo da cadeia, modificou-se profundamente com a entrada dos “peg-pags”, os códigos de barra, além do alvissareiro diploma de defesa do consumidor, aumentando o preço na etiqueta. Afinal, nós pagamos todas as contas.

A divisão de classes vem se mostrando mais presente. Novos produtos, finos, nobres, são exibidos para a mesa da classe A, entre eles o maturado. Enquanto isso, a maioria das pessoas se adapta ao frescal, altera seus hábitos e aceita um queijo menos apurado.

Mais complicações: no Brasil, quem empreende e emprega é penalizado por isso. Vem lá o Leviatã, intrépido, famélico, gastrólatra voluptuoso e poreja imposto por todas as glândulas, baba taxas a não mais poder e ainda atola o infeliz em uma papelada sem fim de guias, alvarás, licenciamentos, declarações, recolhimentos, direitos trabalhistas (parecer social), um suplício. A mecanização veio, assim, em boa hora, mais barata — não fica doente, não falta, não move ação na Justiça. Mas para o polo oposto são atraídas as limalhas cortantes do desemprego.

Como reverter o processo? Como corrigir essa situação de modo a não se perder a tradição, mesmo não sendo mais possível voltar para trás, como era no passado? A sociedade criará meios de redirecionar este andamento?

Ao apagar das luzes do século XX, fiel ao lema da nossa bandeira, tardiamente, produtores e governo de Minas deflagraram um processo de discussão sobre certificação dos nossos queijos. Tiveram início várias reuniões com a participação da Emater, do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) e da Secretaria Estadual da Agricultura.

Em 2000, junto a cenário desfavorável, de êxodo rural e de necessidade de gerar renda para o produtor do campo, vem à luz o Projeto de Certificação dos Queijos Artesanais de Minas Gerais, gestado no ventre de uma política governamental de apoio à pecuária familiar, na tentativa, mais uma vez, de fixar o homem na terra.

Segundo consta, os tubarões não se interessaram muito pela proposta. Sobraram os pequenos, aqueles sempre à cata de tábuas de salvação, tentando sobrenadar em um mar sempre revolto para eles.

A qualificação do produto significaria entrada formal em comércio legalizado. A revisão da jurássica lei de 1952 seria a pedra de toque, descolando das paredes dos postos policiais de toda a rede rodoviária a foto do queijo de leite bruto sobre o título “Procura-se” — quando se tem conhecimento de um desatino desses, difícil deixar de pensar o quanto o nosso Brasil não monta pensamentos próprios. Não estabelece os rumos de seu interesse. Abrindo-se o mapa do mundo, é fácil ver: os países de sucesso são aqueles nos quais o povo, por meio do governo, desempenhou a promoção do seu desenvolvimento, segundo os seus objetivos, de acordo com projetos pensados por ele e não por mentes estranhas.

Capítulo V – São Roque x Nova Iorque

“O que eu quero é desenterrar homens vivos.

A história soterrou milhões de homens vivos.”

José Saramago

O convênio com produtores franceses, já citei, colabora nas pesquisas e na organização. É mais um esforço de atualização e sustento da produção artesanal. Em uma das reuniões na capital mineira, a discussão corria sobre a importância da pasteurização para a saúde. A turma da indústria dizendo, o leite cru é uma bomba, nocivo para a alimentação, problemas gastrointestinais, um perigo permanente, coisas assim, querendo chamar todo mundo de mentecapto. Um técnico da equipe gaulesa, calado lá no canto, ouvia. Os produtores refutavam, servimo-nos dele, bota tempo, e estamos aqui vivinhos, nunca tivemos problemas. Na réplica, os burocratas acenavam com o mundo moderno, de limpeza, controle sanitário, higiene, bobagem querer nadar contra a corrente. Nesse momento, o monsieur lá atrás pediu aparte, levantou-se e, sorrindo, explicitou sua estranheza. Vocês têm aqui, de graça, o que lá na França pagamos caro para colocar no queijo para melhorar as suas características. Continuando, demonstrou que o importante não é a esterilização.

Quem gosta de UTI naturalmente se vale de alimentos totalmente isentos de qualquer organismo vivo. Os hipocondríacos, com desmedido pavor por germes, fungos, ácaros e assemelhados, querem tudo autoclavizado, ionizado, clorado, eliminando cor, cheiro e gosto naturais. Desejam somente acidulantes, estabilizantes, emulsificantes, corantes, sabores e aromas artificiais. Enquanto isso, na benevolência da superioridade, no favor da exuberância de nossas vantagens, na excelência do legítimo, enviamos para os paulistas os bichinhos já selecionados, tudo incluído no preço.

Em seguida, abrindo de vez o jogo, o pessoal que fala oui oui comentou que lá “no France” já montaram trincheiras tentando deter o avanço das tropas inimigas, protegendo a cultura e a tecnologia artesanal contra o projeto da globalização, juntando todos com seus tentáculos em uma cidadania única, amorfa, sem identidade. E nós por aqui? Quem nos acode? A melhor estratégia está na união de esforços para manter o espaço dos nossos queijos. Neste compasso, os produtores começaram a se ver atores — Ah, a consciência para si! —, a se entender como peças importantes até mesmo nas trocas globais. Essa percepção emprestou alento para discutirem a legislação, lá no nascedouro. É a sociedade no encalço do Estado, forçando-o a regulamentar após ouvir também o embargado e altissonante ulular das vozes do trabalho e não somente os sussurros insidiosos do capital.

Circunscrito à província mineira, mesmo assim esse ganho representou um enorme e importante avanço. Oficializada a atividade, abriram-se espaços para novas investidas. A competência técnica da Emater e a experiência em gestão empresarial do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) vieram ao encontro da necessidade de adequações e de movimentos. A capacidade de produção do queijo artesanal mineiro supera a demanda, bastando buscar novos espaços para diluir melhor os custos indiretos. Submetido às regras impostas por outros, o produtor não consegue competir ao lado de queijos de maior presença nas mesas, até mesmo de Minas. Este é um dos desafios.

Vários artesãos já cumprem os preceitos de produção, conferindo-lhes condição de vender um queijo diferenciado, legítimo, com “pedigree”. Estão cadastrados no IMA. O “quartim” fez plástica. Atendendo à legislação, ele foi ampliado para os três ambientes exigidos. Mesas de preparo, formas, prateleiras, tudo novo. As paredes azulejadas, em uma queijeira nova o cuidadoso proprietário mandou revestir tudo, inclusive o teto. Encerrada a produção do dia, o piso é lavado com água. Na internet estão disponíveis fotos “antes” e “depois”, testemunhando essa formidável transformação.

O curral, para ordenha, cimentado, também se abrasileirou no banho diário. Os aparelhos de ordenha são higienizados após o uso. Tudo limpo, sem cheiro. O novo processo de produção envolve mais água potável. Existem captações de fonte própria, incluindo tratamento. Nos trinques. Além disso, esses espaços agora são de acesso restrito, com pouco trânsito de pessoas, em favor da higiene do local.

No caso, literalmente, quem põe a mão na massa normalmente é a esposa do proprietário. Encontra-se agora paramentada, botas e aventais plásticos brancos e touca. Ninguém mais entra na queijeira — nem mosca, as janelas têm telas.

Em todos os lugares onde estive, fora de temporada, sem afluxo de turistas, eu cheguei sozinho, sem agendar, sem aviso, pedindo ali, na hora, a licença para entrar, e encontrei obediência a essas condições e preceitos descritos, atendidos de forma espontânea. O tempo antigo, da minha infância, já se foi. E se “em antes” já não ocorriam problemas de doença, menos ainda agora.

Os artesãos, percebendo a importância, pouco a pouco vão aderindo aos novos tempos, enquadram-se nos novos regulamentos. O número de cadastrados cresce continuamente.

Para Antônio Costa, “o propósito de disseminar as melhores práticas é lúcido e generoso. Mas a pretensão de fazê-lo de forma mecanicista é, além de reducionista, mesquinha. Mesquinha porque tolhe a iniciativa e a criatividade das bases e, por isso mesmo, nega-lhes oportunidades reais de empoderamento”. A contar pela nova queijeira, asséptica, azulejada, e a indumentária (roupa, avental, touca e máscara) toda alva, imaculada, trazidas pelas novas regras, a feitura do queijo artesanal aproxima-se dos procedimentos de higiene dos laticínios. “Parece mais um hospital”, no dizer de uma mulher encarregada da prensagem manual diária do produto. Assim seja. Importa é a preservação das origens, no jeito artesanal de fazer, na irradiação das condições específicas de produção, do solo único, do telúrico. A bola de futebol de hoje é pura tecnologia, mas a nossa “ginga” sobrevive.

Percorrendo as diversas fazendas fui provando in loco cada queijo produzido. Cheguei a experimentar quatro ou cinco tipos num mesmo dia, prestando atenção e podendo comparar os sabores, já que guardados na memória em curto espaço de tempo. Neste aprendizado pude constatar a existência, de fato, de muitas diferenças, umas sutis, outras nem tanto. Ou seja, apesar de todas as alterações, não obstante as exigências padronizadoras, o jeito artesanal de fazer remete ao seu berço, remonta ao passado e, também, guarda muito espaço para a realização pessoal de cada um dos artesãos.

Tomados aleatoriamente dois queijos, mesmo vizinhos geograficamente, eles se distinguem. Oriundas do pasto exclusivo e do cuidado próprio, as especificidades de cada um estão presentes, nas diferenças de textura e cor, cheiro e sabor. Em comum dispõem de legitimidade, de identidade e, em muitos casos, pleno atendimento aos mais exigentes paladares. São deliciosos!

E encontrei também espaço para a criatividade. No design dos rótulos certificados, nos folderes de apresentação, na forma de receber o turista e tantas coisas mais. Produtores diferenciados, de São Roque e de Medeiros, oferecem caixinha de madeira, “de bom parecer”, para acondicionar e ressaltar a excelência dos seus esforços. Curiosas, atraentes, funcionam também como um recipiente de proteção das peças durante o consumo.

(Foto da caixa de acondicionar queijo)

E é, pois aproximadamente esta a situação atual. Ela divisa bons horizontes, mas também expõe problemas sérios aguardando solução. É imperioso estender para todo o Pindorama a legalidade do nosso “partido”. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) é visto como órgão mais conservador. Na sua lógica exclusiva, as coisas continuarão assim por mais tempo. Uma estratégia seria mexer os pauzinhos políticos e tentar passar o bastão da corrida para o Ministério de Desenvolvimento Agrícola (MDA), formado por equipe mais jovem, dizem, mais arejada, mais identificada com a fixação do homem no campo, com uma visão social do problema. A transferência da questão para o MDA é possível, pois a fronteira de atuação entre os dois é difusa.

Por que dois órgãos se ocupam de afazeres aparentemente iguais? Penso assim: com o aumento da complexidade da gestão da coisa pública e necessidade de mais gente para regulamentar e acompanhar as atividades, novos órgãos vão sendo criados. No caso do Brasil, mais cartões corporativos independentes de alto nível atendem à necessidade de contentar o bloco aliado. Tiremos proveito dessa composição política. Segundo Stiglitz, não importa muito o tamanho do governo, mas sim o que ele faz em favor do povo.18 Deixemos pra lá, estamos “viajando na maionese”, a conversa vai-se encompridando. Voltemos ao tema.

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18 STIGLITZ, Joseph E. Globalização: como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

No campo da distribuição, são vastos os horizontes. “Nós precisamos dispor de mecanismos legais de comercialização para atingir os grandes espaços. O artesão aumenta sua renda, melhora sua condição de vida e se mantém na terra. Mas importa alcançar também um preço que remunere essa atividade, sem o que não será possível”, opina João Leite.

E completa: “Pelo lado cultural, histórico, tradicional, chegamos à questão da maturação. O que é o queijo Canastra? É o que nasceu para ser armazenado, para comer na época da entressafra. Mesmo havendo pessoas que entendem que o queijo tem que ser frescal para ser vendido, sou defensor da ideia de que precisamos voltar às origens. O que acontece do lado gourmet? O queijo advém do leite. Este depende de vários fatores como clima e período, características que se fixam mais, que se apresentam de forma plena no queijo curado. A bioquímica e a biologia do queijo são intrínsecas à região onde foi produzido. A flora é específica desta serra. Sendo características próprias, então vamos registrá-las no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, forçando rumo às mudanças necessárias na legislação. O sabor específico é intrínseco ao lugar. Queijo fresco é quase igual em qualquer parte. A cura é que confere identidade ao queijo, relacionada ao gosto, ao sabor, é a parte mais importante. Não existe outra Serra da Canastra no mundo”.

O interesse das grandes corporações, dispondo de bons argumentos na algibeira e, se necessário, também força de convencimento na cintura, é talvez o principal inimigo, já vimos. Mas existe também gente de dentro trabalhando contra. Um comprido caminho deve ser percorrido rumo à prática de preceitos de seriedade por parte de todos os elos da cadeia produtiva interna.

É importante fazer essa leitura das duas faces da mesma moeda. Devemos nos exercitar nesse cuidado. E, na medida do possível, os esforços devem evitar as soluções paliativas, de manutenção do status quo. Não é bom para a população as coisas se modificarem para continuar como estão. As ações devem tocar os fundamentos, no ser social, transformando, estruturalmente, as relações.

Os próximos anos, certamente, serão acompanhados pela expansão e pela mudança do perfil de demanda de alimentos. Os esperados crescimento e envelhecimento da população, reforçados pela urbanização e pela elevação da renda nos países emergentes, terão como consequência o aumento da necessidade de pão. Além disso, os anseios por um tempo melhor, mais saudável, o aumento da participação das mulheres na força de trabalho, a reinvenção das famílias e a homogeneização dos padrões de compra decorrentes da globalização e da difusão de produtos regionais contribuirão para mudanças nos hábitos e nas necessidades de munição de boca. O contexto mundial deve incentivar o crescimento do setor no compasso do avanço do processo de industrialização, levando, ao mesmo tempo, à elevação da renda familiar. Além de tudo isso, o cliente vai sofisticando suas exigências, se interessando também em rastreabilidade, bem-estar animal e sustentabilidade ambiental. A agropecuária continuará desempenhando relevante papel no crescimento econômico brasileiro, tanto nessa pressão pelo aumento da produção, mas também na sua contribuição para tentar fechar o balanço das contas externas do país.

Quem sabe um dia nosso bom queijo poderá começar a falar inglês, ser trocado por “verdinhos” e, assim, adquirir mais notoriedade?

Na festa de congraçamento de uma grande exposição, perguntaram para o “Seu” Teófilo sobre sua criação:

 

— Olha, o meu gado está perto de 20 mil reses. — respondeu.

O pessoal olhou de “esgueio” — sujeito exibido, contando vantagem pra cima da gente…

Ficaram, assim, resmungando, até que ele completou:

— Eu crio seis novilhas em parceria, no sítio do meu cunhado. É que ele é vizinho de cerca do maior criador da região!

Redirecionemos um pouco o foco, mirando agora sobre outra força entrante, pouco a pouco, formando corpo, delineando vultos sobre nossos horizontes.

Os tempos são de sinalização a favor da diversificação de geração de energia. No Brasil, o agronegócio se apresenta como via surpreendentemente alvissareira. A tendência, em princípio vantajosa, é produzir biocombustível para melhorar o perfil de nossa matriz energética. Além disso, a atividade apoiaria a fixação do homem no campo ao abrir possibilidades de cogeração rural e mais renda para o produtor. Mas, é claro, tudo depende da forma como será conduzida a distribuição. Se o Estado atuar efetivamente em favor do pequeno ruralista, “agarantindo” condições suficientes para ele apropriar os ganhos, aí teremos conseguido compor um círculo positivo de crescimento e prosperidade reais. Porém, se, ao contrário, a mão oficial se movimentar de forma mamulenga, segundo determinação alienígena, sob o comando dos fortes lobbies do capital, nesse caso a riqueza gerada, como sempre, será apropriada por poucos.

A agroenergia precisa ou deve abrir oportunidades para o homem rural. Mas ela pode, contado um tempo, converter-se em atividade de escala maior e ser abocanhada por poucos atores de vulto, sobrando para o pequeno produtor o papel de simples fornecedor de matéria-prima. Mais uma vez. Por isso, as associações de todos os tipos e a luta e o protesto de todos devem manter significativa influência política na cadeia de produção e assim a maior parte das benesses não seja carreada para os principais players. Cada litro de biodiesel produzido em instalações de porte significa centavos de dólar a menos nas mãos do produtor rural. A intermediação através de uma distribuidora de combustíveis significa mais dinheiro nos bolsos dos magnatas e mais desigualdade social. Além disso, a produção em larga escala avança sobre espaços do artesanato e “em riba” do seu conteúdo cultural, eliminando a agricultura cidadã, sustentável de serviços. Quanto maiores forem os novos empreendimentos, automatizados, de capital intensivo, menos desenvolvimento efetivo é possível. Já vimos várias vezes esse filme monótono.

Em uma das referências bibliográficas, li o seguinte trecho de um “inflamado discurso” do deputado Alcindo Guanabara: “Há, de fato, um mistério, o mistério da nossa progressiva miséria. Somos um povo que trabalha, um povo que produz, que tem, por assim dizer, o monopólio virtual de dois gêneros indispensáveis e não vemos o fruto de nosso trabalho, não usufruímos da nossa produção, somos cada vez mais pobres”. Foi proferido em 1895. (Não está errada a grafia, é século XIX mesmo). A história é antiga. Nosso suor é derramado em favor de terceiros. E a desigualdade continua grassando.

Em uma das minhas entrevistas pelas cidades da região escolhida, conversei com um comerciante de Carmo do Paranaíba. Disse-me ele: “O produtor rural, recebendo o pagamento do leite ou do queijo, vem aqui na minha loja e leva um chapéu, uma camisa, um pano. Os capitães empresários compram é em Nova York ou Paris”. Não perguntei para esse pequeno lojista se ele tinha pós-doutorado em Economia em Harvard, mas posso afirmar, seguramente: ele não é um “idiota social”.

Vários autores já comentaram sobre esse avanço da produção capitalista da agricultura, segundo modelo baseado em alta tecnologia, as plantations trazidas para o século XXI, com uma diferença central, para pior: altamente mecanizadas, dispensam mão-de-obra. Para o homem comum, o território se faz mais presente quanto mais significar construção social, quanto mais o espaço ensejar as práticas de grupo e a defesa dos seus valores. Uma usina de açúcar reduz essas possibilidades. O patrimônio deixa de ter função socioeconômica na sua plenitude. As propriedades perdem a identidade e se juntam num tapete único de canoilas, no qual o proprietário só consegue localizar seus limites se munido de GPS.

É necessário conter os excessos do capitalismo, assim aprendem as democracias, ouvindo Saramago, que vê muitas dificuldades na sua instauração em meio a tão forte poder econômico. Nessa ordenação, colocam rédeas para ver na arena “mais vencedores e menos perdedores”. Milhões de pessoas puderam ascender a melhores condições de vida com os ganhos obtidos, mas a desigualdade social ainda paira, não como um espectro intangível, uma distante névoa fantasmagórica, mas como uma crueldade nacional, bem visível, palpável, objetivamente identificada na reprodução da vida, na existência, de fato. Somos um dos dez campeões do mundo nesse torneio de maldade covarde.

À organização social, às instituições existentes nas localidades, cabe o papel de minimizar os efeitos danosos dessa perversa regra secular. Quanto mais estrutura exibir a sociedade, na participação efetiva de seus membros, melhores são as possibilidades de estancar a derrama, maiores são as chances de fazer brilhar na igreja local o ouro aqui produzido e não nas catedrais de países alhures.

Nos EUA e na Europa, os biocombustíveis são fortemente suportados por políticas sob premissas do aquecimento global. Parecer social. Esses países, independentes, detêm autonomia para defender o seu produtor rural, a sua terra. Ser social. Aqui, abandonando as coisas ao sabor do mercado, essa força invisível, superior, contra a qual nada se pode fazer, dizem, “esse princípio tão universal quanto à ideia de Deus”, se assim for recontada a história, então, tal qual aconteceu com o etanol, virá mais concentração da riqueza e aguçamento da desigualdade social. As cidades pequenas continuarão remoendo suas dificuldades, beirando a penúria, enquanto as imensas “Shangais” resplandecerão reluzentes. A maior parte dos grãos produzidos no mundo é comercializada através da intermediação ianque.

E mais: os biocombustíveis, entendidos como commodity final, por si só não necessariamente catalisarão efetivo desenvolvimento no meio rural. Resultados mais eficientes serão alcançados na agregação de valor, por exemplo, usando a bioenergia local em mecanização de atividades internas, na geração de eletricidade para uso doméstico, no transporte interno, no acionamento de bombas de irrigação e outras aplicações e/ou venda direta para o sistema nacional. Será bem-vinda qualquer alternativa cujo resultado final signifique ganho para o bolso dos produtores, minimizando o atravessador no processo produtivo. Garanta-se a entrada do pequeno ruralista cerceando a produção de larga escala centralizadora, característica da produção do álcool.

O problema do crédito existe, mas pode ser resolvido, basta a tal da vontade política deixar de sorrir tanto para o rico. Quando é solicitado pelos poderosos vira disposição determinada, em prazo curto, bem atendido. Quando é a vez do pequeno, ela é um vamos ver, quem sabe, há dificuldades regimentais a transpor.

Importa é a regulamentação protegendo o mais fraco e não seja ele esmagado nesta luta entre titãs. “Os burros brigam e os barris se quebram”, diz lá um antigo e afortunado provérbio italiano. A injustiça tem início na própria definição da pauta das reuniões. A iniquidade continua na elaboração da lista dos participantes. Em boa hora, se não já tardiamente, se exige mais transparência, “reconhecida há muito tempo como um dos antídotos mais poderosos contra a corrupção”. Como diz a expressão “o melhor antisséptico é a luz do sol”. Apoiando em Habermas, a ação somente consegue se comunicar com o fim colimado se expurgado todo intento estratégico enquanto pretensão de poder. Ela será tanto mais democrática quanto mais se despir da necessidade de exercer influência, quanto menos significar disputa de cargos, corrupção rejeitada na garupa. Finalmente, citando Pedro Demo, duas coisas pelo menos não devem ser permitidas para o Estado: uma é ele praticar o abuso privado de espaços públicos por não sentir o peso do controle democrático; outra é ele juntar forças com as potências para imbecilizar a população, ao manter a educação como eterna prioridade no fundamento da dinâmica da miséria.

O Brasil, guardando condições climáticas e disponibilidade de recursos naturais favoráveis em sua extensão territorial, detém potencial para expansão de suas fronteiras agrícolas a taxas relativamente elevadas, até 2023. Em contrapartida, o aumento do nível educacional, especialmente nas áreas rurais, rediscute a disponibilidade de mão-de-obra para a agricultura, se botar mais lenha na fogueira do êxodo rural. Visto assim, a agroenergia pode representar oportunidade e ameaça. Se o filho formado puder continuar na propriedade, ocupando-se da gestão dos novos entrantes, se for para trazer justiça, seja bem-vinda, apesar das contradições. Felizmente, cresce a consciência e a atuação da sociedade civil, compondo movimentos multissetoriais de acompanhamento do uso do solo e do desenvolvimento do ambientalismo. Em ajustada ressonância, cuida-se cada vez mais da educação ambiental e aprimoram-se os diplomas reguladores da atividade humana em geral, no sentido de condicioná-la ao uso adequado dos recursos naturais, puxados pela premissa básica da sustentabilidade.

A administração dos recursos e dos subsídios deve ficar de olho no percentual que, efetivamente, chega às mãos do produtor rural, qual a parte das benesses apoia e ameniza a dura vida no campo, transformando em benesse palpável. É preciso impedir desvios no meio do caminho. Para tanto precisamos otimizar os esquemas de distribuição, diminuir os intermediários ou minimizar a influência deletéria dos espertos atravessadores de sempre, não efetivamente componentes comerciais legítimos do processo produtivo, e que, contando com rede de relação pessoal bem construída, vislumbram apenas um meio de enriquecimento próprio em cada uma das novas oportunidades de troca. Sem nunca, ao menos, ter visto um pé de soja.

Queijo e biocombustíveis. Entre utopias e sonhos, permeando vontades e feitos, as cooperativas desempenham papel fulcral no processo de desenvolvimento. Elas constituem movimentos sociais portadores de futuro. O cooperativismo fomenta o estabelecimento de novas relações entre o capital e o trabalho, e formas de apropriação dos favores da produção, sob o império benfazejo de propostas comunitárias. Conceitualmente atadas ao desenvolvimento, as associações conferem mais força e maior independência dos grupos sociais. São mais mãos para abrir as portas de acesso a todas as bênçãos da democracia, renovada a cada raiar de aurora. Adaptando Ernest Renan, a cooperativa é plebiscito de todos os dias. É o templo do exercício do protagonismo para todos e da manifestação dos interesses de cada um. A prática do associativismo nela presente nutre um processo permanente de desenvolvimento de autopromoção, em cumplicidade com o individual e o coletivo, conquistando, incansavelmente, no cuidado de cada dia, a capacidade de crítica e de participação. Por ele, alcança-se o desejável crescimento econômico atado a um inequívoco compromisso social. Como corolário inevitável da sua presença, a autopromoção dispensa, de uma vez por todas, “as ajudas ao desenvolvimento”, as campanhas de assistência, a tutela, a caridade pública.

As cidades do interior conhecem esse mecanismo de proteção da riqueza gerada localmente. São Roque de Minas, recentemente, concretizou muito bem essa vantagem. Lá, homens e mulheres uniram esforços e gravaram história. Araram terreno fértil para o desenvolvimento material e social. Semearam o solo para colher os melhores frutos, tanto econômicos quanto de espírito comunitário.

Os interessados não podem deixar de ler o apaixonante livro de André Carvalho e João Leite sob o título “A cidade morria devagar: o romance de uma cooperativa”.19 Em escrita atraente, convidativa, difícil parar de ler, os autores narram o esforço da população de São Roque em geral e em especial de um punhado de determinados rumo à conquista do objetivo de montar uma instituição de apoio ao produtor rural. Discorrem com cuidado, carinho e propriedade todas as idas e vindas da cronologia do processo de criação, os enfrentamentos das muitas dificuldades e também emblemáticos exemplos de cidadania. Uma luta. É a saga de gente destemida, teimosa, no bom sentido, “um bando de loucos”, irmanados em torno da criação de uma instituição financeira em uma cidade falida, ávidos em reverter a aflita situação de um município à venda. Uma frente de mãos dadas pela “estrada do porvir”, peitando enormes barreiras, das intempéries naturais, das estradas precárias quase

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19 CARVALHO, André; LEITE, João. A cidade morria devagar: o romance de uma cooperativa. Belo Horizonte: Armazém das Ideias, 2004.

inviabilizando visitas e encontros, das dificuldades de comunicação, tudo sob o olhar vigilante das corporações do ramo, interessadas no fracasso da iniciativa, e sem contar as indefectíveis forças deletérias intestinas de sempre, os “espírito de porco”, os ciumentos e os invejosos, aqueles que se comprazem em simplesmente ver o circo pegar fogo. Um esforço hercúleo, servindo de exemplo para todos. O Brasil precisa menos de “vamos esperar amanhã”, de reuniões, de articulações, e mais mesmo é de gente assim, indignada, bravia, possessa.

O referido livro registra relatos pungentes de postura cidadã, levada para a prática por homens de estirpe, conscientes de seu papel perante a sociedade, certos de sua vinda a este mundo para fazer algo em favor de seus semelhantes. Um dos nobres exemplos de participação fala de uma voluntária socialização de bens pessoais, no mais legítimo exercício do wakf previsto no Islã, mandamento para o fiel dispondo de mais riquezas do que deveria enquanto muitas pessoas ao seu redor ainda não conseguiram atender suas necessidades em um nível honroso de vida. É o sentir-se responsável diante da sociedade que ainda não assegurou o mínimo digno de condição de vida a seus membros. É a mais plena e exemplar prática da definição antropológica do amor, lá, direta e inequivocamente, na ação que confere a outrem vantagens amplificadas de sobrevivência. O mais distinguido exemplo de cooperativismo, como deve ser.

Outras cidades empreenderam esforços semelhantes e continuam ativando a capacidade de participação, de discussão dos problemas, de zelo pelos seus destinos. Para o Dr. José Pessoa, a Cooperativa Agrícola de Cotia foi o “plasmador (de uma) nova revolução cultural e agrícola” na região de São Gotardo, condição persistente até os dias de hoje com a Cooperativa Agropecuária do Alto Paranaíba (Coopadap). Contudo, faço as devidas ressalvas se a participação comunitária ali aconteceu na ponta, despencada do alto dos interesses de olhos puxados.

A Emater também tem desempenhado função da mais apreçada relevância. Acode tecnicamente na certificação, nos programas de melhoria e no acompanhamento operacional da produção. Trata das relações institucionais estabelecendo convênios e intercâmbios, patrocinando e apoiando encontros, treinamentos, seminários, exposições, inclusive em capitais, concursos e festivais, locais e regionais, com júri e premiação, nos trinques. Em parceria com as associações, promove participações em feiras e exposições.

Está entrando em funcionamento o resultado de relevante trabalho desse tipo, um marco histórico na produção do queijo artesanal da região, importantíssima enquanto propulsionadora do desenvolvimento local. É o Centro de Qualidade de Medeiros: favorece a lucratividade, aperfeiçoa a cadeia de distribuição e garante a procedência junto ao comprador final. Mais uma profícua união de esforços de cidadãos, apoiados pela Emater, e, certamente, tantas organizações locais.

As empresas e as instituições, incluindo as prefeituras municipais, se fazem presentes, patrocinando os encontros, aportando apoio. São incontáveis as alternativas de participação sem arcar com custos, ou envolvendo muito pouco dispêndio e assim mesmo absorvido de forma imperceptível. Não faltam formas viáveis de colaborar. Desculpa não há. Vejamos.

As vitrines de uma loja central são excelentes para expor cartazes e produtos; um político influente pode conseguir recursos para abrilhantar o evento e apoiar na sua divulgação; as associações dispõem de contatos e relações propícias à difusão de eventos e à solicitação de apoio valendo-se de seu cadastro de associados; na área de incentivos fiscais são diversas as possibilidades de reencaminhar verbas, também sem ônus para as empresas; não custa muito a uma rádio ou um jornal ceder espaço para propaganda do vencedor, e por aí vai. Doações de brindes por parte do comércio e da indústria locais para premiação entram nessa conta.

As escolas públicas promovem debates, concursos literários e palestras, cuidando, desde a infância, da aderência com as coisas do lugar. Uma dessas iniciativas trouxe-nos quase uma centena de poesias sobre o queijo. Maravilha. Os frutos serão colhidos ao longo de toda a vida, em bom proveito para todos.

O Instituto Ellos de Educação, da Cooperativa Educacional de São Roque, mais uma iniciativa da Saromcredi, leva ensino de primeiro mundo para a infância e juventude locais. Entre as premissas de uma didática diferenciada destacam-se o fomento ao empreendedorismo, a prática dos preceitos de ética e de cidadania, e um estreito fortalecimento das conexões com as coisas da terra.

Eu desfrutei da feliz oportunidade de conhecer essa meritória empreitada. Percorri as instalações, apropriadas, e percebi o ambiente inspirando organização, solidez e certeza. Passei também por várias salas de aula em dia letivo normal, todas elas apresentando atmosfera lúdica, própria das crianças felizes.

Numa delas, a emoção se redobrou. A professora de sociologia discutia com os alunos de 16 anos os conceitos de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, propostos por Durkheim — a adesão à sociedade pelas semelhanças e pelas diferenças). Adiantando-se à academia, a educadora alçava aqueles jovens a condições superiores de conhecimento e vantagens para a vida. Uma maravilha! Na oportunidade não encontrei forma de me expressar sobre esta sua atuação benfazeja. Gostaria de ter conversado com os alunos sobre a grata memória que certamente guardarão para todo o restante de suas existências, daqueles ensinamentos e dessa visão, da escola e do corpo docente. Deixo aqui os meus parabéns para a mestra, com afeição.

Capítulo VI– Soprou um pedaço de queijo e dele fez o mineiro

De cada queijo espremido no “quartim”

irrompe a seiva nutriz da nossa maneira alterosa de ser.

O modo mineiro artesanal de processar o leite cru ocupa lugar honroso na seleta lista oficial de bens culturais de natureza imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Esse conceituado órgão vale-se de metodologia apurada para a identificação e organização do acervo, reúne materiais e cataloga as práticas da cultura sob estudo e, desenvolvendo análises técnicas, finalmente oficializa a sua identidade como pertencente ao círculo das nossas mais caras tradições referidas a saberes, celebrações, formas de expressão e lugares. Ora viva, afinal, ufa, após tanta luta, nosso queijo perfila ao lado de importantes referências nacionais como o samba do Rio de Janeiro, o Círio de Nazaré, a Feira de Caruaru e demais pesos-pesados da nossa brasilidade.

Ele é fabricado praticamente por todo o Estado de Minas Gerais, mas para o Iphan são quatro as formas tradicionais de se fazer queijo nas Alterosas. Elas correspondem à “tetralogia” Serro, Canastra, Araxá e Salitre, esta última também conhecida como Alto Paranaíba ou Cerrado.

O Programa de Melhoria da Qualidade do Queijo Minas Artesanal, da Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais (Seapa) também demarcou essas quatro regiões produtoras do Queijo Minas Artesanal, cada uma detendo o seu “modifazê” próprio, o seu savoir faire único, o seu know how exclusivo, e suas condições locais peculiares a lhes garantir identidade própria.

A classificação do IMA, mesma coisa: também distingue esses quatro teores, no dizer caipira, mas com diferenças de delimitação.

Levando em conta características edafoclimáticas das regiões produtoras do queijo, bem como aspectos, técnicas e materiais distintos e, também, mecanismos de apreensão, há estudos desembocando nessas mesmas quatro procedências de feitura distintas já citadas. Esses indicativos oficiais definem, com precisão, os respectivos domínios.

Já a Emater considera uma quinta área produtora em Minas, a dos Campos das Vertentes. Muito justamente, a meu ver, seja pela representatividade da produção, seja pela antiguidade. Não me lembro de ter visto um exemplar desses em prateleiras retalhistas aqui em “Belzonte”. Vou “espiar” mais detidamente. Se confirmar a sua raridade talvez o apreciam muito bem, consumindo tudo por lá mesmo, na Zona da Mata, Sul de Minas e, “cuíca”, no Rio de Janeiro.

Vejamos com mais detença cada um desses mineiros da gema.

O Serro nasce junto à cadeia do Espinhaço, nos seus flancos divisórios das águas dos rios Doce, Jequitinhonha e das Velhas, sob o olhar altivo do Pico do Itambé. Ele é filho da região formada por dez municípios: Alvoradas de Minas, Conceição do Mato Dentro, Dom Joaquim, Materlândia, Paulistas, Rio Vermelho, Sabinópolis, Santo Antônio do Itambé, Serra Azul de Minas e Serro.

A demarcação Campos das Vertentes arregimenta quinze municípios: Barroso, Conceição da Barra de Minas, Coronel Xavier Chaves, Carrancas, Lagoa Dourada, Madre de Deus de Minas, Nazareno, Piedade do Rio Grande, Prados, Resende Costa, Ritápolis, Santa Cruz de Minas, Santiago, São João Del Rey e Tiradentes.

(Mapa de Minas com as cinco regiões produtoras)

Fonte: site da Emater

As outras três “espécies”, vizinhas, são oriundas de um tríptico paisagístico do lado de cá do São Francisco, mais especificamente a oeste do caudaloso Rio Indaiá, agrupados na base do Triângulo Mineiro. São trinta e sete municípios, somando área total de 50,7 mil km2, de Conquista a São Gonçalo do Abaeté, de Piumhi a Vazante, com centro geográfico aproximado em Serra do Salitre. O censo de 2010 contou, arredondando, 734 mil almas nesse espaço privilegiado.

Tipo Área (km2) Habitantes Hab/km2
Canastra 7.594 75.883 10
Araxá 13.614 196.884 14,5
Salitre 29.471 461.156 15,7
Totais/Média 50.679 733.923 14,5

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

Na produção do queijo de leite cru, essa trinca forma um território específico, delimitado por um conjunto de atividades produtivas interligadas entre si através de raízes históricas, tanto da ocupação quanto da construção do patrimônio cultural.

Na parte sul, está o Canastra. Seria o legítimo, original, dádiva de sete municípios, ocupando a menor área entre as três. Ela é definida pelos três vértices, Tapiraí, Piumhi e Delfinópolis, contendo Bambuí, Medeiros, São Roque de Minas e Vargem Bonita. Enquanto Delfinópolis é banhada pelo Rio Grande, os demais seis municípios são amigos de infância do São Francisco. Piumhi e Vargem Bonita, pela margem direita, e os demais à rive gauche. São 1.529 produtores empilhando 5.800 toneladas por ano, ou seja, na média de dez preciosidades prensadas por cuidadosas mãos, todo dia, faça chuva ou faça sol. Uma produtividade cerca de 20% superior, comparativamente às duas regiões irmãs.

(Mapa com os municípios das três regiões)

Fonte: Cartografia do autor

Na região central, dez municípios oferecem o Araxá. É um triângulo formado por Pedrinópolis, Sacramento e Campos Altos, abrangendo Araxá, Conquista, Ibiá, Perdizes, Pratinha, Santa Juliana e Tapira. Tirante Sacramento e Conquista, ambos também às margens do Rio Grande, os outros oito municípios se situam na pequena mesopotâmia delineada pelos rios Quebra-Anzol e Araguari, da bacia do Paranaíba. Os 943 produtores desse naipe totalizam uma produção anual de 2.755 toneladas. Cada patroa, em cada propriedade, prensa, portanto, cerca de oito peças por dia. Notícias recentes incluíram Uberaba nessa região. Mas no site da Emater ainda se encontra essa composição com dez figurantes.

Os vinte meio-irmãos da família Salitre na parte norte nascem no pentágono definido por Abadia dos Dourados, Vazante, São Gonçalo do Abaeté, Santa Rosa da Serra e Patrocínio, envolvendo Arapuá, Carmo do Paranaíba, Coromandel, Cruzeiro da Fortaleza, Guimarânia, Lagamar, Lagoa Formosa, Matutina, Patos de Minas, Presidente Olegário, Rio Paranaíba, São Gotardo, Serra do Salitre, Tiros e Varjão de Minas. Uma linha quebrada imaginária, partindo de Santa Rosa da Serra, passando por Presidente Olegário até chegar a Vazante divide suas veredas em duas bandas. A oriental pertence à bacia do São Francisco, na sua margem esquerda, e a do sol poente participa da formação do imenso Paranaíba, nas duas margens. Nesse distante sertão, 6.112 produtores oferecem 17.357 toneladas de queijo todos os anos. Uma média de oito queijos por dia por queijeira, a mesma da região do Araxá.

No balanço geral chega-se a um total de 8.500 artesãos produzindo 26 mil toneladas anuais, no arredondado, 25 milhões de redondos, cada santo ano. Muito pouco. Somente um queijo a cada dez meses para cada mineiro. Antes fosse. A maior parte dessa produção é sugada pelo buraco negro paulista e, sendo assim, a maioria dos nossos patrícios passa bom tempo sem ver uma dessas delícias conterrâneas sobre a mesa da sua casa. “Uai, sô, então tá danado!”.

Curiosidade: colocando os nomes das cidades mineiras em ordem alfabética, nossa Abadia dos Dourados encabeça a lista. E é a segunda em todo o país (a primeira brasileira a ser chamada no dia do juízo final também é Abadia, de Goiás).

Cada rincão, cada gleba, apropria uma diferença qualitativa perceptível das condições, podendo pretextar a existência desses citados três tipos de queijo. Em 2004, Renê Bertolet registrou as características geomorfológicas permitindo a delimitação dessas regiões de produção.

João Leite não vê tanta diferença assim entre os produtos da parte sul para justificar a separação. Para ele, esta segregação em três fatias poderia advir de anseios de divisão atados à disputa de poder, de inferência política, interesse econômico ou tudo junto. Faz coro com ele João Dias, para quem em todo o Brasil existem somente cinco tipos de queijos telúricos, terroir, ou seja, trazendo no seio as características gastronômicas correspondentes a condições naturais e de produção específicas de cada lugar. São eles Serra da Canastra, Salitre e Serro em Minas, Coalho em Pernambuco e Serrano nas plagas gaúchas. Quem sabe por vaidade sub-regional, querendo puxar sardinha para a sua lata, no proveito exclusivo, particular, criaram essa subespécie Araxá, portanto dissidente do Canastra. Sendo essa a razão, talvez não tenha sido conveniente para o grupo, trata-se de desunião e, nesse caso, há perdas a considerar.

Contudo, para a Emater existem inúmeras particularidades físicas e naturais (altitude, relevo, solo, vegetação, microclima e bactérias) e sociais e culturais relevantes garantindo à produção local especificidade suficiente para determinar a emancipação araxaense. Esse queijo traria carteira de identidade própria na consistência, textura, formato, peso, coloração e sabor.

Em entrevista virtual, o experiente Bruno falou de percepções sobre a variação na preparação, na proporção e tipo dos ingredientes, pressão das mãos e até tipo de pano utilizado. “A elaboração muda de acordo com o costume de cada fazenda, diferentes entre si. Cada uma delas é um mundo próprio. Para discutir o sabor de cada queijo devemos ter em conta que estamos falando do mesmo tipo de queijo, elaborados segundo a mesma tradição geral e, por isso, gustativamente todos apresentam muitas coisas em comum. Mas há diferenças entre eles, vemos. Se provamos dois queijos de duas fazendas dentro de São Roque de Minas, podemos perceber que são diferentes.”

Nestas minhas considerações vou adotar as três citadas reservas do oeste mineiro. Nem tanta argumentação eu preciso invocar para aceitar diferenciação de sabores: basta o nacionalismo. Explico. Se cada esquina na França cacareja um queijo seu, próprio, também aqui devemos festejar nossa diversidade.

Em termos de relevo, clima e vegetação nesta nossa região prevalece uma combinação alternada, aqui e ali, de três tipos básicos de paisagem: os campos, os cerrados e as matas de galerias em resquícios da exuberante vegetação atlântica. Os campos são os mais comuns. Do sul, seguindo para o norte, através dos municípios citados, as matas vão diminuindo e os cerrados vão ocupando a cena. Dessa maneira, é de se esperar que o queijo produzido numa fazenda do distrito de Retiro da Onça, em Lagamar, agreste, apresente diferenças finais incontestes se comparado a um delfinopolitano, no refresco da sombra, ouvindo a toada encorpada do escorrer do Rio Grande.

Mas as características variam até mesmo em uma microrregião. O importante e rebuscado estudo do Prof. Jonas Silva, analisando os atributos sensoriais (odor, sabor, cor, textura, formato e untuosidade da casca) concluiu pela existência de vários tipos de queijos artesanais, decorrente de pelo menos quatro padrões básicos de fabricação.20 Contudo, para nossa alegria, apesar de tantos matizes, eles guardam um jeitão comum, uma marca de nascença, um tique de família e, mais importante, são todos artesanais, produzidos segundo processo manual mais ou menos igual.

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20 Cf. SILVA, Jonas Guimarães; ABREU, Luiz Ronaldo de. Características físicas, físico-químicas e sensoriais do queijo Minas artesanal da Canastra. 198 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Lavras, Lavras, 2007.

As classificações costumam trazer no bojo distorções inevitáveis. As nuances de sabor vão diminuindo com a aproximação geográfica até chegar a uma distância mínima somente identificável pelos iniciados, ou então lendo o rótulo. Por exemplo, dois barrancos fronteiriços do Rio São João confundem até os “bés” da aflição matutina chamando pela mãe, mas eles recebem denominação oficial diferente. Mais distância deve haver entre um abadiense, prensado junto à foz do Rio Preto, na divisa com Goiás e outro de cá perto da Estalagem, às margens do Rio Quebra Anzol. No entanto, eles são nominal e oficialmente iguais. Eu consegui captar diferenças entre um Carmo do Paranaíba e um Rio Paranaíba, ou entre um Guimarânia e um Cruzeiro da Fortaleza, e são cidades vizinhas, quase de grito.

Há ainda os distinguidos, os primeiros da sala de aula, summa cum laude, já citei alguns. Entre eles, temos, em Lagoa Formosa, a fazenda Babilônia, de propriedade do Sr. Paulo de Oliveira Santana, no Morro do Pião. Produz um queijo de primeiríssima linha, inclusive um de dimensões também diferenciadas, quase o dobro do normal. O filho, Júlio César, comercializa a produção diretamente e com carinho. Os poucos privilegiados que conseguem obter uma peça maturada admiram o tom dourado uniforme de sua massa, consistente, macia, sorvem o seu olor suave, são agraciados com um dos mais refinados sabores, coisa fina. Maravilhoso! Se já exaltamos o Canastra Real, Lagoa Formosa pode anunciar que também produz queijo coroado. A citada fazenda está levando avante o processo de certificação. Falta somente acertar os acessórios, porque o principal já dispõe. Fica a sugestão, oficializar o Salitre Real.

Queiramos ou não, o desmembramento vai-se instalando aos poucos. Já se encontra nas bancas dos supermercados de Minas e do Mercado Central de Belo Horizonte produtos das três origens da nossa banda aqui. Canastra e Araxá já faz tempo e agora encontrei selo do Cerrado. Ora viva, embora a classificação não esteja totalmente institucionalizada, regulamentada e fiscalizada é bom então erguer a cabeça, abandonar o jargão “tipo Canastra” e assumir de vez, Queijo Canastra, Queijo Araxá e Queijo Salitre e acabar com os espaços ainda existentes sem dono, anômicos, faltando regra. Por exemplo, vendem queijo “Canastra de Araxá”, ou “Canastra de Cruzeiro da Fortaleza”, compondo uma impropriedade na nova nomenclatura. Os balcões frigoríficos oferecem também Canastra, de marca Araxá, produzido em Carmo do Paranaíba. Vi propaganda na Web de um legítimo queijo Canastra oriundo de Campos das Vertentes. Afigura-se nesses casos, no mínimo, um sério problema de identidade ou de dupla personalidade. Também vendem Queijo Canastra São Roque não fabricado lá, só exploram o nome. Não existe legislação a respeito? Quem registra primeiro, mesmo não sendo nativo, pode se apropriar da origem, induzindo a falsidade? As associações comerciais dos municípios podem e devem apurar responsabilidades sobre procedência e sustentabilidade social dos projetos e sedimentar uma rígida aplicação de sanções, indistintamente, nos casos de violação das regras. Essa premissa desemboca na rastreabilidade dos processos de produção em toda a cadeia. Em suma, importa desenvolver um sistema mais resistente a deturpações, ou pior, fraudes.

Em conversas junto a produtores, comerciantes e clientes, na porta da fazenda, nas caminhonetes ou junto a balcão de loja, obtive interessante informação: nas padarias e supermercados de Belo Horizonte só entregam produto com o rótulo. É exigência da fiscalização, dizem, mas ela é afrouxada para os compradores do Mercado Central, onde a maioria das peças é vendida sem identificação de origem. Qual a razão dos dois pesos e duas medidas da Vigilância Sanitária? Há diferença de consumo nas diversas classes sociais?

Oficializadas as três áreas, a terra da Dona Beja não tem mais o seu nome associado ao famoso queijo Canastra. Todavia, de posse da denominação homônima exclusiva do seu produto, cabe à famosa estância hidromineral a distinção de uma produção específica a ser explorada, tal como conseguiu estabelecer para os famosos doces do lugar. O poder público, as instituições e a população em geral devem programar vigoroso processo de divulgação sobre essa independência de rótulo. Não será tarefa fácil desatrelar o vínculo centenário, quando Araxá era importante centro da distribuição do Canastra. A relação se arraigou ao longo do tempo, fundindo os dois nomes.

A respeito de divulgação, cito Fernando Silva e Myriam Caetano, em competência específica desta complicada área de atuação. Em artigo bem cuidado, buscam identificar valor cultural, histórico, geográfico e simbólico. De suas pesquisas concluem pelo registro e a certificação de origem controlada como fundamentais para resguardar a cultura para perpetuar o modo antigo consolidado de elaborar o queijo, distinguindo os seus símbolos dos demais. Finalmente, indicam a necessidade de ações de marketing, mormente no âmbito da promoção.

Vejamos agora, rapidamente, dados sobre a produção do queijo.

As leis nº 14.185 e 14.581, bem como o decreto de regulamentação nº 42.645 e as portarias respectivas contam dez etapas de produção artesanal do queijo. Aqui, a bem da didática, vou decompor o processo de fatura (ato ou efeito de fazer, feitura), similar nos três rincões citados, em um número de passos correspondente a quantos eram os primeiros principais seguidores de Cristo (e não é difícil associar cada uma dessas etapas ao caráter central de cada um dos apostolados):

01 – coleta do leite (ordenha, filtragem e acondicionamento);

02 – adição do coalho (produto industrializado);

03 – adição do fermento natural (ver detalhes a seguir);

04 – coagulação (até 90 minutos segundo as atuais normas sanitárias);

05 – corte da massa (coalhada) e mexedura para dessoragem inicial;

06 – acondicionamento da massa em fôrmas (metal ou plástico);

07 – espremedura-prensagem para dessoragem complementar;

08 – primeira salga, em um dos lados;

09 – segunda salga (12 horas após a primeira), virando de lado;

10 – retirada da fôrma (48 horas após a segunda salga);

11 – maturação por 5 a 10 dias;

12 – grossagem para acabamento estético (com ralo especial).

Na etapa três é utilizado o pingo, soro recolhido na drenagem durante a noite após a primeira salga na produção da véspera. Funciona como fermento lácteo natural e carrega bacilos lácticos específicos do microclima, compondo a preservação da identidade.

Nossos queijos são mais secos comparados aos do Serro porque as etapas seis e sete incluem extração complementar do soro valendo-se de um pano, branco, poroso e sempre bem limpo para atender a preceitos de higiene. Seu uso é secular. Durante o processo de dessoragem, é batido levemente para desentupir os poros. Às vezes, apoiam sobre uma peneira para coletar fragmentos de massa, otimizando o aproveitamento.

A prensagem manual, fundamento da artesania, completa a dessoragem, confere consistência e molda a massa. A prática recomenda não apertar excessivamente para evitar “emborrachamento”, como sói acontecer — coisa boa exige cuidado, paciência, arte).

As fôrmas, antigamente, eram de madeira, pesadas e mais caras na hora de repor por desgaste, quebra ou extravio. Hoje são de plástico, com vantagens na limpeza fácil, na leveza e no preço. Na opinião do Bruno, essa mudança trouxe alterações no sabor e no aroma. Ele emite esse parecer comparando países onde a madeira ainda é amplamente usada, conferindo características vetadas ao sintético.

Ainda no mister da fabricação, é importante notar, o queijo da região é elaborado por mãos femininas. Na imensa maioria das fazendas visitadas, a prensagem é ofício das mulheres. Conservam, assim, suas heranças, enquanto descendentes do processo análogo importado da metrópole. Diferentemente do que ocorre no Serro, por aqui ficou preservada essa divisão sexual do trabalho, conduzindo a mulher para os afazeres da casa. Segundo alguns autores, a proximidade das minas tornou-os mais citadinos, dissolvendo essa divisão, juntamente às primeiras arrancadas da libertação da mulher.

Li por aí: as mãos do “sexo frágil” são normalmente mais limpas e… mais quentes. Um vídeo sobre fabricação do queijo lá na Lusitânia confirma essa hipótese empírica, chamando a atenção para um fato curioso: se a pessoa é “mais fria”, deve espremer mais tempo. O calor passado no processo de prensagem pode cumprir papel na constituição final do produto. Não se vê nas queijeiras mulheres com luvas, pois estorvam e devem isolar termicamente.

Existem exceções quanto ao gênero. A excelência da Chácara Esperança, em Medeiros, é termo do esforço do casal e dois filhos, empatado, dois pares de mãos de cada sexo. (Não entram os quatro na queijeira, todos juntos, claro).

Nessa visita, registrei um detalhe interessantíssimo: o do cuidado como premissa de qualidade. Segundo Dona Helena, o marido é o mestre do corte da massa (etapa 5). Para ele, esta ação é oportunidade de realização pessoal. E o faz após concentração e estudo, iniciação e ciência, lapidando um diamante bruto. Quando é ele quem separa as porções da coalhada para colocar na fôrma, com calma, filosofia, o resultado é bem diferente, rende mais e a massa fica mais suave, com a umidade certa. Luciano faciebat. Nas minhas leituras, encontrei suporte científico para essa constatação. O estudo de Viviani Melo avalia os efeitos do corte da massa sobre o teor de umidade, o rendimento e até na contagem dos micro-organismos.21 Mais uma vez, a mão do homem fazendo diferença. De novo, é a presença humana montando uma identidade própria. (As máquinas poderiam compor esta sutileza?). Assim, vários preceitos e regras são comuns a todos, mas sobra ainda uma boa gama de possibilidades, onde cada um pode exercitar a sua maneira de ser, reproduzir a sua vida, promover-se na sua competência, regozijar-se na criação. É um procedimento artesanal, no concurso da força de trabalho familiar. E nenhum deles mede com pipeta, na precisão de microlitro, o volume de pingo ou de coalho que será vertido sobre o leite recolhido.

O esfarelado resultante da grossagem no último passo, a rala, pode ser utilizada na receita de pão de queijo, broas e demais quitandas. Aqui e ali é aproveitada para confecção do “merendeiro”. Perder? Nem pensar. Seria pecado contra a vida, crime inafiançável ou mais.

Um parágrafo de pausa para divagação. Esse nosso bem, que também o é imaterial, pode ter sido originário dos Açores, aliás, o nosso assemelha-se mais ao produzido em São Jorge, uma das ilhas. Contudo, por tradição, dizem, os antecedentes do nosso “queijo de leite de vaca cru” remontam à Serra da Estrela. Gosto mais dessa versão (infelizmente falsa), porque ela nos convida para uma interessante comparação geográfica. Lá no Trás-os-Montes nascem dois rios importantes, o Mondego e o Zêzere. Aqui no nosso Baú, pelo lado oriental, também escorre uma dupla de peso, sertaneja da gema: o “velho Chico” e, próximo ao pé da serra, o Araguari. Aquele inicia sua caminhada rumo oeste, engatinhando, “pedindo colo e carinho”. Logo em seguida, emulando o Mondego, vacila indeciso, não sabe bem para onde quer ir, “caça rumo” e resolve seguir para o sul. Mancada de aprendiz, mal se ergueu sobre os pés e experimenta um sonoro tombo. Refeito do grande susto, toma nova direção agora olhando o leste, mas, novamente volúvel, “qual pluma ao vento”, muda de opinião, vai-se retorcendo e, então, já moço feito, segue, finalmente, em direção ao setentrião. Assim, durante um pequeno percurso que não chega a 100 km, ele rodopiou pelos quatro pontos cardeais até optar por assumir o seu papel de integrador de cinco Estados nacionais. Já o Araguari, mais decidido, bem aconselhado pelo Zêzere, tão logo viu a luz do dia já sabe muito bem para onde quer ir. Desde a nascente, determinado, segue para o noroeste e vai compor o Paranaíba, corre rumo ao Paraná, da bacia intercontinental do Prata.

Ah, os rios! Como é proveitoso sentar sobre um tronco qualquer às suas margens e ficar ali, um tempo bom, ouvindo todas as histórias que eles têm para nos contar, enquanto vai desfilando imponente, vaidoso em seus “70 mil séculos”.

Retornemos aos nossos pastos e currais.

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21 Cf. MELO, Viviani Helena de. Efeitos do tamanho do grão de corte da massa sobre alguns parâmetros pré-estabelecidos do queijo Minas artesanal Canastra. 2009. 41 f. Monografia (Especialização em Processamento e Controle de Qualidade de Carne, Leite e Ovos) – Universidade Federal de Lavras, Lavras, 2009.

Quanto à maturagem, assim como o vinho, no queijo de leite bruto é demandado um tempo ideal de cura (a norma determina vinte dias). Segundo dizem, ele precisa dessa incubação para tirar seu RG, compondo os dados de “textura, aroma, cor, sabor e acidez”, além da apresentação tradicional com sua casca levemente endurecida de cor e sabor mais encorpado. Alguns dados da certidão de nascimento mudam com o tempo.

Uma corrente defende a tese segundo a qual não é o leite cru em si que garante a identidade, mas o capim, o clima e o processo de feitura e, nessa perspectiva, o problema sanitário poderia ser resolvido através de termização (pasteurização mais branda) sem perdas das características. É um exemplo de como uma verdade pode ser distorcida para apoiar deduções a favor. De fato, o raciocínio começa bem ao convocar muitos atores, antes e depois do leite minar das tetas da vaca, mas falha quando esconde o fato deste trazer consigo o código de suas origens e nele, milhares de micro-organismos eliminados no processo de aquecimento. Além disso, não descreve o processo após a pasteurização, nada diz sobre as máquinas, abolindo a artesania. É outro queijo, com gosto diferente.

A braquearia vem substituindo o capim nativo. A genética tem entrado em ação também, na reprodução e na alimentação. Tetas e leites diferentes geram novo produto, com aroma e sabor diferentes. Assim, a rigor, trata-se de produção nova, em tudo, no leite e, na sequência, o queijo. Pode ser igualmente bom e até meio parente, mas com novo “pedigree”. Certamente, degustamos hoje algo com elenco sensitivo, comparativamente àquele que teria experimentado Saint-Hilaire — se existia naquela época por aqui, era mais tosco.

A feitura do queijo artesanal mineiro é simples, mas carece de muito cuidado, repito. Embora esteja bem presente a motivação pecuniária, sobrevive na elaboração segundo a mesma prescrição básica, já lá se vão quase dois séculos, independentemente das mudanças sociais à sua volta. Sendo assim, desfruta de posição privilegiada na defesa de valores culturais nesta arena onde atuamos segundo um script de mudança constante e rápida das “verdades eternas”.

Tomando emprestado de Gilberto Freyre, uma receita médica dura tanto tempo quanto o paradigma que a fomentou. Deveras. A ciência e a tecnologia caminham alterando conceitos, métodos e princípios ativos. Descobrem-se novos processos e aparecem novas bulas. Das antigas, fica somente a memória. A formulação atual das Pílulas de Lussen não deve ser a mesma de antanho, mas o Canastra continua sobrevivendo, processado segundo o mesmo fundamento. Dizem que a Emulsão de Scott inclui agora, na formulação, o “inconfessável” óleo de soja, mas o Canastra prossegue firme na sua elaboração original, centenária, cultural.

Mais uma diferença importante vem à tona prontamente. Não existem segredos maçônicos embutidos no receituário utilizado pelo artesão do queijo. Não é conhecimento patenteado, não se paga direito de propriedade e, muito menos, royalties. Assim como a nossa cachaça, não se escamoteia sabedoria, não é uma fórmula mágica transmitida de pai para filho, geração após geração, em ritual misterioso, envolto em brumas druídicas. Longe de ser um mistério guardado a sete chaves pelo clã, herdado monopolisticamente por iniciados em pajelança de noite de tempestade. Menos ainda exige láurea em curso na Sorbonne. Sem mágica, prestidigitação, cada um leva seu jeito, mas no cuidado especial e por ação da natureza, a cada canto premiando com especificidades, no capim, no ar, na temperatura, na altitude e na vontade de fazer algo seu, específico.

Cada recanto da Europa exalta as excelências do seu vinho, único, bênção de um solo sem similar. Cada encosta entoa em prosa e verso suas elegâncias e reflexos. Assim também cada queijo de leite cru, de “cada serrania distante, de cada bosque verdejante”, há de guardar olor e paladar específicos, robustos, com personalidade, excelentes para degustação alongada. Se eles lá nas “estranjas” esnobam os frutados, nós aqui louvamos os relvados, até onde não mais poder, na mesma riqueza de pródiga variedade. Saboreando um legítimo, maturado, com um tiquinho de concentração, pode-se cheirar o leite, forte, sentir o capim, e até ouvir o mugir do gado, em despreocupada e paciente bonomia, “o bafo curto, os fungamentos, o urro tossido e raro berro triste… tão corpulentos, tão forçosos… o couro dobrado de mole… lá deitados… todos espiando para um lado só, esperando o romper da aurora… espera sem esperanças” — assim se lê numa belíssima e comovente pintura de Guimarães Rosa.22

E recomendo não deixar de perceber o quanto é abençoado o lavor de todas as mulheres rurais, uma vida de doação junto à terra, sacrificada, mas exemplar. Por elas pode-se perceber a existência original da espécie humana, sem separação entre o ser e a natureza, no sentido mais completo, em um trabalho não alienado. Uma luta, sem fantasia, na lida com as agruras de todos os tipos e cuidados, e também com as ciladas e a tocaia desses bichinhos, as bactérias, habitantes da massa alva, densa, caprichada.

“Olhando o queijo na forma, a beirada arredondando, não querendo formar a quina, já se pressente uma tristeza, toda uma manhã de trabalho perdido, dá vontade de jogar tudo fora, ih, é custoso demais”, lamentou-se uma artesã, desolada, sentada no banco do alpendre. “Aconteceu também em sítios vizinhos, ontem foi pior, um queijo virou dois”, complementou o marido. E eu confirmei que o problema se espalhara, pois eu tinha passado por fazenda vizinha naquela manhã e a proprietária também se queixava da perda.

Se não forem obedecidas às condições sanitárias, a peça apresenta essa “hipertrofia”. José Menezes vê mais. Para ele, “o curral de ordenha e a queijaria são espaços de tranquilidade e não de convivência e sociabilidade. Aí exige-se serenidade e parcimônia, higiene e pouco trânsito de pessoas. As vacas escondem o leite e o queijo incha se eles não forem ambientes saudáveis. Todos os cuidados aí são responsabilidades do vaqueiro e do queijeiro, e cobrados ou divididos com o proprietário da fazenda, quando este está presente na propriedade”.

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22 Cf. Rosa. J. G., 1998.

Já no escritório da Emater, enquanto os técnicos definiam as providências a serem tomadas, confirmavam o pré-diagnóstico identificando, inclusive, as possíveis causas. Essas ocorrências de perda da produção tendem a se repetir a cada ano, coincidindo com o início das chuvas e do calor (até meio tardio em 2010). Durante o inverno as atividades microbianas reduzem o ritmo, “hibernam”, e, traiçoeiramente, induzem o artesão a um relaxamento dos preceitos de higiene, protegido na segurança do termômetro encolhido. Chega o verão, eleva-se a coluna de mercúrio e desembarca a umidade, o melhor dos mundos para as bactérias, justamente quando o cuidado não está tão presente — entra atrasado na história, paga o preço da imprevidência pela distração.

Segue-se o bote armado do capital. Aplicando o velho princípio “nada se perde, tudo se transforma”, o queijo “desandado”, mesmo assim nestas condições, dilatado, obeso, pode ser aproveitado. Vira pão de queijo ou parmesão. Mas é destinação de menor valor e, portanto, o preço cai. O ruralista, lá no início da cadeia, paga a conta. Acorda de madrugada, enfrenta toda a faina, sem desculpa para cansaço e, ao final, soma o revés na rubrica de perdas. Um filme exibido e “reprisado”. O primeiro e o derradeiro elo da corrente, na geração e na necessidade final, são os mais frágeis, os mais inermes. A vida é muito difícil. Pelo menos agora, com o apoio da Emater, o produtor traz cientificidade ao quotidiano. Antigamente, diziam: “Ih, cumpadre, ontem passou um conhecido aqui, botou olho gordo, hoje os queijo tá tudo inchado!”. Hoje, sabem, o “despacho” do estranho não veio do mal-querer, das hostes que negam a criação. Inocentemente, ele pode ter trazido aquelas indesejáveis para o ambiente limpo, ou ensejado a sua entrada no enredo. Não se trata agora de chamar o bom padre para exorcizar, muito menos as comadres para rezar novena, mas cabe, isto sim, limpar a área, as instalações, as roupas, os utensílios, as mãos. Ou seja, menos mistério, mais controle. É uma mudança importante de valores e de crenças. Passam a se ocupar das coisas do espírito apenas no seu campo de pertencimento, nas horas mais alentadas de cada jornada que se cumpre.

E é esta a vida, a luta “no mato”, a peleja do artesão, dia após dia, trezentos e sessenta e cinco vezes cada ano, sempre santo na terra, abençoada tantas vezes pelo trabalho. O homem se renovando a todo o momento, no encontro objetivo com a sua existência, dura e simples, desde “em antes” de raiar a aurora até poder repousar o corpo fatigado à noite. Dorvalino Campos Júnior, do Serro, arrematou muito apropriadamente, construindo literatura: é “uma parceria silenciosa entre o homem, terra, rocha, rios, capim, vaca, clima, história e bactérias”.

Vejamos agora um pouco sobre as maneiras e as formas das quais nos valemos para servir e apreciar o nosso queijo, também segundo as percepções alcançadas.

O bicho-homem come de tudo, é onívoro, polivalente, na herança dos primeiros antropoides, caçando e fazendo coleta, sempre com fome e “a qualquer coisa se atrevia”. Mas já no final do Pleistoceno Superior, estabelecido o Homo sapiens sapiens sobre a face do planeta, a humanidade iniciava sua relação com sementes, forragem intensiva e criação simbiótica de animais, eu te alimento, mais tarde você me sacia a fome. Pouco a pouco, foi montando complexidade cada vez maior, de conhecimento e de integração cultural na medida do avanço das novas descobertas e invenções sociais, de novos instrumentos e de técnicas mais elaboradas de produção. Cada ferramenta “craneada” ao mesmo tempo reinventava um novo homem para manuseá-la. E vice-versa, todo dia, a cada instante. Teoria e prática, pensando e fazendo, perguntando e respondendo.

De lá para cá, até chegar ao homem moderno, de forma sempre mais evidente, o principal da “natureza” do homem não nasce com ele, mas sim o que ele vem a ser sob a influência das interações sociais, de produção da sobrevivência. Já comentei como isso se dá, por exemplo, no ato da amamentação, um dos primeiros passos externos de aquisição da socialização, uma aula inaugural dos anos básicos da interação social, o lactente regulado pelo ritmo da mãe, nem sempre coincidente com suas necessidades fisiológicas, mesmo apesar de ruidosamente expressas nos seus apelos de pregas vocais novinhas em folha.

Seguindo, no avanço da infância, ingerimos alimentos sólidos e aprendemos a gostar disto ou daquilo, muitas vezes sem poder exercer vontade própria. Comemos cobra no Oriente, farinha no Nordeste e escargot alhures. Bebemos café feito com grão com trânsito pelos intestinos de guaxinim, licor curado com pênis de veado flutuando na garrafa e tantas coisas mais, no compasso orquestrado pela sociedade na qual vivemos. Mais recentemente, estamos adorando hamburguer feito de “coisa”. Continuamos onívoros. Comemos secreções rançosas de glândulas mamárias (queijo), fungos (cogumelos) e rocha (sal), animal, vegetal e mineral, na bem-humorada versão de Marin Harris.

Chegando agora até aos borralhos de nossas serras: existem, é claro, receitas adaptadas, mas sem constituir autenticidade de monta, no seu pleno entendimento. No trivial, o nosso fogão do Oeste parece não ter acumulado acervo próprio, de si. Repete o receituário comum aos mineiros, com pequenas variações. Pratica-se o receituário contido no livro escrito no “sincretismo” montado ao longo do tempo em toda a província, do legado pelos índios, negros e brancos — estes com muitos “b’s”: bandeirantes, baianos, mazombos, emboabas e os brasilíndios, ou seja, os mamelucos, o esteio principal da formação da “brasilianidade”. Bem, isso dito assim, no simplificado e um tanto romântico, pois, valendo os ensinamentos do materialismo histórico, com a alimentação dá-se o mesmo, tal como na religião ou na justiça. Impõem-nas quem conta mais canhões na artilharia. Nossa alimentação é mais branca que índia ou negra. Bem lembra Darcy Ribeiro a empresa escravagista atuou como “uma mó desumanizadora e deculturadora”. Lembre-se ainda, em uma sociedade de classes, existem várias cozinhas. A da elite e a dos trabalhadores, a do citadino e a do Jeca Tatu. Do rebuscado ao mais comum. Do vulgo à aristocracia.

Os novos meios e as novas relações de produção, em sua marcha inexorável, continuam atuando, transformando ingredientes, alterando formas de preparar, importando contribuições. Resultam daí muitos sabores e cacoetes novos, eles vão se incorporando enquanto virtudes e jeitos antigos são abandonados. Isso no simplificado, olhando só um lado. A realidade é mais complexa.

Já o nosso queijo, próprio, único, esquisito, telúrico, é filho das condições especiais do lugar, criado segundo especificidades do seu pasto e do seu gado, no jeito singular de sua gente e de suas origens — já disse isso, mas é tão bom repetir, é preciso repetir, exaustivamente, até saturar, ad nauseam. Sendo assim, ele representa o nosso nativismo mais legítimo, a individualidade inequívoca, uma coisa nossa. Por aqui nasceu, cresceu e desenvolveu traços marcantes de personalidade, tão próprios, tão singulares e tão especiais o bastante para consolidar distinguida fama, pelo menos em todo o sudeste brasileiro. E vem resistindo às investidas modernizantes de todos os tipos, em especial das influências estrangeiras, tomando de assalto a maioria das nossas manifestações culturais. Afora alterações acessórias, de somenos, nossos legítimos, os artesanais, defendem um seu jeitão natural, esse caráter interiorano, exótico na essência, suavemente encorpado nos olores, elegante e rústico no sabor, imponente e esbelto no seu porte. Ele é, pelo menos culturalmente, o mesmo, “desde que eu era criança ou, pelo menos, desde que crianças éramos todos nós”, comentaria Saramago. Há 70 anos acompanho, pessoalmente, essa representação. Um testemunho antigo o suficiente para me autorizar a apor estas assertivas. Nosso querido queijo.

Naturalmente sugestivo, insinuante, ele pode compor, com desenvoltura, cenários românticos de mesas à luz de velas e talheres finos. Paradoxalmente singelo e sofisticado, ele não se avexa, encarando de cabeça erguida os melhores vinhos. Graciosamente encorpado, é companhia requisitada em qualquer roda de amigos, regada à cerveja e bagaceira. Ecleticamente aromático, enriquece as melhores receitas, das entradas aos pratos principais, arrematando nas sobremesas. Discreto, comedido, dispensando as volúpias da sofisticação com fungos, ajusta-se, sem preconceitos, a variadas combinações de paladar.

Nosso queijo pode ser apreciado em qualquer tempo de sua longa e profícua possível existência, normalmente truncada precocemente pelo seu irresistível sabor. Na casa da minha infância, com cinco “buchudos” esperando comida, era difícil uma peça durar mais tempo que o do Senhor morto, “três dias incompletos, a saber, parte da sexta feira, o dia do sábado e parte do domingo”.

As alternativas de proveito são várias, inumeráveis, na criatividade das escolhas e das composições. Por certo. Vejamos.

Fresco, saído da maternidade, pode ser saboreado com café ou formando dupla com milho cozido. No meu tempo antigo, a molecada “mandava” com rapadura. Pode também ser degustado sozinho, desassombrado, não tem medo de se apresentar por conta própria, para um monólogo. Cai muito bem também com determinadas frutas. Uma bela e sadia banana nanica acompanhada de um generoso naco é um lanche completo e saudável. Quando ele se junta ao pão, na chapa para derreter, as mozarelas saem de fininho, escondem-se de vergonha. Em parceria com presunto, ou mortadela, no pãozinho francês, também aquecido, junto com banana e guaraná, aí já é uma refeição. Combina demais da conta nas saladas. Com tomate- cereja tornou-se moda. Acasala muito bem também nos pastéis, empadas, fogazza e muitos tantos salgadinhos. É, ainda, bom acompanhante dos doces em geral (um nosso costume abominado pelos franceses, consideram uma heresia culinária). Goiabada com queijo é o carro-chefe, o famoso “Romeu e Julieta”, alegoria muito feliz — os dois se amam! Melado com queijo, uma tentação, tomando emprestado do famoso compositor, a receita completa inclui ambulância na porta. Queijo derretido com açúcar, substituindo o requeijão, também é bom. Pode-se salpicar uma canelazinha para variar.

Meia-cura “balzaquiana”, cortado em cubos, alternativamente com salpicos de bom azeite de oliva e orégano, é bom tira-gosto, amuse gueule, na companhia das fermentadas, ou uma caninha ou um vinho, tinto ou branco. Uma entrevistada contou: adora em complemento ao chá, em uma singular combinação do charme inglês com o nosso rústico produto da terra, compondo o agreste do nosso capim com a “graça civilizadora da infusão metropolitana”, diria Gilberto Freyre. Um sabor especial para aperitivos obtém-se deixando curar mais um tempo após revestir toda a superfície com uma pasta preparada com raspa da própria peça, pimenta-do-reino e azeite. Assim tratado, decorridas umas três semanas, a massa interior ganha reflexos azulados e exala aroma inigualável, tentador.

Ainda na semicura, colocado em cubos nas sopas, principalmente de feijão, além do sabor adicional bem presente (sem, contudo mascarar os demais ingredientes), de quebra presenteia com a sensação de premiação quando a concha traz junto um bom pedaço, meio derretido, alongando apetite, espichando saúde e estendendo prazer. Umas pequenas iscas de bacon para completar (era a receita da minha mãe) não fazem mal a ninguém. Essa composição pode ser aproveitada em omeletas e na polenta nostrale, emprestando aroma inconfundível aos anéis de vapor quando deitada sobre a tábua. Também há quem a aprecie na canjica ou no mingau de fubá, simples, com canela. Encontra diversificada aplicação nas tortas, suflês e recheios em geral, enfim, onde seja necessário um bom queijo. Costumam colocar também no angu para fritar, ou na massa da pamonha ou em uma receita de panqueca de mandioca, todos os três combinando bonitos matizes de amarelo e branco, vaticanos, abençoados. Agora, vejam esta: uma artesã lá de Medeiros, desfrutando da facilidade, do privilégio de contar com prateleiras cheias à sua disposição, prepara lasanha aos quatro queijos, tomando fatias de seu próprio produto em vários tempos de maturação, fresco, 30, 60 e 90 dias. Genial. São quatro tipos diferentes mesmo. Uma glória! Por ali comem a própria geografia, a história e o trabalho, diretamente, sem intermediação. O elogio das possibilidades. A liberdade sobrevoando a cumeeira.

Continuando nas aplicações do meio curado, cortado em cubos, uma receita compõe penne acompanhado de pesto, ou tomate-cereja, ou cogumelos, ad nutum, à vontade. Em pequenas lascas ou ralado, pode integrar massa de carne para as polpettas ou polpettones. Quando minha mãe preparava era um problema, o apetite infantil sempre suplantava as possibilidades limitadas da travessa, confirmando Manzoni, para quem “o tamanho da polenta depende da colheita e não da vontade dos comensais”.

No Natal, o bom queijo maturado pode ser servido na entrada juntamente a nozes, avelãs e castanhas, principalmente a do Pará. Mas bem regulado, rari nantes in gurgite vasto, sob pena de não poder aproveitar mais nada na mesa principal.

Para muitos, sua melhor destinação se dá no suprassumo da sobremesa: banana-da -terra frita e assada. A preparação elaborada, paciente, garantindo concentração de sabor, ascende essa iguaria à condição de privilégio. No final deste capítulo vai uma receita tradicional familiar, aprimorada por mim durante muitos anos, chegando a essa versão, com mais calda — naquele tempo o açúcar ainda não era, declaradamente, um dos grandes inimigos da humanidade, de mãos dadas com o seu antípoda, o sal.

Quando curado, é requisitado em várias destinações na composição de recheios diversos para assados em geral. O melhor molho para macarronada é feito com bracciolas (de carne), utilizando pedaços de queijo. Também no arremate deste capítulo apresento uma proposta originária da Calábria, de preparo dessa iguaria.

Maturado e ralado, já comemora 100 anos de bodas com as massas. Na terra da garoa é famoso faz tempo. Uma das razões, talvez, seja porque substitui sem medo o parmesão, polvilhado sobre a macarronada domingueira, servida nos lares da imensa colônia italiana lá presente, desde a virada para o século XX.

É utilizado também nos gratinados em geral, nos purês, nos risotos, na caesar salad ou enfarinhado com salsinha, verde-amarelo nacionalista, na decoração de sopeiras.

Enfim, uma imensa lista de aplicações, passando por pudins, bolos e biscoitos com fecho na sua principal finalidade, a de ingrediente para o pão de queijo. No final do capítulo são apresentadas variações de preparo desse famoso quitute, mais do que iguaria, pois, diferentemente do corpo humano comum, o nosso, mineiro, é composto de quatro partes: cabeça, tronco, membros e pão de queijo.

Um uso é impensável para nossos costumes e paladar, mas de estranha predileção dos oriundi, na prática da entomofagia. Deixavam vencer a validade do queijo para saboreá-lo com miolo de pão junto às larvas geradas no processo de deterioração. Acompanha uma boa “marvada”. É herança do casu marzu, queijo podre da Sardenha, personagem do submundo da proscrição por óbvias razões sanitárias. É deixado curar com participação dos ovos de mosca. Apreciam a iguaria separando as pupas do queijo e cada um faz o uso que melhor lhe aprouver. A uns agrada mais a parte semovente, dispensando o restante. Apostam que é afrodisíaco, mas quase certa é a infecção intestinal.

Eis aí um resumo de oportunidades. No bom proveito ao longo de todo o ano, não sujeito às sazonalidades, não se lhe impõe a calendarização.

Independentemente da finalidade, o bom queijo mineiro do Oeste deve apresentar-se com casca em tom de creme-tijolo, sem trincas. A massa lisa, na cor gelo-creme amarelado, deve ser uniforme, densa, firme, compacta, sem furos. Se for como Argos, com muitos olhos, não é bom, não foi bem elaborado, tem gosto diferente, meio azedado, quem sabe, talvez, pelo excesso de gases retidos no seu interior.

Um seu meio-irmão é o requeijão artesanal, gerado por mãos hábeis, de feitura cozida, espantada a preguiça, pois demanda um trabalhão danado, disposição, tempo e muito leite. Uma tia, Cecília Beatriz Rosa, filha da Fazenda da Lagoa Seca, é exímia artesã dessa especialidade. Anotei e passo adiante o procedimento por ela ditado, com exclusividade para este livro (ver no final do capítulo).

Eu apresento essa receita por duas razões, além do eventual proveito do leitor. Primeiro porque dessa forma de preparo sai o melhor requeijão que eu já provei na vida e, assim, trata-se de uma homenagem — e posso afirmá-lo com boa experiência no assunto). Além disso, pela complexidade da sua feitura. Certamente, não foi alcançada de uma vez, da noite para o dia, assim, um luminar qualquer resolveu e inventou essa forma de fazer. Foi um processo, longo, de tentativas e erros, testes e mudanças, até chegar nessa solução aprovada. A artesania também evolui, faz combinações, observa.

O requeijão é um produto tipicamente brasileiro, dizem. O que se oferece mais atualmente são as suas variações industrializadas, destacando-se o cremoso, vendido em copos, utilizado na culinária em todo o país, nas mais diferentes receitas, inclusive incrementando salgadinhos. Mas perde longe em sabor para o nosso, artesanal. Amesquinha-se diante da personalidade telúrica, encorpada, recendendo e ressoando, borralho e quintal, mangueiras e bem-te-vis, curral e monjolo. Falta-lhe o vigor natural da suçuarana. Nem munido de binóculo avista o céu estrelado.

Para selar este capítulo, apresento as receitas mais comuns de salgados e doces, contando com a presença do nosso queijo entre os ingredientes.

Os primeiros quadros mostram composições caseiras possíveis para trazer à mesa o tradicional pão de queijo. Foram obtidas de pessoas entrevistadas, conforme indicado. Na internet podem ser lidas mais receitas, acreditadas como de exímios mestres-cucas. Como se pode ver, existem tantas prescrições para o delicioso quitute quantas são as pessoas ocupadas no seu preparo. Afinal, fazem pão de queijo até em São Paulo, pastel em Porto Alegre, churrasco em Vitória e peixada em Minas.

Em seguida, são apresentados quitutes tradicionais nas diversas cidades, também colhidas diretamente de cozinheiras.

Nota: Entre as personalidades, cujos nomes estão associados ao queijo, uma referência comprovada é a do Itamar Franco. Em solenidade pública, brandindo um daqueles legítimos, dourados, em uma das mãos, exclamou: “Este é mineiro!”.

Onze receitas selecionadas

Pão de Queijo – Dona Titina – Araxá
Ingredientes (Rendimento: 80 unidades) Medida
Polvilho doce 1 kg
Água 300 ml
Leite 350 ml
Óleo 250 ml
Canastra ½ cura ralado 500 g
Ovos caipiras 9 (tamanho médio)
Sal Colher de sopa bem cheia
Modo de fazer
Juntar a água, o leite e o óleo numa panela e levar ao fogo (não precisa mexer). Tão logo ferva, despejar sobre o polvilho colocado em uma gamela, ou equivalente. Misturar bem até resultar numa farofa homogeneizada. (Cuidado, faça bem-feito, não deixe ficar polvilho no fundo). Esperar esfriar completamente — esse tempo de expectativa de quem espera é fundamental, os ingredientes se acalmam, segredam confidências. Em seguida, adicionar os 9 ovos, de dois em dois, e ir misturando bem, aos poucos. Colocar o sal e o queijo. Se necessário, acertar o ponto com leite, conseguindo uma consistência macia, úmida, mas não mole demais. Fazer as bolinhas, de uns 3 a 4 cm de diâmetro (pingue-pongue), e colocar em assadeira (não precisa untar), separadas uns 2 cm. Assar em forno quente, durante 40 minutos. Quando começar a corar, mais 15 minutos em fogo baixo. Acompanhe pelo visor, evitando abrir o forno.
Pão de Queijo – Dona Diva – São Roque de Minas
Ingredientes Medida
Polvilho doce (ou azedo, ou meio a meio) 2 kg
Água 300 ml
Leite 300 ml
Óleo 400 ml
Canastra ½ cura ralado 500 g
Ovos caipiras 8 (tamanho médio)
Modo de fazer
Juntar a água e o óleo numa panela e levar ao fogo. Enquanto isso, sovar bem o polvilho com o leite frio em uma gamela. Tão logo ferva (não precisa mexer), jogar sobre o polvilho. Esperar esfriar um pouco. Colocar os ovos e o queijo aos poucos e ir sovando. Vá batendo na massa com os nós dos dedos. quando ela responder não grudando, significa que acabou de se aprontar, está no ponto bom. Assar em forno quente, aproximadamente uns 40 minutos, até começar a corar.
Bolo de Fubá – Dona Diva – São Roque de Minas
Ingredientes Medida
Fubá, açúcar, leite e Canastra (½ cura ralado) 1 copo de cada
Óleo ½ copo
Ovos 4
Fermento em pó 1 colher de sopa
Canela em pó A gosto
Modo de fazer
Bater tudo no liquidificador, colocar em assadeira untada. Levar ao forno pré-aquecido. Receita para os dias afobados, sem tempo para curtir a cozinha e a feitura.
Bolo de Mandioca – Dona Diva – São Roque de Minas
Ingredientes Medida
Mandioca ralada, açúcar e Canastra ½ cura ralado 1 litro de cada
Margarina 3 colheres
Ovos 8
Fermento em pó 1 colher de sopa
Modo de fazer
Bater todos os ingredientes, colocar em assadeira untada. Levar ao forno pré-aquecido.
Bolinhas de Queijo – Dona Dorly Patto – Araxá
Ingredientes Medida
Farinha de trigo 4 xícaras
Margarina 3 tabletes
Gemas de ovos 3
Sal e fermento em pó 1 colherinha de cada
Claras de ovos (sem bater) 3
Canastra ½ cura ralado* 4 colheres
* A receita origina é com parmesão.
Modo de fazer
Amassar a farinha, a margarina, as gemas com o sal e o fermento. Fazer as bolinhas. Passar na clara (sem bater) e no queijo ralado. Colocar para assar em tabuleiro untado e polvilhado com farinha de trigo. Tendo lido o livro do Redón, ocorre-me que essa receita também pode associar dois queijos, Canastra Real e o comum bem curado, associando, assim, o “apolíneo e o dionisíaco”.
Biscoito de Queijo – Receita caseira de domínio público
Ingredientes Medida
Polvilho doce 6 copos
Óleo 1 copo
Canastra ½ cura ralado 4 copos
Leite 1 ½ copo
Ovos e sal a gosto 6
Modo de fazer
Colocar o óleo e o leite para ferver. Escaldar o polvilho. Misturar o ovo e o queijo. Fazer os biscoitos com as mãos untadas, colocar em assadeira e assar em forno quente.
Bracciola da Nonna Concetta
Essa receita, com origem na Calábria, tanto pode ser utilizada como uma iguaria de carne — para comer com pão italiano vai muito bem—, quanto na preparação do molho da macarronada. Aprendi com minha mãe, que, por sua vez, recebeu da vovó Conceição.

 

Medida: para 7 ou 8 pessoas, ou seja, meio quilo de macarrão, fazer bracciolas de cerca de 400 gramas de carne (uns quatro bons bifes). Você pode aproveitar o trabalho e fazer duas receitas guardando porções no freezer. Use carne de primeira. Normalmente, o coxão mole, mas melhor mesmo é a alcatra, considerado um exagero.

Limpe completamente a carne, eliminando toda a gordura e as aponevroses. Corte-a em bifes de tamanho médio, não muito grossos. Amacie-os um pouco com o batedor. Arranje-os sobre uma tábua. Tempere com alho socado, sal, salsa fresca e louro em pó. Reserve.

Posteriormente, em cada bife, coloque pedaços pequenos de queijo da Serra da Canastra meia-cura, duas rodelas de linguiça calabresa ou paio, uma isca de bacon e duas ou três folhas de salsinha. Como são ingredientes de “personalidade”, não se deve exagerar. Se quiser, jogue lá uma pimentinha, mas “miligrametricamente”. Utilizando linha branca de costura, enrole-os, fechando as pontas antes de terminar, vedando-os bem. Não precisa dar nós. Podem ser utilizados palitos como substituto da linha. É mais prático, mas é comum pelo menos um deles ser levado até a mesa.

Utilize normalmente as bracciolas na elaboração do molho, como se estivesse usando carne em pedaços ou moída. Numa panela de pressão, refogar em óleo de milho até secar completamente e puxar bem a cor. Esse tempo é demorado. Requer paciência, calma. A mesma recomendada quando se é obrigado a cumprir ordens de déspotas enraivecidos. Acrescentar massa de tomate – ou ketchup de primeira, se importado melhor ainda – e refogar mais um pouco. Colocar tomates, previamente batidos com água no liquidificador, completando, se necessário, com vidros de pomodoro – polpa de tomate – tipo exportação. Os italianos, com azeitona ou manjericão são muito bons, complementam sabor. Costumamos colocar dois vidros, um de cada tipo. Fechar a panela e deixar cozinhar em fogo baixo por uma hora. Abrir e acompanhar para ver se reduziu a um ponto conveniente, de densidade. Acertar o sal, se for o caso. A acidez pode ser corrigida com uma “colherinha” de açúcar.

Terminado o molho, separe as bracciolas em um pirex, deixe esfriar, e retire as linhas. Sirva à parte, acompanhando o macarrão.

Mané Pelado – Receita de domínio público
Ingredientes Medida
Açúcar 1 prato fundo
Mandioca ralada espremida 2 pratos fundos
Canastra ½ cura ralado 1 prato fundo
Ovos 6
Margarina e sal 1 tablete – 1 pitada
Fermento em pó 1 colher de sopa
Modo de fazer
Misture bem os ovos e a manteiga derretida. Acrescente os demais ingredientes, mexendo tudo à mão — não usar batedeira, há de ser bem artesanal, rústico. Despeje numa assadeira untada e polvilhada com farinha. Asse até dourar. Regozije-se perante a singeleza de nosso sertão!
João Deitado – Dona Valdete – São Roque de Minas
Ingredientes Medida
Açúcar 300 g
Mandioca ralada (torcida no pano) 1 kg
Canastra ½ cura ralado 300 g
Ovos 3
Manteiga 2 colheres de sopa
Modo de fazer
Misture bem os ingredientes e coloque numa assadeira untada. Leve ao forno quente.
Ameixa de Queijo – Receita da Dona Diva – São Roque de Minas
Ingredientes Medida
Canastra ½ cura ralado 1 kg*
Farinha de trigo 2 colheres de sopa
Açúcar ½ colher de sopa
Ovos médios 4 (se pequenos, colocar 5)
Fermento em pó 1 cabo de garfo
* Se o queijo for mais fresco, colocar mais duas colheres de farinha de trigo.
Modo de fazer
Amassar bem. Fazer todas as bolinhas. Cozinhar em calda rala até ficarem amarelinhas. Uma vez todas prontas, puxar um pouco mais a calda e juntar. * Uma receita alternativa prevê 1 prato de queijo, 2 ovos e 1 colher de sopa de polvilho. Certamente para ser usado em dias de menor sortimento na despensa.
Banana-da-terra à moda Zarzana
Ingredientes: bananas-da-terra, queijo meia-cura, ralado, óleo de amendoim ou canola, açúcar refinado e água mineral.

 

Advertências: a banana-da-terra deve ser sadia, bonita, encorpada. Além disso, deve estar madura, condição atestada pela casca totalmente preta, soltando-se facilmente como se fosse uma blusa de seda desnudando uma massa rosada, macia, uniforme. Se não for assim, melhor deixar para outro dia. Já o queijo, seja o da Serra da Canastra, legítimo, de consistência firme, sem furos, meia-cura, ou seja, nem fresco saído agorinha de um convento, nem muito endurecido nas penitências e vigílias. Se não tiver disponível na prateleira, melhor pensar em outra sobremesa.

Modo de fazer: descasque as bananas, valendo-se de uma boa faca afiada para conseguir cortá-las longitudinalmente com uniformidade de espessura de uns 2 a 3 milímetros, ou seja, nem fina nem grossa. Cada banana, assim dividida, haverá de render umas 6 boas fatias. Frite-as em óleo não muito quente. Dois minutos aproximados de cada lado, até obter uma coloração marrom médio, guardando a maciez interna.

Mais advertências: não se ocupe de nenhum outro afazer enquanto estiver cuidando dessa parte do preparo. A regularidade da fritura deve ser garantida sob pena de alterar o sabor.

Assim, fritas, em favor de uma boa apresentação e maciez ao mastigar, corte com a faca as pequenas beiradas ou as extremidades eventualmente passadas do ponto.

Acomode em um pirex as fatias fritas, formando camadas. Separe cada um dos andares polvilhando, generosamente, o açúcar e, com avareza, o queijo. Leve ao forno a uns 200 graus. Após uns quinze minutos, vá colocando aos poucos água, afogando todas as bananas em caldo açucarado, consistente, generoso. Quanto mais açúcar e água mais calda. Revire um pouco todo o conteúdo. Leve para a mesa o borbulhante prazer. Quem quiser pode polvilhar canela. Tu das epulis acumbere divum — homenagem aos deuses.

Rendimento: coisa difícil de se calcular. Quantas bananas, assim preparadas, uma pessoa consegue comer? Haverá limites? É possível resistir? Na média, considere duas unidades por conta de cada adulto, talvez até seja uma medida regulada. Diante dessa iguaria, é difícil atender ao adágio “moderado no comer, médico de si mesmo”. Normalmente, sucumbe-se, abre-se uma exceção e pratica-se o “comamos e bebamos, pois amanhã morreremos”!

Certa feita, eu apresentei essa receita de banana-da-terra frita como contribuição para o livro Everyday creativity, de autoria da talentosa amiga Rita Pimenta.23 Foi publicado lá nos “States”, em inglês, of course. Vertida para o idioma de Sheakespeare, ficou assim a parte onde sugiro o uso do Canastra, ressaltando as vantagens de seu uso nas receitas em geral com queijo e nessa sobremesa, em particular (os grifos são meus):

“You may use a good grated Parmesan but, please, do prefer the semi-hard cheese from Canastra Mountain, Minas Gerais State, Brazil, handmade under a warmth and calm scenery of mists and lymph. Only this cheese, with soft and smooth firmness, with no holes at all, breaths forth his characteristic fragrance of a blend of wild fruits and coconut odours. Those that are acquainted with the real Canastra cheese, easily identify his unmistakable perfume, the savoury smell of the wet Guinea grass, bended under the rosaries of dew at the dawn.”

Beleza! Fiz questão de transcrever para mostrar a pujança do nosso queijo. Sua descrição fica bonita até mesmo em inglês, esse idioma sem graça, resfolegante, árido, carente de relevos.

___________

23 Cf. PIMENTA, Rita. Everyday creativity: food for thought and soul. Brazil, 2007.

A feitura do requeijão legítimo

À Lagoa Seca
Ingredientes: leite de vaca cru, 16 a 18 litros

 

Advertências: leite de qualidade, e disposição sem fim.

Modo de fazer: deixa-se azedar 10 litros de leite, naturalmente, sem coalho (para fazer no sábado, por exemplo, separar o leite na quarta-feira). Resultam três camadas: a nata (manteiga), leve, em cima, a coalhada no meio, e o soro mais pesado no fundo. Retirar a manteiga e “deixar de banda”. Cortar a coalhada em 8 fatias e colocar em fogo brando para aquecer, lentamente — “desensofrimento” põe tudo a perder. Acomodar a massa bem quente (quase fervendo) sobre peneira coberta com pano, sem mexer, e deixar escorrer bem. Colocar 3 litros de leite no fogo branco e voltar a coalhada. Mexer ligeiramente. Deixar esquentar de novo até quase a fervura. Repetir a operação sobre a peneira com pano e seguir com novo apuro (nova rodada de 3 litros de leite), mas, dessa segunda vez, mexendo com mais determinação. As partículas vão se congraçando e a massa vai adquirindo liga. Em seguida, em uma frigideira, fazer a manteiga borbulhar até ficar marrom claro — o cheiro há de se espalhar até a pinguela, virando para o espigão de frente — e, em seguida, “afogar” a massa nessa fritura. Mexer até homogeneizar. Adicionar sal a gosto. Colocar a pasta uniforme, amorenada, em fôrmas, para esfriar, formando barras. Coisa muito rica. Sabor terroir com dez palmos de fundura. Pode ser degustado sozinho ou acompanhando doces. Mas feito como descrito, no capricho, o melhor uso é em uma sobremesa divina. Corta-se em pedaços, derretendo-os em frigideira, com um pouco de leite. Servido bem quente, com açúcar. Irresistível! Momento privilegiado para o exercício do pecado da gula. Haja furos na correia!

Rendimento: 1 kg de requeijão bem pesado. Tanto tempo gasto para ser consumido no vapt-vupt. Tentação!

Capítulo VII – Aptidão paisagística: seriemas e veredas

O que é certo para a natureza também convém à sociedade.

Venham todos os turistas,

mas não gaste cada um 400 litros de água todo dia.

É pra lá de muito bonito este sertão onde o nosso excelente queijo artesanal do oeste mineiro fixou residência. Neste capítulo, vou tentar descrever suas paisagens, simplificadamente, em percepção pessoal, leiga, apaixonada e tendenciosa. Mas não carece também gastar tinta minuciando impropriamente tanta boniteza. Esboçarei rapidamente somente os principais destinos turísticos mais divulgados atualmente e alguns ainda não tão conhecidos, mas contando com importante potencial, pela sua atração em gosto ecológico.

A região é formada de vários maciços e centenas de chapadões, espigões e serras, onde se espreguiçam os campos, os cerrados e algumas matas (estas revestindo os baixios resfriados, as beiradas dos cursos d’água, os talvegues e os fundos úmidos).

Em belas e ricas combinações desses elementos, nosso cantinho monta incontáveis cenários, sem repetir, inventando a cada momento uma nova pose para mais fotos.

(Duas fotos da Serra da Canastra)

A água por ali jorra à vontade, dos “ribeirãozinho à-toa, dos corguinhos de nada” aos bem nutridos caudais, imponentes, exibidos. As cachoeiras espumam “pra tudo quanto é banda”, difícil fazer as contas, com exceção do extremo norte salitre, um pouco mais seco, de vegetação mais rala e arbustos enfezados.

A fauna e a flora são exuberantes. O ar é puro. Gente muito boa.

Iniciando a viagem pela parte sul, desfrutamos da região ecoturística que vai de Capitólio até Sacramento, formada pela impressionante dupla de colossos, coisa de se admirar perdidamente: as irmãs gêmeas Canastra e Babilônia.

O papel-título desta maravilhosa encenação é desempenhado pelo Parque Nacional da Serra da Canastra, criado em 1972 para proteger a nascente do São Francisco, após “intensa movimentação da sociedade civil”. Escreveram na época: “Aquele santuário ambiental será fechado a sete chaves” para resguardar as suas belezas. Sua área total chega a 72 mil hectares abrigando 30 cachoeiras, a maioria delas composta de várias quedas, formando duchas e piscinas naturais. Um desaforo! O livro “Canastra: cores e valores” ostenta logo no início uma maravilhosa tomada da Serra, em grande angular. 24 De cair o queixo. A ampla e vistosa imagem substitui mil palavras que possa eu tentar compor.

A vida é festejada intensamente todos os dias, em mesa farta, opulenta. Seu imenso platô e suas generosas encostas abrigam milhares de espécies vegetais. A aparência mais simples, um tanto despretensiosa, esconde uma biodiversidade impressionante. Passei por lá e tive a sensação de me encontrar em um biodome.

Pesquisadores e escritores, inevitavelmente, sempre transcrevem Saint-Hilaire no pequeno trecho onde ele demonstra todo o seu deslumbramento diante deste apaixonante cenário. Obedecerei à regra: “Enquanto tive diante dos meus olhos a Serra da Canastra, desfrutei de um panorama  maravilhoso.  À direita descortinava uma vasta extensão de campinas e à esquerda tinha a serra, do alto da qual jorravam quatro cascatas.” Uma visão do Paraíso.

Os espigões ondulados presenteiam com visadas de larga amplitude, incríveis. Quem os admira se sente recompensado, recomposto, oxigenando tudo, os pulmões e o sangue, desintoxicando a mente, ventilando o espírito. Passeando por ali é difícil resistir à tentação de pipocar muitas fotos. Quando se pensa ter visto algo esplendoroso, mais à frente apresenta-se nova pintura, mais bonita ainda. Um despropósito, um despautério.

Os cerrados e os campos rupestres estão cobertos de vegetação de pequeno porte, mas rica a não mais poder, um disparate. As plantas são muitas. Convoco para representá-las a milagrosa arnica, de infusão milagrosa nos efeitos sedativos e curativos dos hematomas.

O reino animal exibe mais de um milhar de espécies, entre aves e mamíferos, esnobando, por exemplo, o tão reverenciado Pantanal. Um museu de história natural ao vivo e a cores. No inverno, seco, contam-se às dúzias as seriemas, Cariama cristata para os entendidos, um nome cadenciado, musicado, fazendo jus ao porte tão esbelto e ao seu estridente canto em agoniada escala descendente, verdiana. E a identidade científica ainda abre espaço para brincadeiras anagramáticas. Rata carismática. Sempre em duplas, iniciam corrida desajeitada pelas estradas poeirentas à frente do veículo até resolverem se esconder escapando macega adentro. O capim ressequido em ouro favorece a camuflagem. Imagens passadas vêm à minha mente, renovadas nestes espigões de São Roque. Amanhã, tocando a sua vez, estas também serão antigas.

___________

24 Cf. CÂMARA, Tudy; MURTA, Roberto. Canastra, cores e valores. Belo Horizonte: Bicho do Mato, 2010.

(Fotos da Seriema)

Uma espécie da avifauna é muito citada: o pato mergulhão. Êta bichinho bonito de doer! Arisco, mas não o tanto suficiente, pois se encontra sob risco de extinção. Este seu abrigo é um dos últimos lugares no mundo onde pode ser visto com certa facilidade. O livro “Serra da Canastra — Tesouros naturais do Brasil” exalta-o à condição de “morador ilustre”.25

Aqui e ali somos presenteados com as quedas d’água nos talvegues, com as grotas dos capões exuberantes e as planuras majestosas, graciosas, imensos canteiros em um extasiante festival de tons de verde.

Por todo o chapadão do parque, durante as chuvas do verão, pode-se refrescar a alma diante de muitas veredas, cheias de vida efêmera. Pecado que Monet não conheceu essas tênues graciosidades. Uma lástima!

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25 Cf. SILVEIRA, Luís Fábio; SILVA, Robson. Serra da Canastra, tesouros naturais do Brasil. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2006.

(Foto da Vereda)

O berço nascedouro oficial do Rio São Francisco acomoda-se em uma pequena área empapada do Chapadão da Zagaia, a 1.428 m de altitude. Cabe ao município de São Roque de Minas a denominação honorífica de sua terra natal. Ao olho d’água, convencionado como sendo sua saída para o mundo vão se juntando filetes da linfa e, lentamente, o rebento vai ganhando corpo, “devagarzinho, terra a terra, sussurrando, sibilando, vai escorrendo, vai escorrendo, vai tocando de leve, ronronando e pega força pouco a pouco”.

Divagando. As coisas recebem nomes sem respeitar critérios mais rigorosos. Muitas vezes prevalece uma definição histórica, perdida no tempo, na vontade empírica, não atentando muito para preceitos ou regras. É o caso aqui. Existe outra nascente do São Francisco: a do Rio Samburá. Esta deveria ser a oficial, a real, porque ele percorre 147 km para se apresentar com uma vazão de 16,6 m3/s no seu encontro com o “Chico”, enquanto este cumpre somente 98 km desde o nascedouro lá nos topos do Baú e aporta apenas um terço desse volume. Alguns apreciam dizer que ele exibe duas naturalidades, a histórica e a geográfica. Menos mal. Quanto mais características, ou confusão, mais profícuo é o espaço para exploração turística. O Samburá vem à luz no município de Medeiros. Assim, essa terra pode incorporar como atração o nascimento geográfico do famoso rio, com direito à imagem do santo ecológico, carrancas, espaços para educação ambiental e tudo mais para encorpar referências ecoturísticas. O problema é a dificuldade de acesso. Esta “segunda” nascente fica quase na divisa de Ibiá e Tapira, junto à estrada Pratinha – São João Batista, de chão batido. Para Medeiros, turisticamente, isso significa ir de nada para lugar nenhum.

Nova derivação. Essa minha passagem pelo Parque em fevereiro de 2011 se deu em mais uma das idas ao sertão para realizar as entrevistas, conhecer lugares, fazer registros. Deu-se assim. Finalizadas as conversas em Tapira, não contando com caminho alternativo, o jeito foi enfrentar a terrível estrada de terra, mal conservada, que nos leva de lá até São Roque. Uma aventura, não se sabe bem o que pode acontecer, qual história se protagonizará. A distância não é lá essas coisas, mas a baixa toada imposta pelos buracos em profusão toma tempo no relógio. O carro, mais novo, deveria aguentar o tranco. Consegui ir razoavelmente bem até saltar o Rio Araguari, perto da sua cabeceira, mas já profundo, denso. E… aconteceu. A pancada forte em uma “panela” cobrou o preço cem metros adiante. Numa descida de serrinha, “a roda estava no chão”. Não havia trânsito e pude colocar o estepe, com o carro ocupando toda a pequena estrada. Seguindo em frente, passei pela localidade de São João Batista, junto ao pé do paredão norte do Baú, onde, para minha tristeza, informaram que o único borracheiro disponível fora até à cidade para acudir um filho perrengue. Foi aí que, sem botar muito juízo, me atirei em uma visível temeridade. No afã de desenvolver o meu trabalho, esqueci-me da minha condição de idoso e incorri em terrível imprudência: sem pneu de reserva, viajando sozinho, resolvi galgar o íngreme acesso e entrar assim mesmo no imenso e solitário parque. E olha que o funcionário da portaria ainda alertou para as condições da estrada, inclusive pormenorizando dois pontos onde ela praticamente inexistia, completando (me pareceu exagerado) com os cuidados que deveria tomar. À minha frente, nos mais de 40 quilômetros esburacados e totalmente desabitados até São Roque, não se via um único filho de Deus, em uma bruta quarta-feira, sem turismo. Se algo resolvesse encrencar no veículo, sei lá, ir embora mais um pneu, eu teria que me haver com uma caminhada, agora com sol a pino, transitando sozinho por aqueles ermos, de fauna preservada, uma solidão amedrontadora, palco de relatos dando conta de gente que desapareceu e nunca mais foi encontrada. Anjo da guarda continua existindo.

A bacia do “Chico”, Opará, em tupi-guarani, é totalmente brasileira em todos os 2.863 km de extensão do seu percurso (ou 2.912, a escolher), da nascente sanroquense até desaguar respeitáveis 2.943 m3/s de água no Atlântico. Vale dizer, em média arredondada, a cada quilômetro de caminhada adiciona 1 m3/s de vazão ao seu caudal, enquanto vence 1/2 metro de desnível, mas, é bem verdade, cerca de 1/3 dessa descida ele cumpre nos primeiros dez quilômetros, incluindo o salto de 400 metros despencados pelo paredão. Nesse trecho inicial, passa por Vargem Bonita, detentora do título de primeira cidade banhada pelo importante rio. Na entrada de Iguatama, conservam uma placa reivindicando essa honra, cedida, porém, em 1943, quando aquela deixou de ser vila.

O principal destaque é a maravilhosa Casca D’Anta, composta de duas quedas. A segunda, ostentando 200 metros de imponência, é uma das maiores do Brasil. A aproximação é emocionante, convite à prostração em reverência a esta magnífica encenação da natureza. Imagem e som. Assim conta o mesmo Saint-Hilaire: “Embrenhamo-nos na mata e dentro em pouco começamos a ouvir o barulho da cachoeira. Pelas informações que me tinham dado havia poucos instantes, eu sabia que ela se despencava do lado meridional da serra. De repente avistei o seu começo e logo em seguida pude vê-la em toda a sua extensão, ou pelo menos o máximo que podia ser visto do ponto onde nos achávamos. O espetáculo arrancou de José Mariano e de mim um grito de admiração”. Sobre o cenário geral ele descreve: “Para se ter uma ideia de como é fascinante a paisagem ali, o leitor deve imaginar estar vendo em conjunto tudo o que a natureza tem de mais encantador — um céu de um azul puríssimo, montanhas coroadas de rochas, uma cachoeira majestosa, águas de uma limpidez sem par, o verde cintilante das folhagens e, finalmente, as matas virgens, que exibem todos os tipos de vegetação tropical”. Seu entorno já não é precisamente o mesmo (a mineração de diamantes deixou suas marcas), mas esta visão da cascata ainda se encontra bem protegida. O naturalista francês apreciou aquilo tudo em condições bem originais, no apuro da conservação. Um privilegiado.

A Cachoeira do Cerradão é mais um exemplo da fartura de beleza, sobeja por ali, um desatino, largueza perdulária. Despenca por uma encosta íngreme em caprichoso cascateado. O acesso se faz em trilha bem cuidada. Na caminhada até lá se avista ao longe a linha branca da água riscando o maciço. Vários poços do ribeirão, cercados de pedras, convidam para um banho refrescante.

(Duas fotos da Cachoeira do Cerradão)

A portaria principal do parque dista 8 km de São Roque de Minas, de estrada de terra, talco derrapante na sequidão do inverno, lama de atolar as quatro rodas nas águas de janeiro. A infraestrutura no geral ainda é precária. Enquanto o turismo vai se aquecendo, vamos aguardando a incorporação de novas facilidades e mais conforto, por exemplo, melhorando os centros de visitantes.

Quem pretendeu visitar o Parque em agosto de 2010 deu com a cara nas portarias. Eu fui um deles. Estavam todas fechadas. A sequidão do ano e o calor puseram mais lenha na temporada de queimadas. A serra ardeu em chamas durante, pelo menos, duas semanas. Assim me informaram no posto do Instituto Chico Mendes, em São Roque. As calçadas das ruas amanheciam cobertas de cinzas. A poeira, das estradas e das valas abertas para obras públicas, juntava forças com a fumaça e fuligem para tornar o ar mais pesado ainda. Antropização ambiental é o nome da “ziquizira”. O homem metendo a mão.

Segundo também escutei, essa ação predadora incendiária pode ser classificada em três grupos. Displicência (dos cigarros jogados pelos transeuntes ou das fogueiras de camping), utilitarismo (da limpeza de pastos, autorizada ou não), e maldade ou crime (onde se inclui hipótese de justiça com as próprias mãos levada a termo por aqueles que se sentiram lesados no processo de desapropriação levado a efeito quando da implantação do parque).

Da imponência da serra, no carnaval de muitas cores, envolta por amplos ares benfazejos, emana também rica história para ser contada, mesclando segredos seculares, próprios. Incógnitas e possíveis mistérios, bem presentes nos recônditos do imenso anfiteatro formado pelos contornos esplendorosos do maciço.

Para as ciências sociais, a paisagem não é somente a apresentada materialmente. Ela se amplia em conteúdo, incorporando a psicoesfera, a constituição simbólica e social, completando o domínio do visível com todas as sensações peculiares de cada cultura. Narrando histórias, ela não se limita aos olhos, não está restrita às sensações físicas. Avança além, através dos valores, das crenças, dos símbolos, da moda, da publicidade, da legislação e da religião. Para quem nasceu, digamos, em Vargem Bonita, aqueles paredões mostram cara diferente, não é a mesma exibida para um visitante comum. São significados diversos. Iremos nos ocupar um pouco do tema mais adiante. Continuemos nossa viagem pelo sertão.

Saindo desta parte extrema ao sul e tomando o rumo norte, a paisagem de espigões bonitos vai-se reproduzindo pelo município de Tapira. Aqui e ali aparecem mais formações, coorientadas e paralelas às citadas irmãs, formando um triângulo com vértices aproximados em Campos Altos, Piumhi e Santa Juliana. Os cenários são amplos, magníficos. Cursos d’água os há em profusão. Um deles exibe recantos especialmente bonitos: é o Ribeirão do Inferno — vai saber qual a razão desse nome, nada a ver. Ele e o Samburá chamam a atenção. Nascem juntinhos, mas se desentendem, um “vira a cacunda pro outro” e seguem rumos opostos. “Caçando” caminho em meio às escarpas, este toma o sudeste, aquele escolhe o noroeste. Deve ser problema de família porque seus irmãos Araguari e Santo Antônio também escrevem esse mesmo romance de separação, optando por destinos opostos. Em final feliz, todos os quatro se deram muito bem na vida. Cada dupla que seguiu a direção comum se uniu em parceria, em cooperação, para, num esforço único, cumprir um destino de história, grandeza e glória.

E tome cachoeira, de perder a conta! A dos Bandeirantes, na citada Tapira, é um dos exemplos. Maravilhosa!

No final dessa imensa faixa de serras, aparece mais um paredão, a Serra da Bocaina, muito comprida, com paisagens belíssimas, a vista não alcança o remate. Por ali já se instalou alguma infraestrutura, com a frequência dos amantes dos voos de asa delta e similares esportes radicais, ou para almoço no restaurante do belvedere. Na cidade próxima, encontram-se as famosas águas minerais e os banhos de lama em exuberante balneário. Cenário urbano, mas coisa de cinema. E tome mais cachoeiras — a da Argenita é igualmente muito bonita.

Lá na Lagoa Seca, num desses chapadões, um fazendeiro de posse, bafejado pelo progresso da sua propriedade, “dono de muito gado e gente”, conseguiu do vigário autorização para construir uma capela em homenagem a Santo Ambrósio, de sua onomástica devoção. Passado tempo suficiente para pôr termo ao intento, logo na primeira oportunidade o bom pároco perguntou, em zeloso interesse:

 

— E então, “Coronel”, para quando podemos programar a missa e a bênção inaugurais?

O “Coronel”, desalentado, meio sem graça, respondeu:

— Olha, “Seu” Vigário, a capela tá pronta. O diabo é o santo!…

Neste paralelo, agora no limite leste da região, impõe-se a Serra da Saudade. No trecho da BR 262, serpenteante em meio àqueles altos, a parada é obrigatória para apreciar as muitas paisagens. De vários lugares percebe-se nitidamente a curvatura do globo terrestre. Maravilha! Não há ainda infraestrutura para receber eventuais interessados em longas e saudáveis caminhadas por ali, respirando o ar puro, apaziguando o espírito nos ocasos de silenciosa majestade.

Um pouco à esquerda-norte, no município de Perdizes, encontra-se um dos mais importantes sítios arqueológicos de Minas Gerais. Pouco explorado e conhecido.

Seguindo mais para norte, a meia distância entre Perdizes e Patrocínio, localiza-se o lago da hidrelétrica de Nova Ponte. Pouco a pouco, com as construções dos ranchos e pousadas, tende a se tornar interessante centro turístico. Longe de tudo e de todos, leva a uma utilização ainda incipiente, mas já se vê pesado movimento de veículos, na conta da demanda operacional da usina.

Na fronteira noroeste da nossa região encontra-se o Rio Bagagem, mais uma deslavada tendenciosidade da natureza depositando aqui o que tem de melhor. Dessas barrancas saltaram os mais fabulosos diamantes brasileiros, o maior deles, o “Cruzeiro do Sul”, pulsava 254,5 quilates de estonteante beleza.

Nessas redondezas, mas fora dos limites da área sob foco, encontra-se Romaria, quase sesquicentenária nos festejos religiosos em honra de Nossa Senhora da Abadia.

A partir daí, seguindo rumo ao setentrião, o cenário se modifica um pouco para dar lugar às veredas com seus buritis. É uma paisagem delicada, sensível. Infelizmente, a agricultura vai invadindo esses sistemas. Os pivôs de irrigação aos poucos vão dominando o ambiente. Quem quiser ver a formatação original deve se apressar, correr logo.

“Subindo” mais um pouco, surge a Serra do Salitre, rica em minerais. Um dos livros lidos fala em chaminé diamantífera, riqueza pouca é bobagem. E tome um não mais acabar de vistas, belíssimas, muitas cachoeiras. Uma delas, muito interessante, despencando de afloramento rochoso, tem também referência estranha: do Diabo. Serra Negra, distrito de Patrocínio, é famosa pelas excelências de suas águas minerais.

Rumo à Guimarânia desenha-se um chapadão em forma circular. A área está praticamente antropizada, na exploração agrícola. Mas é bonita assim mesmo, com lagoas, vistas amplas, excelente para caminhadas. Já há hotel por ali, mas, parece, funcionando de forma descontinuada.

Deste ponto para o norte, em quase todos os municípios são encontradas muitas grutas e lapas belíssimas.

“Vario” outra vez, permitam-me. Embora não pertencente ao conjunto dos onze núcleos urbanos aqui tratados, não posso deixar de registrar duas gratas surpresas vividas quando da minha passagem por Guimarânia, no encalço de queijo. De pronto, a ampla e apaixonante vista da chegada, divisando do alto a planura com a cidade junto ao pé da serra. Coisa bonita, acolhedora. Entrando no lugar, ao divisar a rua principal, chamou-me imediatamente a atenção a semelhança incrível com o registro de uma viagem minha recente a Portugal. Vejam os leitores como se parece com Vila Viçosa, no Alentejo.

(Duas fotos: Guimarânia e Vila Viçosa)

Quando conseguirmos ser mais donos do nosso dinheiro, talvez tomemos três providências: embutir a fiação elétrica, tirar as pessoas da rua e, que pena, ao mesmo tempo vamos estacionar mais carros.

Nessa região, correu o boato do casamento de um solteirão convicto. Os amigos, na galhofa, não deixaram por menos. Passaram telegramas incrédulos apresentando os votos de felicidades, mas desejando que a data se repetisse muitas e muitas vezes.

No extremo nordeste do sertão domina a Mata da Corda, uma enorme cadeia de montanhas ocupando desde a Serra da Saudade até São Gonçalo do Abaeté. Três rios perfilam paralelamente do sul para o norte, cortando toda a região: Abaeté, Borrachudo e Indaiá. No final, a parte oeste pertence à Estação Ecológica de Pirapitinga, das águas da represa de Três Marias. Ainda não pude ir até lá.

Muito mais coisas devem existir, de interesse, chamativas, apesar de esparsas. Sem falar em Patos de Minas, a principal cidade de todo esse sertão, às margens do nosso Paranaíba. Patrocínio, a terceira em população, é graciosa e paga muito bem uma visita.

Agora toca a vez das considerações específicas sobre o turismo e o momento atual desta que é a indústria sem chaminés por esses lugares acima citados.

Ainda não chegaram a uma definição, comumente aceita, pelo menos em sociologia, do que seja. Duas tentativas são: atividade envolvendo ida para fora do lugar onde se vive, aplicando tempo disponível em algum tipo de cuidado psicossocial e exercício da livre vontade em atividade de lazer, sem remuneração, durante tempo normalmente curto, não superior a um mês.

Para Dumazedier, o lazer engloba três principais ingredientes: descanso, diversão-recreação-entretenimento e desenvolvimento pessoal.26 Também para esse autor o pressuposto é da separação de tempo discricionário para usufruto de regozijo difícil ou impossível de se alcançar na fábrica ou no escritório. (Bem nos ensina o adágio, “o pior dia de pesca supera o melhor dia de serviço”).

Jost Krippendorf, por sua vez, vê no turismo a recomposição de forças, a válvula de escape ou a busca por algo e, também, a percepção e o desfrutar da fugacidade diferente da estabilidade do dia-a-dia.27

As pessoas são motivadas ao turismo para recarregar as baterias, gastar dinheiro, admitir permissões diversas cumprido um ano inteiro de batente ou, ainda, entender que “o cotidiano só será suportável se pudermos, de vez em quando, fugir do mesmo”.

Uma abordagem sociológica destaca apenas a motivação na busca. Para essa perspectiva, cada pessoa que sai de casa para um passeio turístico está interessada ou em guetos (o desejo de isolamento, de usufruir do seu passatempo predileto: estar sozinho) ou, num segundo bloco, em alternativas onde perfilam especificidades diversas, tais como compras (shoppings, outlets, zonas francas), renovação da fé (romarias, peregrinações, visitas a lugares de devoção), acesso à paisagem urbana (parques, jardins, esportes, cinemas, clubes, passeios de barco, teleféricos, mirantes), ecologia (caminhadas, trilhas, esportes radicais, campings, colônias de férias), saúde (vantagens do ar, do clima, da água e da balneação ou, ainda, acesso a centros de excelência de tratamento ou de menores custos já que a saúde anda pela hora da morte), apuro do paladar (prazeres da mesa ou enogastronomia), cultura (museus, concertos e teatro) e sexo/alucinação (alternativa, infelizmente, muito na moda hoje em dia, chafurdando no submundo da criminalidade das drogas e/ou na lama da prostituição, onde se inclui a vil exploração das condições desfavoráveis de crianças, antes referida ao nordeste brasileiro, agora já é vergonha verde amarela geral).

Essa classificação é apenas didática. As atividades, na prática, englobam dois ou mais tipos entre esses acima descritos.

Uma pessoa pode se deslocar por motivo de treinamento, negócios ou intercâmbio de conhecimento científico. Não são propriamente ocupações turísticas, mas nas horas vagas, caso ocorram e o permita a disposição, podem ser incluídas atividades da lista citada, como, por exemplo, sair à noite para jantar em um restaurante específico, recomendado por um amigo, evitando, é claro, lugares suspeitos segundo orientação cuidadosa da recepção do hotel.

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26 Cf. DUMAZEDIER, Joffre. Sociologia empírica do lazer. São Paulo: Perspectiva/SESC, 1999.

27 Cf. KRIPPENDORF, Jost. Sociologia do turismo. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2001.

Além do fato de ser o homem o único animal que sai de férias, pelo menos quanto a uma coisa todos concordam: o turismo tende a assumir no futuro a posição de indústria mais importante do mundo graças ao crescimento contínuo que tem experimentado nos últimos tempos. Pode demorar um pouco até suplantar o comércio de armas, mas, de fato, as demandas turísticas crescem tal como chuchu na cerca, turbinadas pelas necessidades, reais ou criadas, e também porque as pessoas vão aprimorando percepção, se capacitando e se aparelhando para alcançar mais amiúde as vantagens de desfrutar dos ganhos possíveis oferecidos pelo lazer e o repouso.

Obedecendo à regra geral do sistema, o turismo também é uma mercadoria. Ele é vendido através das mais variegadas formas disponíveis nesse imenso e borbulhante caldeirão mundial de trocas, colocado sobre o ardente fogo de custoso e complexo esforço de marketing. Também como os demais produtos, ele vai se tornando acessível a todas as classes sociais. Antes, privilégio de minorias, dos endinheirados, nos transatlânticos de luxo ou nos safáris africanos, agora, muito felizmente e para gáudio dos empreendimentos e do lucro, é apreciado mais e mais por maior número de pessoas. Junta força o poder da ideologia capitalista criando novos desejos de compra, tanto de pacotes da moda assim também de uma lista enorme de equipamentos, dispositivos, apetrechos e, é claro, peças de vestuário.

Quanto mais atrações o lugar oferecer maior será o chamamento e o afluxo. Chegando ao nosso caso, vejamos como está a nossa região.

Possivelmente, devido à sua maior proximidade do Baú, São Roque de Minas, Medeiros e Vargem Bonita, são, ou têm sido, as principais beneficiárias do aumento do afluxo de visitantes em busca da bela paisagem, do ecoturismo. Já resumimos uma descrição do lugar. Ele apresenta dezenas de alternativas de lazer, passeio e regozijo junto à natureza.

Por muito tempo, essas três cidades (principalmente São Roque) deverão tirar melhor proveito desta vantagem, na preservação do Parque e com o permanente aumento da consciência ambiental das pessoas como regra geral. Mas é preciso investir no cuidado. Contar com um bom planejamento, reavaliado periodicamente. Assim, o entorno não se degrade pelo excesso e, em flagrante contradição, afaste o visitante. Muita gente vai até lá sem buscar a essência, sem “botar muito sentido” na natureza, depois de terem usado até a exaustão a que tinham disponível nos seus lugares de origem.

Bambuí e Piumhi contam com festividades civis e religiosas, mas não chegam a representar centros de atração de maior importância permanente. As vocações locais não incorporam efetivamente essa dimensão.

Pelo menos por enquanto, Araxá é, de longe, a figurinha mais conhecida entre as cidades das cercanias focadas neste livro. Agrupa, faz tempo, o melhor elenco de atrativos, mesclando paisagem urbana e saúde, disponibilizadas há já pelo menos 66 anos. É centenário o afluxo de banhistas em busca da cura nas suas águas medicinais. Mais recentemente incorporou à cesta de ofertas a ecologia, a gastronomia do doce e o artesanato (bolsas, rendados e bordados).

A presença imponente de rico conjunto arquitetônico no estilo missões, o belíssimo complexo do Grande Hotel e das Termas vem do tempo da jogatina e sob o glamour da balneação, em espaço elitizado. Oferecendo tão somente suas alternativas de lazer e cuidado com o corpo, o lugar viveu uns tempos de ostracismo, reduzindo, paulatinamente, a frequência. Tentaram acudir através do turismo social, subvencionado pelo Estado, com o funcionamento do Hotel Cura e Repouso, mas não ajudou muita coisa. Com a evolução da medicina em vidros e cartelas, o chamamento do balneário viveu os tempos de relativo abandono nos anos 70. Recentemente, diferentes tomadas promocionais trouxeram novo alento, ampliando a atração em encontros, eventos e alternativas de lazer, juntando forças aos dois novos importantes apelos turísticos.

O primeiro apareceu com a promoção da lenda da Dona Beja. A história foi recontada em várias edições até assumir a versão romântica hoje conhecida. Essa ficção foi multiplicada várias vezes pelo poder de difusão da telinha, em versão novelística, levada ao ar para todos os recantos, contribuindo para o aumento do interesse pela cidade. Invenção bem-vinda, abrindo novas possibilidades para explorar em turismo, mesmo confundindo o visitante (em Verona há o balcão de Julieta com suas juras de amor). Em um bonito painel da fonte Andrade Júnior, nossa hetaira toma banhos, em tratamento de beleza. Mais referências poderiam ser distribuídas pela cidade. No museu, a bandeja com as rosas ao lado da recebida com estrume. Uma festa anual, com desfile em carruagem, serenatas, cena do rapto, escravos carregando diamantes e ouro, e coisas assim. Poderiam também oficializar o dia no qual se deu o extermínio dos araxás e explorar turisticamente, com representação nas ruas, bandeirantes versus aborígenes, nossa tradução para a luta entre cristãos e mouros. Listar sugestões é fácil. Difícil é compor vocação, manter interesse político, fixar identidades, arranjar recursos.

A outra aquisição já institucionalizada é a da doçaria. Por volta dos anos 80 ela já alçava voos internacionais, coroando e montando justiça à secular competência telúrica na combinação cuidadosa de ingredientes nossos, tais como o queijo, as farinhas, os polvilhos, os ovos, somando à contribuição do açúcar. São incontáveis as receitas, dos mais diversos tipos, elaboradas ou frugais, sofisticadas ou simples. Contudo, o carro chefe vai sortido com muito doce de leite, de figo, de mamão, de abóbora, de laranja e goiabada. Nos vagões embarcam as roscas, os biscoitos e demais doces, incluindo as variações criativas com isto e aquilo.

Quem ainda não experimentou do doce preparado com o cajuzinho do campo faça-o logo e não passe pela terra sem ter vivido. Nossos espigões, outrora revestidos de cerrados, vão se metamorfoseando em lavouras de milho, soja e cana, fazendo desaparecer a fruta tão rusticamente saborosa. Muito infelizmente, o doce elaborado com essa dádiva da natureza conta seus últimos dias de vida, em estado terminal, após muitos anos assumindo posição de destaque, alçado ao altar-mor das delícias, entronizado em reverência, elevado à quintessência da degustação, festejado no extremo prazer do paladar. Certa feita, Dona Maria Santos Teixeira enviou para a nossa república de estudantes em Belo Horizonte, onde moravam os seus dois filhos, uma lata de 18 litros, quase cheia dessa delícia, feita com todo o zelo e carinho lá nas Amoras. Eu era um dos ocupantes da pensão. Privilégio. Não me arriscarei a descrever aquela bênção, reservada para muito poucos sortudos. Qualquer tentativa de apresentação será insuficiente, não fará juz. A cor, o aroma e o sabor estão muito bem registrados na memória, até hoje, embora já passado quase meio século.

Essa trinca, o Grande Hotel, a Dona Beja e os doces não se internam em estações, não hibernam. São ofertados doze meses ao ano, em vantagem competitiva para a cidade, não tão dependente assim dos recursos naturais, sob a oscilação dos ciclos e humores da natureza.

Araxá dispõe de equipamentos muito interessantes, casas de cultura e diversos espaços, mas pode ampliar suas possibilidades com novos itens. Por exemplo, falta um relógio de sol. Já devia contar com um ou mesmo dois ou três deles, consolidando mais aportes turísticos, no caso, explorando a versão do tupi como “lugar onde primeiro se avista o astro-rei”. Quando eu ainda era engenheiro, em 1998, elaborei um projeto completo de um apetrecho desse tipo e, em contribuição cidadã, doei à Prefeitura Municipal. Espero que o construam junto ao novo prédio da Câmara. É um interessante espaço. Itu deu a “vorta” por cima e tirou muito bom proveito de uma chacota nacional. Varginha fatura horrores com a suposta aparição de um “ET”, à custa da credulidade.

Tapira ainda não conseguiu se constituir em atração. O asfalto até Araxá mais favorece a saída que a chegada. As cachoeiras próprias e a proximidade da serra são veios a ser explorados, mas a estrada de terra sofrível até São Roque de Minas, lama nas chuvas e poeira no inverno, é um óbice a ser removido. Até isso acontecer, a ida dos forasteiros se restringe às atividades profissionais demandadas pelo importante complexo de mineração.

Ibiá talvez seja a menos dotada de elementos para explorar a atividade. A pequena cidade, bem cuidada, não colecionou atrativos. Os de fora aparecem por conta de relações comerciais e industriais.

Quanto à região do Cerrado, Carmo do Paranaíba, Rio Paranaíba e Lagoa Formosa vivem menos ainda as atividades turísticas, apesar da boa conexão rodoviária com a BR 262. Carecendo de maiores atrativos, o turismo por ali é fraco ou inexistente. Rio Paranaíba não consegue tirar proveito da nascente do homônimo em suas terras. Lagoa Formosa tem festa do feijão e exibe um pequeno e belo espelho d’água no centro da cidade, porém é pouco para motivar possíveis interessados a vencer as distâncias.

O turismo, com boa arrancada em 1940, andou de marcha lenta durante muito tempo. Agora, com o Baú, experimenta novo alento. No Guia Quatro Rodas Brasil 2011, somente Araxá obteve chamada exclusiva em maior espaço entre as cerca de 450 do Brasil que ali figuram. São Roque, Sacramento, São José do Barreiro e Vargem Bonita aparecem compondo duas páginas que tratam da Serra da Canastra. Nesse verbete comparece também o queijo. Informa ele que “foram os portugueses que começaram a produzir queijos na serra, em meados do século XIX”. É uma versão diferente, pelo menos na cronologia. Grafou de forma errada o nome do artesão — Sr. José “Mario”.

Não se adquire da noite para o dia uma identidade turística. Ela não aparece, assim, no “sufragante”, tal como “fiat lux” e, da mesma maneira, não se consolida definitivamente como se atingisse um ponto final da história. Ela é construída continuamente, sem cessar, na renovação de conceitos da contribuição de novas tecnologias, no aporte financeiro e institucional e, o principal, através do esforço dos homens comuns, dia após dia. Sustentada por esse tripé, vai incorporando novas aquisições e aprimorando os traços culturais enquanto apoio e vontade própria, de olho no seu destino.

Os alemães chamam de beruf o emprego vocacional, na vontade de toda hora. De várias formas se instala esta vantagem e, na contrapartida mão, por todas as vias possíveis deve-se tentar garantir a sua presença, em permanente atuação. Quem faz a diferença é a população, historicamente cuidando dessas coisas, treinada, atenta a tudo que possa ser conveniente para gerar e ampliar atração, mas, também, para dissolver desconfortos de todos os tipos, tanto para forasteiros quanto, principalmente, para os habitantes da terra.

O turismo em Araxá, por exemplo, herança de uma história de muitos anos, continua avante, não para. A construção do suntuoso hotel é marco significativo, mas não foi de sopetão. Foi cumprida uma caminhada antes disso, um longo processo. Com sua inauguração em 1944, muitas pessoas da cidade aprenderam novos ofícios, a lidar com talheres de prata, a operar centrais de comunicação interna, a servir cafezinho ou uísque para o “doutor”, a operar lavadoras de roupa etc., atividades anteriormente desconhecidas. As novas teorias da administração hoteleira continuam forçando novas adaptações. Novas orientações e novos destinos, igualmente, definem outras necessidades, mudando o homem.

Recentemente, circulou pelos três dáblios a reportagem de um bom camarada lá do Nordeste que, por conta própria, resolveu tocar seu saxofone ao pôr-do-sol, fazendo ecoar pelos barrancos do rio os acordes do “Bolero”, de Ravel. Virou atração turística. Se a iniciativa vai continuar ou não — até quando? — não se sabe. Mas o potencial está lá e os efeitos paralelos serão aproveitados.

Em Rio Paranaíba, quatro irmãos deixaram a fazenda e vieram morar na cidade, mas não perderam o amor à natureza. Um pequeno gosto inicial obriga-os a gastar hoje dois quilos de açúcar por dia para reabastecer os bebedouros dos beija-flores. Uma maravilha! Estão domesticados, mansos, deixam-se coçar. Espero que continue sendo prestigiado e tenha se consolidado como ponto de visita, referência em educação ambiental e interesse para biólogos.

Na década de 1960, o cachorro Sarampo transformou-se em importante atração em Araxá, graças ao incrível adestramento recebido. Atendia ao comando trazendo pelo braço cada um dos nove filhos do dono, assim que solicitado, anunciando o respectivo nome. Realizava as quatro operações aritméticas fundamentais, inclusive divisão não inteira. Perguntado quanto era 5 dividido por 2, latia duas vezes forte e uma vez mais baixinho. Vinha gente de longe para ver. Apresentou-se em programa de TV para quem quis assistir.

E assim as coisas acontecem, ou não, ao longo da história. Quem visita Batatais pode admirar nos interiores da sua belíssima igreja as maravilhosas pinturas de Portinari — a propósito, o maior acervo do famoso pintor. E pronto. Está lá. Ninguém esconderá da cidade essa glória. Brodowski, terra natal do “Candinho”, não conta com referência equivalente. Pois bem, Calmon Barreto, araxaense, foi um importante pintor. Perdeu-se uma inusitada oportunidade de perpetuar na Matriz de São Domingos composição semelhante, talvez a Via Sacra, ou painéis alusivos à vida do Padroeiro. Quem é responsável por essa falha histórica? Quem deixou escapar essa vantagem de ouro que faria incluir no roteiro turístico de nossa cidade uma igreja diferenciada? Faltaram arranjo e cuidado turísticos naquela estação hidrotermal? Nem tudo está perdido. Continuamos contando com a competência de mestres do pincel, criativos, de primeira ordem, citar nomes é arriscar uma incursão na injustiça, mas, recentemente, tomei conhecimento do criativo trabalho do Dalgo Borges. Uma via sacra dele deve cair muito bem. Nossa formação é católica. A igreja é bonita, mas pode e deve sê-lo muito mais. É vistosa, mas poderia encerrar em seu interior algo especial na decoração, apainelando aquilo tudo, tetos e paredes, em comovente apelo turístico religioso. Em 2010, tiveram início nova obras de recuperação da ação do tempo. Indispensável, é verdade. Mas somente recompor é muito pouco. Melhor se envolver um projeto de agregação de algo novo, por exemplo, revestimento com mármore, um sino ou um campanário. Esta preocupação, este cuidado vale para todas as cidades. E é extensivo para escultores também. Monumentos em praças públicas, imagem do santo (ou santa) padroeiro devem perpetuar o nome de ilustres mestres da arte locais. A oportunidade, neste caso, a terra da Dona Beja não deixou escapar. Conta com imagens belíssimas de Bento Antônio e um busto do Calmon num dos jardins centrais. O Aluísio, meu primo, contribuiu com singular escultura junto à antiga estação ferroviária. Mais artistas devem ter dado sua contribuição. Por favor, completem a lista.

Vamos lá a outro exemplo, sutil, mas significativo, lapidar. Em Bambuí, foi recentemente restaurada a singela e graciosa igrejinha de Nossa Senhora da Conceição. Está lá de roupa nova, “cheirando a tintas”. Infelizmente, como sempre vemos nos templos católicos, encontrava-se fechada e não pude visitar os interiores. O esbelto e bem composto equipamento conta com nada menos que duas pequenas torres, cada uma com seu sino. Sim, senhor, coisa rica, não se encontra em muitos lugares tanta fartura assim. Mas… que pena — sempre um mas. Ela não pode ser admirada, por completo, sem estorvo, em toda a sua beleza barroca. Não é possível sacar uma foto somente dela. Aproveitá-la para cena de um filme de época isso não seria possível. Qual a razão?

(Foto da igreja barroca de Bambui)

Entenderam que podiam passar um vasto emaranhado de fios bem na testada, junto às janelas e telhado do pequeno templo. E ficou ele lá, com aquela peruca estranha, esvoaçante, horizontal. E não para aí, o… descuido foi pra valer, ainda plantaram um enorme poste de concreto de sustentação da fiação no passeio de pouco mais de um metro de largura, escolhendo com cuidado a posição: bem encostado ao lado de um dos campanários, encobrindo-o.

Com certeza não foi de propósito, mas sim falta de percepção, de consciência, de contribuição de um urbanista, mais afeito à diversidade das dimensões da vida. Não atinou bem antes de decidir qual o local. Por que não passaram aquela cabeleira abundante, aquela trama horrível, pelo lado de lá da rua? Não vi impedimento para tanto. Se alternância de passeio incorrer em custo adicional, ele estaria muito bem pago na visualização completa, livre, da bela e histórica construção. Se a fiação elétrica estivesse distante, de caso pensado, conscientemente levando em conta essa necessidade de respeito pela paisagem urbana, aí poder-se-ia dizer que a vocação turística local é apurada, desenvolvida.

A pracinha onde se localiza o referido templo homenageia o maestro Jorge Leite. A placa alusiva, insuficiente, não responde às principais perguntas, onde e quando nasceu e morreu, no mínimo. Ele compôs o hino oficial de Bambuí, vi na Web. Mas não consigo confirmar se é filho da terra. Junto ao singelo monumento faltam bancos, sombras e flores para convidar a uma parada e ficar ali, apreciando o ambiente bucólico, trazido dos tempos de antanho e, poder olhar a igreja… melhor ainda sem os fios e o poste.

Retomando comparações entre o Estrela e o Canastra, uma diferença está no bem montado espaço do queijo em Celorico da Beira, no piso superior do prédio da Câmara Municipal daquela localidade. Ali são promovidas reuniões com produtores e tem uma lojinha onde o interessado pode degustar e comprar peças, em variados tipos. É outra possibilidade aguardando materialização por aqui. A prefeitura do Serro contratou uma profissional para cuidar dessa importante interação entre o tradicional queijo da região e seus equipamentos barrocos coloniais. Todos sabem como é importante contar com esses espaços, abrigos e repositórios da cultura, legados da identidade, bastiões onde o ser humano se encontra consigo mesmo, atmosfera onde respira o seu ar, próprio.

São Roque já está de olho nessa investida e deve juntar forças para materializar o seu Museu do Queijo. Iniciativas tomam forma. A Saromcredi, sempre visionária, já está guardando objetos e formando acervo. Mais pessoas também exercitam a consciência da importância de um lugar de memória e também estão dispostas a colaborar. Faltam os recursos para conseguir o local e montar o espaço cultural, bem feito, contando com as novas técnicas da moderna museologia. Não seria absurdo pensar mais longe ainda, não deixar por menos, ampliando pelos diversos temas possíveis, a cidade merece. Um centro de história natural, ou um ecomuseu, território do homem, suas características geográficas e ambientais, sua ocupação cultural, um canto onde resguarda a sua invenção social. Segundo a professora Teresa Scheiner, num lugar desses, onde “a comunidade é simultaneamente ator e plateia, a base conceitual é o território do homem… uma paisagem ímpar… condições especiais de ocupação, de produção cultural ou todas essas coisas juntas”. Arrebanhando o acervo e o conhecimento construídos, eles são espaços de extrema relevância para a cultura e para o desenvolvimento sustentado locais.

A propósito, é muito fértil o campo a ser explorado a partir do eixo histórico para promover o produto. Não ganhamos tanto com a lenda da Dona Beja? Quantos contos e “causos” não podem ser montados e divulgados? Transformar, por exemplo, o “Seu” Habib num símbolo de São Roque de Minas? Inventiva não nos falta para romancear toda essa saga.

Associativismo dos municípios dos circuitos também é eixo de atuação importante. As ações locais devem ser sempre revestidas da “mania” do turismo. Tudo deve transpirar essa atividade para se conseguir efetivamente desenvolver e aprimorar o talento local. Atitudes das pessoas diante dos visitantes, facilidades, inclusão de disciplinas na grade curricular ou, pelo menos, palestras regulares nas escolas de ensino fundamental e nos cursos profissionalizantes e universitários. As propostas são muitas e as pessoas conhecem muito bem todas elas. Escapam da minha competência e também do escopo deste livro querer discorrer sobre isso.

No desenvolvimento do capítulo incluímos sugestões de equipamentos e ações para incrementar o turismo. Fecho essas dicas citando Maria Paiva.28 Apoiada em estudos sobre a relação entre turismo e lazer, ela observa que o “elemento dinâmico do desenvolvimento cultural desempenha funções essenciais nas estruturas físicas e psíquicas dos indivíduos, no exercício de liberdade e de criatividade e, em nível coletivo, como fator de integração social. No entanto, na mercadização do lazer via turismo, através da oferta de produtos massificantes, pode levar a recreação a se transformar em fator alienante e de desagregação social”.

Existem facetas indesejáveis da questão, preço a pagar, nada é somente “venha a nós”. Todas as atividades humanas envolvem impactos. O turismo não escapa desse “pecado original”, dessa lei irrevogável. Pelo menos três consequências são visíveis, límpida e imediatamente.

A primeira é a inflação, tão nossa conhecida, ser fantástico onipresente, imortal. Tudo parece servir de ração para esse monstro, qualquer odor aguça o apetite voraz do dragão, um alfinete tocando o chão desperta essa besta apocalíptica.

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28 Cf. PAIVA, M. das Graças V. Sociologia do turismo. 7. ed. Campinas: Papirus, 1995.

Em Vargem Bonita, desembolsa-se o equivalente a cinco euros para ter direito a um prato autosservido num fogão improvisado sob um puxado junto ao quintal, oferecendo arroz, feijão e um ovo frito. Não dispondo de balança, a dona do restaurante vê todos os clientes chegando após cumprir tarefa no campo a manhã inteira, com fome suficiente para almoçar uma novilha, dois cachos de bananas e um queijo. Na Savassi, paga-se três euros por uma refeição normal, servindo o que quiser de duas dúzias de alternativas.

Uma diária em uma pousada três estrelas pelos arredores da serra pode chegar a custar cento e cinquenta euros, superando o exigido por um continental quatro astros em Lisboa ou Munique. É verdade, da janela do hotel lá no Campo Pequeno somente são avistados prédios e até um hospital, nenhum arbusto, e talvez daí decorra a racionalização e a explicação para o preço aquecido por aqui.

Essa ânsia não é exclusiva da região da Canastra, mas, sim, regra geral em todo o Brasil. É o fetiche da mercadoria, nesse caso, montado na busca de uma natureza já não encontrável em qualquer lugar. Essa elevação dos preços não resulta somente da presença dos estrangeiros, portando na algibeira o saco de moedas mais fortes. Também nós, em férias, normalmente estamos dispostos a despender mais, juntada a lógica da conveniência, onde o incauto acorre na aflição de uma necessidade premente, sem alternativa, e não se importa de pagar mais por isso. Pelo que se pode ver, fica embutido na concepção turística o caráter da coisa acudida, aprontada em circunstância excepcional. Todos os estabelecimentos de serviços, restaurantes, bares, comércio em geral funcionam como se fossem um “24 horas” de posto de gasolina, ou lanchonete de beira de estrada, ou padaria. Você está ali para comprar sob pressão de penúria — se não adquirir vai ter problemas. O comerciante sabe disso e opera valor de troca bem além da soma do custo mais o lucro cristão.

Aquecem os preços as hordas de consumidores já sedados, nos embalos de todas as noites, madrugada adentro. O cérebro anuviado não consegue fazer contas de quantas notas saltam da carteira. Os dedos engordados mal conseguem pegar as cédulas. Um pão de queijo, dois dólares. Os mesmos artigos em centros maiores, ou nos “peg-pags” custam de 20 a 50% menos, às vezes até mesmo a metade.

Esses aspectos são tratados de forma muito apropriada por Maria Luchiari ao comparar o valor de uso, qualitativo, definido pelas necessidades de sobrevivência, com o valor de troca, quantitativo, principal referência para o turista na definição da utilidade do ambiente. Faz sentido.

A especulação imobiliária também é combustível que abastece o fogo das ventas da fera, alimenta a fabulosa hidra inflacionária, de muitos e longos tentáculos. Em círculo vicioso, ao mesmo tempo, toca a roda de outro impacto, da depredação do meio ambiente, oxigenada pela demanda. Ocupação irregular do solo, crescimento desordenado, alteração das características do lugar, congestionamentos (de trânsito, bancos e restaurantes) e aumento do fluxo das pessoas pelo espaço urbano em geral. E tome mais: alteração da paisagem, poluição visual e arquitetônica dos ambientes, aumento da demanda de bens, serviços e utilidades (eletricidade, água e coleta de lixo) e agressões sobre as condições naturais dos espaços pela presença do forasteiro. Aqueles em busca de sossego, aos poucos optarão pelas vindas fora de temporada.

Vem no bojo um segundo problema. As cidades vão se transformando sob a influência das necessidades de recriação demandadas pelas atividades, em função dos novos padrões de acomodação e de prestação de serviços. Somente constrói efetivamente quem habita, sabemos disso muito bem e, nesse caso, vindo o crescimento de fora, imposto, não necessariamente ele vem ao encontro dos interesses locais e, nesse caso, as perdas podem ser muitas.

Não necessariamente sustentável socioeconomicamente, esse boom dentro dos limites do município pode impactar a atividade no campo ao atrair a população rural para a cidade, fascinada com o falso aceno de melhores condições.

A população nativa terá de haver, também, com consequências psicossociais na emulação do comportamento dos visitantes em hábitos de gasto, linguajar e coisas assim, podendo desembocar em frustração quando o morador do lugar botar tino na evidência de não ter conseguido alcançar o padrão de vida dos forasteiros. Maiores decepções poderão advir da constatação de que os lucros da indústria do turismo ou saem ou se concentram na mão de poucos, ou seja, mais decepção virá ao ver a riqueza gerada fugir do proveito da população, não aparecer lá na ponta em melhoria da sua qualidade de vida.

Assim, as diversas atividades e interações locais vão sendo “desarranjadas e reinventadas” ou, pelo menos, “redescobertas” nas novas formas de existência. A cidade, e com ela a população, vai se adaptando aos viajantes (quando deveria ser o contrário), não importa que muitos nativos deem graças aos céus quando a atividade não dura o ano todo. Sob esse aspecto, muitas vezes, a aparência hospitaleira esconde o interesse pecuniário. Em Paris nem dissimulação há. Eles detestam os estrangeiros, ou pelo menos isso se depreende da sua já antológica falta de trato, de polidez, que fazem questão de exibir.

É razoável admitir que São Roque “reprisa” atualmente o filme encenado no passado em cidades vizinhas hoje de maior porte. Não é difícil levantar exemplos bem visíveis sobre o andar das alterações. Configuram-se novos serviços e trocas, inclusive instalação de equipamentos modernos em estilos mais rebuscados, atendendo à demanda específica de gostos apurados nos centros mais desenvolvidos, com outras necessidades materiais. De certa forma, essa tendência leva a uma homogeneização das paisagens urbanas, vestindo um uniforme comum a todas elas, com pouca variação. Há muita semelhança entre o visual dos quarteirões centrais de Campos do Jordão e os de Ipanema, no Rio, com suas lojas de griffe. “As emplastagens e replastagens sucessivas têm anacronizado tudo”, assim Garret lembrou Raczynski. As similitudes podem tocar também a parte negativa, pois, em casos mais avançados, aparecem as favelas, no “repeteco” do doloroso aguçamento das diferenças sociais.

O terceiro vetor vincula-se à prostituição. Ela abraça cruelmente muita gente. Fogo morro acima, água ladeira abaixo, infrene. Muitas jovens, quem sabe inocentes, na emoção suspirada em sonho do príncipe encantado, ou mesmo na racionalidade de livrá-la da situação de pobreza, são vítimas fáceis da lábia grudenta, treinada, desses gaviões de penacho. Sua ignominiosa presença vitima também a pureza infantil. Na tentativa de aliviar as condições inferiores de sobrevivência da sua família acaba se atolando no fango do vício milenar. A miséria, antes somente material, atinge o espaço moral.

É o chamado turismo da sedução, o prostiturismo ou turismo sexual. Normalmente, é vício pegajoso de viajantes solitários, hospedando-se em hotéis mais simples para duas ou três diárias somente e consumindo muito pouco. Estão ávidos por uma aventura amorosa, nas diversas alternativas, hetero, trans ou homossexuais, pedofilia — a qualquer coisa se atrevem. As drogas e o álcool são chamamentos associados do turismo alucinógeno. Essas hordas estacionam no lugar e descem trazendo nas malas a DST, a dor, a tristeza e a morte. É a nova barbárie, tornando as cidades mais perigosas que a selva.

A propósito, pesquisa recente da Secretaria de Estado de Turismo informa: cerca de 42% de entrevistados percorrendo Minas viajavam sozinhos. Alerta?

Na esteira dessas três componentes contam-se também efeitos não tão visíveis, acontecendo em outros planos, um tanto afastados da percepção do cidadão comum. É o caso das distorções advindas de aplicação de verbas ou incentivos públicos em favor de investimentos reservados para elites, apresentados por empresários locais ou por construtoras para levantar os guetos de luxo.

Ao longo do tempo, vão se instalando influências sobre os padrões culturais, mas muito lentamente, sutilmente e, por isso, difíceis de serem identificadas. Num processo de socialização, os habitantes do lugar assimilam os traços trazidos pelos turistas. Tanto maior será a aquisição de novos valores quanto maior for a diferença social entre visitantes e hospedeiros.

A etimologia casa “recreação” com “revivicação”, no sentido de reconstrução de comportamento. Contudo, em boa parte, a prática atual leva a efeitos um tanto diferentes, à espera de um estudo sociológico para confirmar a hipótese de resultante adversa, contrária ao esperado, cansando enquanto deveria repousar, estressando e não aliviando, em vez de descongestionar e restaurar, intoxica e vicia, não liberta, só faz sentir-se culpado. Nesse caso, perturbaria também a organização e a integração sociais.

Podemos avançar mais ainda, amplificando o conceito. Entrar em contato com a natureza ou subculturas diferentes pode ensejar oportunidade de restaurar visão mais completa do mundo, dissolvendo a fragmentação imposta pela ciência, pela tecnologia e… pelas vitrines. Um metalúrgico, após dissolver o cérebro durante um ano de jornadas fresando roda dentada necessita urgentemente de respirar novos ares, de divisar outros horizontes. Precisa dar um tempo para si mesmo, filosofar um pouco, recompor o seu ser por inteiro.

Uma análise sociológica interessante avaliaria a percepção média do público em relação ao espaço que está ocupando provisoriamente. Nos hotéis-fazenda, os alto- falantes se abrem a volumes ensurdecedores, pessoas conversam e riem a plenos pulmões e bebem e bebem varando madrugada, martelando pagode, discutindo futebol, ou simplesmente jogando conversa fora, no abraço etílico das dezenas de ampolas geladas. O mais comum é apearmos nas pousadas despejando excesso de bagagem, sempre cheias de necessidades, ansiedades e medos. Trazemos para o ambiente natural o mesmo comportamento usual do quotidiano, em casa. Na frasqueira, a falta de percepção sobre os direitos do próximo. Transportamos para o espaço de recuperação e de libertação as mesmas amarras embotadoras, repetitivas, dos principais centros. Não conseguimos nos libertar por um momento. O turismo ecológico deveria servir para beneficiar, estimular o lazer enquanto redescoberta, possibilidade de prática de outros hábitos, revisões, exercícios de humanização em favor da desopilação, da desalienação e da integração.

Também pode ser objeto de análise a frequência dos turistas às alternativas disponíveis na cidade, se dão preferência ao específico, diferenciado, tais como praia, esporte e montanha, ou se acabam buscando por ali as propostas globais de consumo, as universalizadas, aplainadas, tais como danceterias, boates, barzinhos e assemelhados. As estatísticas de venda de álcool e drogas podem servir de indicadores eficientes na avaliação da utilização turística do lugar. Certas praias na Bahia já estão associadas ao uso de drogas, em finalidade turística bem determinada, sob chancela do “libera geral”, desatinado, na contramão dos citados resultados benéficos pretendidos. O Carnaval está na cultura, mas em certos lugares ele não deveria ser incentivado pelos órgãos públicos. Não casa com a proposta básica. Ficam assim com um vale tudo para trazer dinheiro, sem definir vocação específica. Conheça São José da Porteira, tudo que você pensar aqui tem.

Na mesma ótica, os passeios “enlatados”, em grupos, comuns nos importantes destinos turísticos, assim também as visitas guiadas, a museus, aquários, grutas, parques e demais sítios ecológicos devem ser olhados com reserva, pois a plenitude do proveito individual pressupõe liberdade, sem engessar o que ver, durante tempo previamente definido, sem considerar variações pessoais.

Todas essas influências devem ser objeto de análise pelas instituições locais, obtendo informações importantes para o planejamento da cidade, de ordenamento jurídico da ocupação e da intervenção operacional. Existem dezenas de planos urbanístico-turísticos mais ou menos bem-sucedidos no país. Vasta literatura especializada e diversas empresas estão à disposição para contribuir com seu conhecimento científico e profissional. Sustentabilidade é a palavra chave orientadora do objetivo geral, tanto na manutenção do espaço como na garantia de reversão, para a comunidade, no proveito econômico da atividade.

As cidades em geral podem adotar medidas simples, de baixo custo, para trazer melhorias até imperceptíveis, mas que serão sentidas pelos moradores e também pelos turistas — estes talvez mesmo sem perceber a razão, simplesmente terão a sensação de uma cidade mais bonita, mais acolhedora. Por exemplo:

  • plantio extensivo de árvores e formação de canteiros de flores. Uma mania da população, realçada em mutirões públicos de reflorestamento e instrução escolar em favor da criação ou recomposição paisagística de parques e jardins, arborização de vias públicas, implantação de um parque botânico, etc. Cada empresa fica responsável pela manutenção de uma parte.
  • Retomada dos passeios pelos pedestres eliminando a ocupação indevida como extensão das garagens particulares. Pelo menos metade da largura deve ser plana, contínua, paralela à rua, horizontal ou inclinada, sem degraus. Se os carros podem, por que os idosos, os carrinhos de bebê, os portadores de necessidades especiais e os transeuntes em geral não dispõem também de livre trânsito? Aceitando como estão atualmente, caracterizando invasão privada de um espaço que é público, a sociedade sinaliza prioridade de importância para os automóveis em detrimento das pessoas. Penalizar as transgressões.
  • Disposição estratégica e suficiente de coletores de lixo, estímulo à população na manutenção da limpeza da rua em frente à sua propriedade e fomento à civilidade para alcançar também a mania de limpeza dos logradouros.
  • Mutirão de limpeza de entulhos e fechamento de lotes vagos. Aplicar sanções a infratores da disposição regular de rejeitos.
  • Apoio à pintura enquanto manifestação de arte autorizada, embelezando muros, particulares ou públicos. Inclui decoração de painéis em ambientes de maior trânsito de pessoas (halls de entrada, salas de plenários e de reuniões, espaços culturais, muros, paredes laterais de sobrados, uma boa lista de alternativas), preferencialmente sobre motivos alusivos à cidade, sua história, seus símbolos e seu povo.
  • Fim das sirenes nas saídas de garagens. Os condôminos apreciadores de ruído, caso desejem, podem colocar alarmes lá dentro para avisar que o passeio pode estar sendo utilizado por pedestres. É uma crucial inversão de valores. A pessoa é mais importante, não o automóvel.
  • Emudecimento das propagandas sonoras de todos os tipos, ambulantes ou nas portas de estabelecimentos comerciais.
  • Punir severamente, inapelavelmente, a desobediência à lei do silêncio, sem exceção para autoridades, não importa a patente.
  • Desencorajar o uso de água para “varrer” passeios, lavar veículos nas garagens, calçadas e ruas, e demais atividades do tipo contrárias à limpeza, à prevenção sanitária de Dengue e outros insetos, e à aparência geral das vias públicas. Piso público molhado, não pela chuva, é sinal de subdesenvolvimento, na sua manifestação mais desabonadora — a da favela.
  • Recuperação adequada das faixas de rolamentos das vias públicas nos casos de necessidade de abertura para instalação ou reparo de utilidades, recompondo o nível do piso, sem formar irregularidades.
  • Aprimoramento do sistema público de transporte e criação de calçadões, desestimulando o uso de automóveis no centro da cidade.

Destaco a importância de todas as providências de combate ao ruído, buscando ambientes urbanos mais saudáveis à audição e mais propícios aos anseios do espírito. Feliz a cidade na qual se pode andar ouvindo somente as vozes das pessoas, educadamente, o riso da gurizada nos seus folguedos e, de vez em quando, na hora certa, o badalar dos sinos. Eu pude ver algo assim em Medeiros e em Vargem Bonita. Tal privilégio somente é possível em cidades menores? Uma coisa é o muezim, do alto do minarete, enchendo o ar da cidade com sua pregação ao custo de seus pulmões, em emissão exclusiva da sua voz. Desagradável é ser obrigado a se valer de alto-falantes para conseguir levar a oração aos fiéis.

Existem condições bem mais difíceis de alcançar. Elas pertencem a um estágio mais avançado de desenvolvimento, no seu sentido pleno. Somente serão viáveis no exemplo de educação apurada da própria sociedade e na criação de mecanismos automáticos, naturais, de coerção. Não buzinar, não gritar pelas ruas, não utilizar celular em recinto fechado (sem necessidade de lei para impedir) são exemplos de ganhos possíveis tão desejáveis, mas difíceis de atingir.

Em um nível mais avançado ainda de civilidade (quem sabe um dia veremos), as ruas não mais exibirão os tumores dos quebra-molas, lombadas e sonorizadores. Nessa nova urbis, sobre uma planície infinita, habitada por nova gente, um povo fecundo, aí sim os limites de velocidade serão respeitados e as infrações severamente punidas. Desgraça sem perdão sobre aquele que atropelar alguém, nunca mais se aprume na vida. Se conseguir sair da prisão, contado um tempo bem longo e sem descontos, hão de lhe apontar o dedo toda a vez que se atrever a mostrar a cara fora da porta.

Tudo utopia por enquanto. Não cabe no esquema mental vigente. Será um novo brasileiro aquele a levar avante uma proeza dessas, a justiça não há de ser esta que aí está. Nesse mesmo tempo feliz, as casas e os edifícios não estarão cercados de muros com grades, sobre estas os pontaletes de aço coroados por cercas eletrificadas, em cima delas o monitoramento via satélite. Envergonha quem dispõe de um mínimo de discernimento, quem anseia pela existência na sua plenitude, quem percebe que não é esse o caminho que levará à solução do problema de segurança.

Entrei em desvio e retorno à pista principal. Dizia: se a cidade acaba assumindo deslocamentos para se adaptar ao turismo, este também pode e deve se adequar a tiques locais, pelo menos alguns. De início porque “entre os shoshones deve-se proceder como os shoshones”. Faz bem ao espírito tentar entender o espaço do irmão, “cada povo com o seu uso, cada roca com o seu fuso”. Segundo porque os de casa podem ensinar coisas para os de fora. A boa gente do lugar, mantido o seu jeito de ser, pode produzir turistas diversificados. Um lugar sadio melhora a saúde do visitante, ou então este logo é afugentado qual inseto de ambiente limpo. “Vice-versa o contrário”, se a cidade não vai bem, só atrai gente “estranha”, dela foge o saudável, na prática de medicina preventiva. Se em Medeiros viceja o sossego, por que haveriam os turistas de levar zoeira para lá? Por que não podem os forasteiros reaprender as vantagens dos dias mais contemplativos, menos agônicos, sem sobressaltos, abraçados à terra e à sua gente? Nesse singelo e gracioso lugar, o único receio é o da chuva desabar antes de abrir a porta de casa. Muito felizmente, não aderiu às sofisticações. As pessoas celebram simplesmente a vida, a plenos pulmões. O chamamento da cidade poderia ser: “Visite Medeiros e realimente seu espírito”. Um emblema para se colocar no vidro do automóvel exibiria: “Em Medeiros, ouvi cantar minha alma”. Se a sociedade, respaldada no poder público (ou vice-versa), impõe uma ordem geral, uma regra de jogo, a presença do turista é orientada, ele logo percebe: ali não é a casa da Maria Joana, caótica, cada um se comporta conforme lhe vem à telha. Um ambiente organizado espanta o estrangeiro destrambelhado, exorciza o “doidão”, essa gente sem eira nem beira.

Se o Nordeste conseguisse extirpar a exploração sexual infantil, maravilha, nesse tempo de imenso contentamento, nesses ansiados dias de glória da justiça, ele se livraria dessa praga “estranja” que emporcalha o seu chão, uma nova versão da cosanostra agora escrita em páginas repugnantes porque se enredam na inocência. Antes fossem os antigos “carcamanos”, na vivacidade e na esperteza das catiras entre os adultos. Agora não. Eles arrebanham mal e mal miseráveis três mil euros e desembarcam aqui “do lado de baixo do Equador” em busca de crianças, fazendo retumbar um clamor que sobe até aos céus. Pelos saguões dos hotéis percolam os miasmas das indecências de seus corações doentios. Seus bafos fétidos exalam os eflúvios dos estos e mostos de suas mentes em putrefação. Rastejando pelos becos do submundo, babam a ignomínia da sua vil perversidade e sobre as areias alvas das praias destilam o chorume pútrido de suas almas abjetas. Ao final, em ato animalesco, envilecedor de toda a humanidade, fazem escorrer o carnegão nauseabundo de seus corpos inficionados. Esses vermes deveriam ser enquadrados na condição de terroristas, da pior espécie, em crime inafiançável. A mais severa e temível entre as sentenças, entregar ao cutelo seria pouco. Acabar com a miséria em Recife, Fortaleza etc. alcançaria o efeito profilático da desratização.

“Me perdi” novamente. Não consegui retomar a rodovia principal, a pista do tema. É difícil, assim, sem GPS, em meio a tanta encruzilhada pelos caminhos, quando se dá conta, pronto, cai-se em um “cebolão” difícil de sair. Vou tentar de novo.

A questão do respeito impõe também mudanças de hábitos no trânsito. Não pode o forasteiro se ver dono do pedaço, dirigindo como bem entender pelas ruas das cidades. Também nas estradas devem ser respeitadas as leis e a natureza. No curto trecho asfaltado entre Bambuí e Medeiros, contei dois pequenos animais silvestres atropelados. Medidas devem ser tomadas para diminuir esse triste impacto advindo do aumento do fluxo de pessoas e de veículos (desde que não seja colocar redutores). A melhoria das rodovias e o turismo de fim de semana regado a muito álcool contribuem para o agravamento dessas perdas.

Complementando o raciocínio anterior, deve-se incentivar o turista a incluir no passeio ecológico uma visita a fazendas cadastradas no IMA. Por exemplo, quem viaja até São Roque e não conhece uma dessas propriedades foi a São Paulo e não comeu pastel. Além disso, propõe o Bruno, “é importantíssimo esse contato entre produtor e consumidor, ele cria laços de confiança e o comprador vê de onde vem o queijo”. Como se não bastasse, ganha uma aula sobre produção, diferenças de sabor, apresentação, meio ambiente e tanta coisa mais. A maioria dos artesãos cadastrados está muito bem treinada também na arte de receber. Trata o forasteiro com carinho, dispensando simpática atenção. É até um milagre no exercício de paciência. Conseguem isso em meio à azáfama do dia e discorrem com desenvoltura sobre o seu mister. A passagem por um desses sítios poderia incluir almoço junto ao borralho, simples, porém saudável, modesto, mas culturalmente digno, trivial, mas saboroso, sem sofisticações, ecologicamente sustentável. Uma aula direta, didática, de ecogastronomia.

Já destaquei a complexidade do ato de comer, de se alimentar. A nutrição envolve todo o ser, e principalmente com as percepções de vida, de si mesmo e da sociedade. Assim também, da mesma forma, o turismo. Ele nos abraça pelos sentimentos, valores e crenças do indivíduo e do grupo. Tal como no paladar e no olfato, os espaços físicos gravam na memória sentimentos e emoções peculiares de cada época, de cada lugar.

Montando utopias, uma cidade poderia ensinar a empreender um turismo distinto, humano, compensador. Krippendorf lista um formidável e interessante rol de atitudes saudáveis, geradas no espírito. 29 O turista poderia aprender a brincar de Robinson Crusoé, “expondo-se aos furores da natureza”, reaprender a inspirar e a

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29 KRIPPENDORF, 2001.

expirar, castigar o corpo no “esmoído de canseira”, mas repousando a mente. Ah, e guardado o relógio para escapar das garras do inútil controle do tempo. “Deixar ao próprio tempo o rolar compassado das horas, a felicidade silenciosa, a sossegada e branda paradeza do tempo. Por que apressar o engenho do tempo, o sumidouro voraz das tuas areias?”, vê, assim, Autran Dourado, sempre rimando com inspirado.30 Ler revistas ou livros sobre o lugar, sua história, tanto quanto possível imitando Garret, se algum dia for a Roma, levar na algibeira Tito Lívio, Tácito e seu fiel amigo Horácio. Pouco a pouco ir aprendendo a ver com outros olhos o mundo à volta, olhando, analisando, apreciando e experimentando, sem necessidade de ter. De posse, isso sim, de mais riquezas imateriais, dividir impressões com as pessoas do lugar ou com os colegas de viagem, desenvolver criatividade, conviver efetivamente com os familiares. Em espiral crescente de alegrias, deixar-se surpreender, extasiar-se, entusiasmar-se, até mesmo com as pequenas coisas, abrir-se a novas possibilidades de contentamento e felicidade. Ser um consumidor crítico, exercitar o cibus, potus et venere, omnia moderata, comer, beber e amar, tudo com moderação, adotar uma atitude modesta, simples, discreta, respeitar e apreciar as diferenças de costumes, não fazer promessas aos habitantes locais, fornecedores ou não, refletir sobre a vivência de cada dia, descobrir e desdobrar o espírito renovado sem ansiar por recantos exclusivos. Fazer perguntas e ouvir. “Compreender em vez de apossar-se, olhar em vez de pegar, alcançar em vez de conquistar, respeitar em vez de desprezar, procurar em vez de achar”.

Para aprofundar nessas percepções e sensações, para apreciar a plenitude do exercício dos melhores sentimentos da alma humana sugiro a leitura de “Imagem e memória no espaço de retorno”, de Liliana Laganá.31 O texto inicia citando Valéry, certains edifices sont muets, les outres parlent; et d’autres, enfin, qui sont les rares, chantent. Não carece tradução, muets, significa mudos mesmo. Os poucos, raros, cantam para a gente, tocando tudo de melhor guardado em nossos sentimentos vividos. Ouvi muitas casas e igrejas sonoras nessas visitas às cidades do meu sertão. Várias delas até singelas. Essa competente professora da USP, em páginas brilhantes, de extrema sensibilidade, discorre sobre o livro “Conversazione in Sicilia”, escrito em 1937 por Elio Vittorini, sobre seu retorno à terra natal, decorridos muitos anos de ausência. A partir daí, Dra. Liliana alça o turismo aos píncaros, transporta-o para novas dimensões, outros lugares dos sentidos, “aos quais tende o espírito humano… espaços vividos e depois perdidos, os espaços felizes, depositários de lembranças guardadas na mente como imagens de paraísos particulares”.

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30 Cf. DOURADO, Autran. Sinos da Agonia Rio de Janeiro: F. Alves, 1991. p. 149.

31 Cf. LAGANÁ, Liliana. Imagem e memória no espaço de retorno. (s.d.t.).

Sinto não ter conseguido investigar mais coisas. Uma sociologia do retorno poderia se constituir em trabalho belíssimo. A volta ao lugar de origem, não como fuga do dia-a-dia, na feição negativa, “mas sim uma busca do sentido da vida, em um novo contato com as coisas como fora na infância, possíveis apenas na ilha da infância. Significa a possibilidade de voltar a ver o mundo com os olhos inocentes, mas uma inocência após a história. É uma conversação com as coisas, que começam a falar… de antigos sabores das montanhas, e até cheiros, rebanhos, fumaça, queijo”. Na medida do contato com as referências do passado, andando pelos lugares da sua meninice, a conversação se intensifica, os registros vão-se adensando, “as coisas cantam seu mais alto canto, mas num tom submisso, íntimo, sentido, quase um coro a bocca chiusa, como de improviso, encontrando num ponto da memória”. Muito apropriada essa lembrança do enlevo do solfejo a boca fechada, principalmente se estiver se referindo à inspiradíssima página musical de Puccini, da Madame Butterfly, tão pungente meditação. Também é marcante, e lapidar, a expressão “infância após a história”, um sentimento alcançado ao longo da nossa existência, conhecida a história, na lúcida e cristã compreensão da vida, depurada de todas as vaidades.

Páginas e mais páginas dos livros de Tufy Habib guardam uma profusão desses sentimentos ajaezados, puros, pairando com as asas douradas dos mais legítimos enlevos da alma humana. Absorto na imaginação, em vivência de retorno, ouve a banda antiga passar no coreto antigo da praça. Depois desperta dessa “triste carícia e dessa doce dor”, bruscamente truncadas pelos ruídos das motos, na curtição da moçada de hoje. Os costumes mudaram os valores também e vice-versa, e, assim, alteram-se as emoções, os sons, os cheiros. Fluir ou acelerar, acordes maviosos ou explosões das cilindradas, olor das flores ou monóxidos e dióxidos sulfatados.

Em concisão maravilhosa, inspirada, Cláudio Martins resumiu na capa deste livro essas sensações. Um povo de coração simples, podendo se dar aos folguedos e às emoções da infância, em vida feliz, retrata também a inocência após a história, tudo isso junto à natureza em festa, sob o céu antolhado de estrelas, acotovelando-se umas às outras…

Bocca chiusa. Quanto mais fechada melhor. Na Serra da Canastra, sejamos discípulos de Salvador Rosa: só abrir a boca para falar alguma coisa quando tivermos certeza de que vamos dizer algo melhor que o silêncio.

Finalmente, mas não menos importante, estar sempre atento durante as compras. Uma boa aquisição pode ser resultante do baixo salário pago ao atendente. É lícito evitar ser vítima da exploração, mas também não é justo aproveitar-se de contingências desfavoráveis para o produtor. O preço pago a mais na queijeira, além de remunerar de forma justa o artesão, deve ser visto como um aporte pessoal, uma participação no esforço de fixação do homem no seu lugar.

Para laço final deste capítulo, resumo a seguir as recomendações da Associação Pró-Erschmatt em favor de um turismo sustentável, harmonioso, em apresentação adaptada, no formato de famosa poesia:

“Se és capaz de criar empregos interessantes, de preservar a paisagem, de pensar nas gerações futuras, de evitar a especulação e a inflação, de permitir o desenvolvimento da comunidade, de não gerar espaços mortos, fechados, inativos, desperdiçados, durante a maior parte do ano, de evitar despesas de infraestrutura e de utilidades pesadas, ficando o aproveitador com o lucro e a população com os custos, de não conduzir à liquidação da pátria, de beneficiar a população como um todo e não apenas poucos especuladores, de garantir a autodeterminação e não a remessa de divisas, nesse caso, aí sim, serás um turista em plenitude”.

Ao final, o autor convoca a população para participar de todo o processo, aprimorando a sua autoafirmação e defendendo sua soberania nas decisões de seu mais importante interesse.

Capítulo VIII – As onze tribos assinaladas

Posso banhar-me nas minhas águas para ser purificado.

Não careço ir até ao Rio Jordão distante. Tenho cá o meu.

Percorrendo os caminhos do queijo de leite cru do oeste mineiro, fui captando as condições gerais da vida, os momentos e os modos de ser, através da já citada “observação de pássaros”, ou conversando com pessoas, um dedo de prosa, solta, ou em entrevistas estruturadas, com aplicação de questionários, já comentei. Não obstante as insuficiências, e ressalvados os limites de qualquer trabalho desse tipo, muitos dados importantes foram obtidos. Neste capítulo, apresento os principais aportes desses levantamentos junto às populações das onze cidades. Ajunto também percepções sobre traçado urbano, estado de conservação e limpeza das vias públicas e dos equipamentos, e tudo o mais que de interesse pude encontrar.

Araxá

Muitas coisas vão dispersas pra todo lado. Sejam bens naturais, como é o caso do ar e das águas, mas também vários aspectos da existência da espécie humana são onipresentes, estão disponíveis em todo canto, não são reservas outorgadas por alguma majestade a um lugar determinado por deferência especial. Uma dessas bênçãos comuns, um “arroz de festa”, é o atavismo, consciente ou não, no apego às origens, ao chão onde se viveu a infância, às referências tão gratas a cada um e a todos. Tal como um visgo, gruda de vez, bucha nenhuma o desgarra do corpo. Nem mesmo a mais sofisticada técnica de lavagem cerebral consegue passar uma borracha. A ausência, em autoexílio ou no êxodo forçado, não importa quão longa seja a distância, de muitas léguas, mesmo ultramarinas, por anos ou décadas, o tempo não conta, nada consegue desatar esse vínculo, diluir essa nostalgia, puxar da tomada esse magnetismo, sempre a nos atrair de volta para as origens. Difícil de explicar o que seja essa estranha ânsia.

Araxá significa um monte de coisas, todas ligadas à altivez. “Terreno elevado e plano, planalto, chapadão”, “vista do mundo, largos horizontes”, “coisa que olha o dia”, “lugar onde primeiro se avista o sol”, ou ainda, Arecha, “vigilância, gente vigilante”. Para uma versão antiga (não vingou), o nome teria derivado da expressão “lá hare achá”, utilizada para concluir a explicação do local onde os facínoras e seus esbirros encontrariam os negros fugidos, ou as pessoas poderiam tirar peças de palmito, tão apreciado também naqueles tempos, ou, ainda, ouro, segundo várias versões, no caso da última, quase uma pegadinha.

Quando Saint-Hilaire passou por aqui contou apenas umas quarenta casas na vila, habitadas por gente ignorante, sem compostura. Bem, sendo assim, mudou muito de lá para cá, melhoria constante, na chegada de pessoas diplomadas, redobrando o trato com a instalação do Grande Hotel. Gente das capitais e muitos artistas de renome vinham até aqui e traziam mais verniz. A população de hoje (e faz tempo) não deixa nada a dever em civilidade, literatura e apuro acadêmico. Além disso, tradicionalmente, o lugar abriga forte tradição musical, comprova-o um longo histórico bem vivido de saraus, encontros, bandas, noitadas líricas, corais, “retretas e procissão”. Músicos e cantores? Uma “porçoeira” deles.

Se nos primórdios éramos bugres, agora o pessoal é bem esperto. “Seu” Terêncio, fazendeiro do lugar, bom homem, bem “aprumado”, era vivo e experimentado na lida com as muitas armadilhas da vida, principalmente as do mundo das catiras. Aprendeu tudo empiricamente, nos embates, sem nunca ter lido Maquiavel. Certa feita, foi assediado pelo Ananias, caloteiro de marca maior. Necessitava este de um aval como garantia de empréstimo bancário para comprar um novo burro substituindo o parceiro anterior — partiu desta para melhor, depois de muitos anos de relevantes serviços prestados. Eufórico e com muita segurança, informou ao possível avalista sobre a conversa prévia com o gerente, tendo este concordado plenamente com o honrado nome do pecuarista, suporte mais que suficiente para considerar como boa e muito válida a transação. O “Toim”, para os amigos, avaliou rapidamente a situação, olhou bem para o espertalhão e, sem pestanejar, retrucou com firmeza:

 

— Olha aqui, ô, Ananias, se eu abonar o empréstimo pra você, não precisa comprar o burro não. Pode deixar que eu mesmo puxo a carroça!

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Vários dados interessantes, importantes, afloraram da aplicação do questionário junto a 98 moradores “do” Araxá.

Pra começar, um grito de socorro. Logo na primeira pergunta, sobre quais coisas importantes oferece a cidade, para 12 pessoas (13,2% dos entrevistados) não há nada! Um em cada 8 habitantes não gosta da estância hidromineral, assim parece. Disparada, esta é a maior rejeição verificada entre todos os lugares analisados. A cidade mais bem dotada em atrativos nada dispõe para oferecer? E olha que a média de idade dos entrevistados é de quase 39 anos, ou seja, não é uma amostragem de jovens, na faixa de idade normalmente mais ansiosa por diversões. O pessoal se sofisticou apesar de cercado de apelos? Já se enfastiou não sabe onde se agarrar, deseja mais? Mas ainda na primeira questão, embora ocorra boa coerência fazendo figurar as Termas como campeã na importância (cerca de 1/3 das respostas) e as mineradoras em segundo lugar, há uma dispersão girando em torno de diversos destaques. Quer dizer, veem várias coisas de possível interesse na sua cidade. Só resta saber se isso se deve à falta de entendimento e vivência, ou, tanta coisa dispersa dilui o valor, a presença?

Devemos notar ainda nas respostas à primeira pergunta que a pujante atividade industrial não é citada entre as importâncias locais. Sendo assim, a riqueza gerada não gerou receptividade equivalente junto à população.

Durante toda a análise dos dados que obtive, entendi que não perderia tempo com opiniões isoladas, sem sentido para o método sociológico. Mas (regra tem exceção) vai esta aqui, digna de nota: entre as centenas de pessoas consultadas por este sertão afora, coube justamente a um filho desta terra exaltar a sua própria casa como a coisa mais importante do lugar. Vai gostar do seu cantinho assim lá longe.

Na segunda pergunta, destacam somente as Termas como a principal referência ao olhar do forasteiro (2/3 dos moradores entendem assim). A limpeza e os museus apareceram com indicação, mas fraca. Segue-se uma numerosa lista de achados, coerentemente com a questão anterior. Um deles é a vida noturna, com dois votos. Também a terra da Dona Beja foi o único lugar onde consideram noitada como “vantagem”. Alerta.

Quanto à terceira pergunta, sobre alimentos característicos do lugar, os doces, citados por 2/3 dos entrevistados, dão uma “lavada”, deixam a perder de vista os demais. O queijo vem em segundo lugar, com pífios 20%. Chama bem a atenção: entre as 98 pessoas, 14 delas (15%) não sabiam apontar destaques em termos de alimentação. Trata-se de um número expressivo. A cidade, com o crescimento, vai perdendo características? Ou o pessoal anda é meio desinteressado? Não devia.

Nas respostas à quarta indagação, mais surpresas. Cerca de 28% dos entrevistados não conhecem o queijo de Araxá. É o maior índice de “ingnorância” entre todas as cidades. Muitos nem mesmo sabem do que se trata e associando a existência do produto a outros lugares, principalmente São Roque. Alguns disseram conhecer e consideram o produto bom, gostoso ou muito bom. Enquanto pelo menos grande parte de Minas Gerais associa o nome da cidade ao queijo, quase um terço dos seus habitantes o ignoram.

No quinto quesito, 82% gostam de queijo, mas somente a 4 pessoas agrada o produto maturado e também somente quatro pessoas citaram o Canastra. A maioria vai é de frescal mesmo, pingando soro.

Metade dos “araxanos” come queijo a qualquer hora e 33% o apreciam também no desjejum. Não costumam aproveitá-lo como tira-gosto, nas confraternizações. Cerca de 40% gostam de comer com doce, “Romeu e Julieta” é o predileto. Mas aproveitam também a famosa parceria com pão, derretido na chapa e valendo-se de diversas alternativas, até criativas, somando 40% das opiniões.

Talvez o posicionamento mais insólito seja quanto à qualidade. Quase 85% das pessoas não sabem discorrer ou a confundem com tipo de queijo. Um horror. Há uma possível relação entre esse desconhecimento e o tamanho da cidade. Araxá, ao amontoar quase 95 mil habitantes, vê se perderem noções angulares. Confirma-o a nona pergunta. Melhor conhecimento exibia a Gabi, nossa linda cachorrinha cockier spaniel. Maluca por queijo, tem gosto apurado e exigente mostrava expertise. A sofreguidão com que devorava um pedaço era proporcional à qualidade do produto. Ao contrário, os emborrachados, não bem prensados ou com data de validade vencida, após uma esnobe farejada, ela rejeitava, irredutível e educadamente, e se afastava sem conseguir disfarçar, contudo, alguma decepção.

Também quase esse mesmo percentual de pessoas não conhece ditado alusivo ao produto. Faltou foi perguntar se são mineiros. Já bem diverso é o conhecimento sobre pessoas famosas amantes de queijo. Quase 70% souberam citar nome, inclusive estrangeiros. Também é alto o percentual de entrevistados que conhecem receitas apresentando queijo na lista dos ingredientes (quase 95%).

Por fim, a décima segunda pergunta confirma o fraco conhecimento sobre origem controlada. Pouca gente (18%) soube dizer mais o menos qual o seu significado.

Quanto à desorganização social, a amostragem para Araxá é bem maior, pois pelo menos duas ou três vezes por ano vou até lá visitar familiares e amigos, e leio hebdomadariamente o nosso querido “Correio”. Os atropelamentos e o tráfico de drogas já se banalizaram. Assalto à mão armada é redundância. Recente notícia esvoaçada na internet mostrou mulheres desfilando nuas pela cidade. Ou é montagem, muito comum nesse meio de comunicação, ou minha terra natal pode estar passando imagem de lugar de tolerância, um “oba oba”. Lamentável.

Bambuí

Vi essa tradicional cidade mineira em movimentação de quem emerge para maiores voos econômicos. Não é mais uma cidadezinha do interior faz tempo. A frente que vem dissolvendo o provincianismo mineiro já passou por aqui. Sinal disso se vê na praça central, de intenso acesso de pessoas, principalmente demandando as agências bancárias ali existentes.

Reavivou-me uma história passada em dia de finados, sol escaldante. Uma senhora, visivelmente desolada, achava-se sentada na escada de um prédio, a três quadras do cemitério. Passando por ali uma viúva, sob luto recente, solícita, procurou animar a companheira de infelicidade a continuar o caminho até ao campo santo e ali conseguir uma sombra onde descansar, na casa de velório, uma água, refrescar-se.

 

— Agradeço, vá em paz. O seu falecido marido está lá, Deus o tenha…

E apontando para a placa mais ao alto, exibindo o nome do estabelecimento bancário, completou:

— Mas o meu está enterrado aqui.

Bem plantada sobre o alto do espigão que margeia o centro, sobressaindo-se em relação a toda a cidade à sua volta, está a Igreja Matriz de Santana. Ela guarda dimensões proporcionais ao número de almas da cidade. Porém, com todo o respeito, a apresentação, desgastada, é relativamente modesta. Em especial o arranjo encimando a torre, com apresentação vazada, parecendo “feito se tivesse” ainda por acabar, sem composição, empobrecida. Mais tarde, andando pela zona rural do município, não pude deixar de notar uma semelhança assaz interessante. Em uma instalação ocupando-se de agronegócio, a tubulação sobre os silos desenha uma geometria equivalente. Muito interessante essa associação. Em movimento contrário ao desejado, de elevação espiritual, o céu desceu à terra — inverte-se a oração que o Pai nos ensinou.

(Duas fotos comparando igreja e silos)

Eia, boa gente de Bambuí, vamos modernizar toda aquela praça, ajardinar, enriquecer a igreja e seus anexos, melhorar o jardim, colocar iluminação! Tornar aquilo tudo uma beleza, lá em cima, para se admirar orgulhosamente de qualquer ponto, enaltecendo os espaços de contrição e aumentando o chamamento para a prece, de sobra, na composição com o turismo, o lazer, o repouso, a leitura.

O questionário aplicado junto à população expôs as transformações trazidas pelos novos entrantes na atividade econômica bambuiense.

Nas colocações espontâneas à pergunta sobre o que ali se dispõe de mais importante, o Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) — ex-Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET) — disparado é a principal referência para mais da metade da população. Vem seguido da indústria de açúcar e álcool, identificada como “Usina”, presente em 25% das respostas.

É dispensável correr atrás da explicação dessa preferência. O emprego é o principal anseio em qualquer lugar. A busca por espaço para ganhar o pão é, de longe, a maior necessidade primária. E, igualmente, é fácil perceber a importância, para a região, de uma instituição do porte do IFMG, gerando empregos e conhecimento em alto nível. Eu visitei o campus. Suas instalações, a capacitação de seus funcionários e a qualificação do corpo docente são coisas de ser ver. A “Usina”, do mesmo modo, é importante fonte de “holleriths”, além de contribuir para os cofres públicos com os impostos. A empresa funciona também como um portal de entrada para a agroenergia, acenando com tudo de positivo e negativo trazido em sua essência. Não dispus de tempo para analisar quais as medidas mitigadoras, planos de controle ambiental e respectivas ações compensadoras estão sendo colocados em prática para minimizar os efeitos adversos da sua presença.

Continuando nas respostas à primeira pergunta, regulando no empate em terceiro posto, para cerca de 8% dos entrevistados aparecem as igrejas, os rios, a educação e a cultura. O queijo é citado apenas uma vez, jogado na vala comum de características sem expressão.

Para a segunda pergunta (percepções das pessoas de fora sobre coisas importantes), o IFMG confirma a principal referência atestada por quase 60% dos moradores. A “Usina” mantém a segunda posição, com 30%. O queijo, estranho, recebeu duas indicações espontâneas. Contudo, nota-se, em representativo número, as pessoas não sabem o que os estrangeiros veem na cidade. Enquanto em outras plagas quase todos conseguem apontar algo, 20% dos bambuienses não identificam atrações relevantes ou não têm conhecimento da percepção do pessoal de fora. Também um tanto desse de citadinos não identifica alimento característico local. Esses dois achados, se considerados representativos, podem indicar necessidade de melhoria de contribuição do ensino fundamental, ou esforço de marketing para aumentar a ligação do cidadão com o seu lugar.

Por sua vez, diante da pergunta sobre alimentos característicos, em 52% dos casos o queijo é o principal elemento identificador, um dos maiores percentuais encontrados. Mas nas respostas à pergunta seguinte chamam a atenção os 10% que dizem não conhecer o queijo local. Apesar disso, a quase totalidade se vale dele como alimento — 60% qualquer hora do dia e o restante no café da manhã. As ocorrências são parceria com os doces (53%), no pão (30%) e com café (20%). O leite e seus derivados ocupam o segundo lugar na identidade alimentar. Café e milho receberam pequena pontuação e mais seis alternativas são menos presentes ainda. Ao contrário de outras cidades, é de se notar, nenhuma resposta à terceira pergunta invoca o doce como símbolo de alimentação. A turma aprecia-o bastante para acompanhar o queijo, mas, de uma maneira geral, a doçaria não seria o forte em Bambuí. Falta maior detença na busca e na análise da razão. Se confirmada pode ser um interessante veio a ser explorado economicamente.

Todo mundo na cidade, mesmo os mais jovens, conhece receita que leva queijo e muitos citaram pessoas importantes apreciadoras do nosso produto. E quase todos conhecem pelo menos um ditado com o vocábulo. “Avançar na lua pensando que é queijo” foi citado várias vezes, talvez valendo até a pena verificar se embute ansiedade, ou algo assim, e se é traço cultural bambuiense. Quanto à origem controlada, também em Bambuí não é muito conhecida. Apenas 40% das pessoas responderam sim, contudo, a maioria não explicou, botando dúvidas sobre o efetivo conhecimento do assunto.

Mais um dado interessante foi encontrado nas respostas sobre a qualidade do produto local. Cerca de 70% consideram-na boa ou muito boa ou excelente. Esse achado, contudo, não corresponde aos resultados da minha pesquisa gustativa junto aos balcões gelados de lojas especializadas e supermercados visitados durante a minha estada. A maioria das peças apresentava altura estranha, esborrachada, e aparência “desmilinguida”, e as partes fatiadas exibiam muitos buracos e trincas. No restaurante onde almocei duas vezes, provei do queijo disponível no selfservice de frios. Da população de elementos que empresta sabor, a maioria escafedeu-se. Cabe também aqui uma consideração complementar: o bambuiense, assim parece, não dispõe de parâmetros de comparação com produtos fabricados alhures.

A cidade parece carente de espaços de lazer, recreação ou atividades artístico-culturais. Mas existem várias lan houses.

No quadro da desorganização social registrei duas ocorrências de excessos no álcool e também duas de mendicância, pela manhã e à noitinha. Não percebi indícios de prostituição ou trabalho infantil, mas a amostragem, também aqui, não foi muito representativa.

Carmo do Paranaíba

Eram 10 horas da manhã e um grupo de moços já iniciava a rodada de cervejas no bar de um posto de combustíveis. O ambiente me trouxe à memória o caso de um cidadão, visivelmente chegado a uma “birita”, que se acercou de mim enquanto eu tomava um café e me pediu um trocado para tomar uma pinga. Gostei da sua sinceridade, elogiei, e repassei-lhe trocados para uma boa “chamada”.

À primeira vista a cidade me pareceu movimentada, pujante. Porém, mais tarde, durante as entrevistas, ao contrário, percebi que o pessoal estava “bronqueado” com o marasmo. Viam o desenvolvimento “feito se tivesse” estancado o seu curso. Apreensivos, os carmelitanos estavam de olho na vizinha e fervilhante Rio Paranaíba, com muitas obras, construções e instalação de campus.

Os muito simpáticos (não é palavra solta) habitantes de “Carrrmo”, “boa tarrrde”, puxam um pouco o “r”, fazem uso frequente do “uai”, entre vários vocábulos tradicionais do mineirês. No coloquial sem compromisso, costumam afrouxar o cinto relaxando na concordância verbal, “nóis vai”.

Repetindo o mesmo ritual, provei vários pedaços de queijo produzido por ali. A textura é diferente, parecendo menos prensada e apresentando “chiado”, mas o sabor era bom. Não encontrei peça contando tempo de cura.

De uma vantagem se orgulha a cidade: o frontispício da Igreja de São Francisco é o maior numa volta de muitas léguas ao redor. Ela é muito bonita, atesta-o a foto. As portas, como sempre, fechadas.

(Foto da Igreja do Carmo)

Durante minha rápida passagem pela cidade, incluindo pernoite, registrei uma ocorrência de mendicância, e só.

Foram entrevistados 28 carmenses (esnobam dois gentílicos). Para eles o mais importante ali é o povo (11 votos), muito interessante, pois a cidade não é tão pequena assim. Segue-se a economia (6 votos). Café e clima encabeçam uma lista de dez alternativas dispersas. Duas pessoas apreçaram suas próprias famílias. Coisa rara. Já um cidadão disse não ver nada de especial, mas completou se penitenciando, confessou estar um pouco “discabriado” com sua terra. Não achei esse vocábulo no Aurélio que tenho em casa. Já no ”Pipocas”, do João Victor, encontrei, indicando o sentido de desconfiado. O entrevistado talvez tenha pensado em dizer “disacorçoado” com a cidade. Descoroçoados estamos todos nós com a corrupção. Desanimados, desalentados.

Repetem no geral as mesmas referências sobre a percepção do pessoal de fora: o povo, a economia e o clima são os principais. Um deles acrescentou: as moças bonitas. Foi a única cidade que fez referência à beleza feminina nativa. Muito bem.

Quanto ao alimento mais característico (terceira pergunta), ocorreu a mesma falta de acordo em torno de alguma referência. O café (9 votos) foi o mais citado e entre as demais 10 alternativas figura o queijo, com 3 votos. Todos o conhecem, “acham bom”, gostam de comer a qualquer hora, principalmente com doce, no pão ou sozinho. Conhecem receitas. Sabem que a qualidade varia, mas somente duas pessoas conseguiram detalhar explicação a respeito.

Impressionante número de pessoas (16) sabe de gente famosa apreciadora de queijo. É a campeã. E, mais inusitado ainda, quase praticamente cada uma citou um nome diferente: Sérgio Reis, Luciano Hulk, José Serra, Glória Pires, José Alencar, William Bonner, Anastasia, Ronaldo Fenômeno, Ana Maria Braga, Jorge Amado, Dilma e Lula (este, três vezes). A respeitar a amostragem, somente a famosa apresentadora de TV pode ser citada, com garantia, como apreciadora. É a única dessa lista figurando também no rol de vários outros lugares. Deveria ser convidada para ajudar, apoiando projetos específicos de divulgação.

Também é alto o percentual (46,4%) de respostas positivas à pergunta sobre origem controlada, mas não explicaram. Finalmente, somente seis sabem ditados com o vocábulo. Muito pouco.

Ibiá

Decorrido mais de meio século desde o último baile no clube, encontrei a cidade bem arrumada, limpa, exibindo avenidas largas e interessante crescimento. Muito diferente de antigamente, quando ainda não tinha feito toalete.

Naquele tempo existia rivalidade com Araxá, talvez nutrida na grama das canchas de futebol, criando indisposição entre os habitantes das duas cidades vizinhas, não obstante os muitos laços familiares existentes. As provocações e os atiçamentos eram muitos. Minha irmã estudava piano com a professora Maria Ângela Bittar, aplaudida artista do teclado. Certo dia, durante o almoço em casa, noticiou que no sábado seguinte a turma de alunas iria até Ibiá para dar um concerto. O meu irmão mais novo, de uns 10 anos à época, emendou logo:

 

— Ué, mas aquilo lá tem conserto?

.

E teve. Mas em Ibiá também tem mulher nua desfilando pela cidade, toda noite de 20 de maio. Mas não precisam correr até lá, é somente ficção. Segundo a lenda, são aparições de alma penada, uma bela e infeliz noiva que teria posto fim à própria vida após a frustrada cerimônia de seu casamento — o noivo desistindo na hora do “sim”. Li na internet, nunca soube disso. Mas é mito que cabe bem em nossa sociedade machista.

Esta minha visita se deu no domingo anterior ao Natal de 2010, comércio aberto para compra dos presentes. Incomodou o barulho ensurdecedor dos potentes alto falantes, das lojas para atrair fregueses e de carros estacionados junto a um bar, da moçada iniciando bem cedo a incursão pelas “estupidamente geladas”. Bem diferente era o ambiente em volta da Matriz, à saída da missa. A festa é a da serenidade de cidade de interior, ouvindo-se somente as pessoas conversando, educadamente, sem sobressaltos.

A amostragem aqui foi menor, relativamente. A manhã de chuvisco, indisposição e cansaço prejudicaram o levantamento.

A levar em conta as respostas ao questionário aplicado junto à população, pode-se entregar à cidade o troféu de maior dispersão sobre as percepções levantadas. É fraquíssima a coerência sobre coisas importantes percebidas ou apontadas pelos forasteiros. O entendimento do cidadão varia, nada se destaca em especial (agricultura, pecuária, hospital, bom de morar, segurança, comércio, crescimento, clima, tudo é bonito, tranquilidade, o povo). Tratando-se de cidade de porte médio, sem tanta diversificação assim, é de se supor que seus habitantes não guardam a mesma relação de identidade das demais localidades. Ou o domingo não é um bom dia para se conversar com as pessoas sobre esses assuntos?

Seguindo a mesma regra, também é fraco o consenso sobre o alimento mais característico. A batata e o leite foram os mais citados, em 1/3 das opiniões. O queijo, menos mal, foi nomeado duas vezes. Feijão, arroz, carne, verdura, galinhada e torresmo completaram a longa lista.

Todos por lá gostam do produto, saboreando-o a qualquer hora, mas fresco. A maior incidência de associação é com o doce.

Conhecem receitas usando o queijo, percebem variação na feitura e no sabor e ¼ das entrevistas mostrou conhecimento sobre origem controlada.

Uma resposta expõe o fraco conhecimento de ditados com o vocábulo “queijo”. Somente uma pessoa soube citar um refrão. Também é preciso incentivar as professoras do fundamental no sentido de ampliar os trabalhos em favor da preservação dos valores tradicionais.

Lagoa Formosa

De onde vem a água que abastece o pequeno lago? O bonito espelho, bem como a cidade à sua volta, fica na parte mais alta da elevação local. Todos os acessos para chegar até lá são subidas, uma até um tanto inclinada. Não há morros próximos de onde possa escoar a linfa. Fiquei “encucado” com aquilo. Depois, já em casa, com apoio do fantástico Google Earth, encontrei uma possível explicação para deslindar o aparente mistério. Exceto na sua parte sudoeste, por onde a lagoa esgota o excedente, todos os quarteirões circundantes são dois, três ou cinco metros mais elevados. Quer dizer: ela se assenta em uma depressão e, portanto, toda a água em volta percola para a sua bacia. Os entendidos corroborem essa conclusão.

Era chamada “Lagoa das éguas”, uma inclusive morreu em pé. Depois o pessoal achou depreciativo e abandonou. Depende de quem ouve. Para mim, trata-se de feliz referência à conjunção dos meios físico e biótico, privilegiando a natureza e, portanto, está muito bem, sonoro, bonito. Deveriam ter preservado esse nome.

Graciosa a cidade, e meio exibida também: conta com biblioteca em prédio ajeitado, os dois quarteirões principais do comércio, para o lado da Prefeitura, são organizados (aliás, a maior concentração e a apresentação das lojas vão além do porte da cidade) e tem até banheiro público, bem montado, limpo. Vi também uma “venda” no velho estilo antigo, que o proprietário faz questão de preservar na feição interiorana de cem anos atrás — muito legal, uma loja de departamentos à moda da antiga, tem de tudo.

(Foto de banheiro público)

A igreja é bonita, mas segue a mesma regra de todos os nossos templos. Precisa ser enriquecida, vestir roupa melhor, de “ver Deus” (nunca coube tão bem essa expressão), um revestimento melhor, ou construir um campanário, espaço não falta na ampla e arborizada praça.

Em um sítio próximo, visitei uma queijeira local, não certificada, mas indicada como um dos melhores produtores da vizinhança. O artesão estava lá, de botas brancas, espremendo a massa nas fôrmas. A chuva da noite anterior fez trazer muita lama para dentro do acanhado espaço. As prateleiras estavam vazias. Um comerciante local já tinha passado e levado a produção do dia anterior. Agradeci. Mais tarde, de volta à cidade, experimentei um pedaço de uma peça em um armazém. É bom.

O questionário foi respondido por onze lagoenses. Lidei com a maior velocidade do pessoal ao falar e com um impertinente carro de som obrigando a interrupção momentânea de uma das entrevistas.

A primeira pergunta, mais uma vez, mostrou: em cidade menor conseguem ver na calma e na tranquilidade o mais importante. Metade dos entrevistados citou essa característica como principal. Demais referências (a praça, o comércio e a área de saúde) estão dispersas com um ou dois votos. Foram citados também o caráter e a simplicidade das pessoas, a convivência e amizade, vantagens somente destacáveis em cidades com menor número de habitantes, onde a interação social e os vínculos de família ainda se fazem relativamente mais presentes. Na próxima parada, Medeiros, reencontraremos essas apreçadas características.

Na segunda pergunta, novamente foram destacados a calma, a praça, a limpeza, hospitalidade, Carnaval, mas bem mais dispersos, sem maior acordo sobre uma característica mais relevante aos olhos dos visitantes. O queijo, repetindo a reação à primeira pergunta, não foi citado. E pior: nem na terceira tentativa, perguntados sobre os alimentos mais característicos, ele também comparece. O feijão é, disparado, a principal referência. Há quase unanimidade em torno dele. Leite e milho foram menos citados. Outros, tais como mandioca, café, tomate e verduras receberam um voto somente.

Apenas uma pessoa não conhece o queijo local. A maioria aprecia e gosta, mas fresco, a qualquer hora, ou no café da manha, com pão ou no arroz. O lagoense se diferencia totalmente de seus patrícios mineiros consultados por aí. Somente 10% deles gostam de comer queijo com doce.

A maioria vê diferenças nos produtos e conhece receita utilizando queijo. Um deles citou uma novidade: uma farofa feita com jiló e ovo.

A totalidade não conhece ditado com a palavra queijo ou pessoa famosa que gosta de queijo. Somente um cidadão sabia o que é origem controlada.

Medeiros

Platão citaria Medeiros como exemplo. Para aquele famoso sistemático, uma cidade não pode crescer além do número de pessoas ao alcance da voz de um orador. Por certo, o grande pensador de Academo defendia seu ofício, preocupado com o crescimento excessivo da população, estorvando a difusão de seus ensinamentos, à viva voz — não contava, é claro, com os recursos de fiel reprodução e potente amplificação oferecidos hodiernamente pela tecnologia do som.

Tudo nessa singela e pacata cidade parece fluir de forma segura e serena, em compasso suave e cadenciado, adágio, vivace ma non troppo, de quem curte cada momento da vida, sem pressa, um “xô” nas preocupações — agonia não existe nos dicionários por ali. As residências não dispõem de campainha. Bate-se palma, “ô, de casa”. Somente uma, de construção recente, já colocou interfone.

Não percebi riscos de qualquer tipo à organização social (desnecessário dizer), sem manifestações de alcoolismo, prostituição, mendicância, muito menos qualquer tipo de delinquência num lugar onde somente se vê a meninada na alegria da saída da escola, subindo a avenida principal rumo às suas casas. Automóveis, muito poucos, aliás, talvez só o meu, poluindo visualmente o ambiente.

No saguão da Prefeitura Municipal presenciei uma cena antiga — não via faz tempo. Com a profusão de mercadorias ansiadas pela cultura de consumo, apresentou-se como figura ímpar aquela senhora, tão viva e empertigada o tanto quanto possível para uma octogenária, bem à vontade… com os pés descalços sobre o piso frio.

Também no mesmo hall de entrada chamou-me a atenção uma foto da então vila de Medeiros. Apesar de muitos esforços junto a pessoas depois, na rua e no cartório, não consegui saber qual a data, mas a pose deve ser centenária.

É um registro da época dos missionários percorrendo os lugarejos para rezar a missa, atender às confissões, distribuir santinhos e todos os demais ofícios do trato da fé. No encerramento, vinha a hora das bênçãos e o padre ia comandando:

 

— Agora vou benzer água! — Centenas de garrafas se levantaram.

— Agora vou benzer terços e medalhas! — Cada um levantava o seu símbolo de devoção.

— Agora vou benzer cruzes! Só as cruzes, hein, gente!

O Idalino suspendeu a velha Marculina e gritou:

— Benze ela tamém, seu mussunaro!

.

As duas fotos a seguir comparam a parte central da cidade nesses dois tempos separados por um século. A capela antiga, ao fundo, um pouco à direita, foi remodelada e encontra-se atrás das palmeiras mais altas. O lugar se transformou, bem se vê. Como será daqui a cem anos? O crescimento não perturbe a calma que a encanta. Será que em 2110 nossa Catiara estará, assim, bonita, como Medeiros hoje?

(Duas fotos comparando Medeiros ontem e hoje)

As respostas ao questionário aplicado junto aos moradores apontaram a natureza, nas suas diferentes possibilidades, como campeã na importância e enquanto ponto de atração local. Essas respostas denotam uma inequívoca identificação com a recente chegada do turismo.

Em segundo lugar, na lista das coisas importantes da cidade, vem o caráter geral dos habitantes, entendido como favorável na união manifesta de todos. Virtudes ou vantagens competitivas como o bom humor e o apego ao serviço também foram considerados traços marcantes. A paz, a tranquilidade e as boas condições de vida, completam os destaques da percepção mais comum.

A sociologia oferece as propostas de Durkheim sobre o conceito de solidariedade como forma de contribuir para a manutenção da ordem e da paz. As crenças e os valores compartilhados de forma mais presente em um grupo social funcionam como um cimento moral que os aglutina. Dito de forma diferente, a existência de um conjunto de padrões de relações vivenciados pelos indivíduos compõe uma referência, garante maior união entre as pessoas e adesão mais visível a um contrato comum.

Olhando esse resultado da pesquisa em Medeiros, não apurado de forma tão destacada nas demais cidades avaliadas, aflora a tentação de pensar que o aumento da população, a entrada de tecnologias e as sofisticações de cada dia funcionam como forças que perturbam essa consciência comum e abalam as bases da estrutura, da organização, dos sistemas e da ordem. É possível tranquilidade em cidades de maior porte, mas as evidências mostram as maiores dificuldades em obtê-la, pelo menos por enquanto, em especial no Brasil. Quanto mais presente o vigor da justiça mais populoso pode ser um lugar preservando a tranquilidade.

O parentesco também talvez funcione como força aglutinadora, reforçando a estabilidade. Numa cidade menor, muito mais nomes comuns aparecem na composição familiar, nos registros de nascimento, favorecendo a efetividade de aplicação de sanções, positivas ou negativas, para os comportamentos verificados. Os tios e as tias, os avôs e as vovós, direta ou indiretamente participam da formação, do processo de socialização. “Eu vou contar pro seu pai”. “Esse é o Chiquinho, filho do Zé da Dinda, menino estudioso, vai ser gente”.

No segundo quesito, indagando sobre qual a percepção dos forasteiros quanto ao que a cidade oferece de importante, os moradores insistiram na tranquilidade e na hospitalidade como atrativos (quase a totalidade das pessoas fez referência a uma delas ou às duas).

O queijo não é citado nas respostas espontâneas a essas duas primeiras perguntas sobre “as importâncias” da cidade. Os filhos do lugar não percebem esse produto como elemento próprio dos autóctones, e nem também como atração para os de fora. Mais uma descoberta espantosa. Sendo ele um dos esteios da economia local, faz-se água num dos fundamentos do materialismo histórico.

Já diante da terceira pergunta, sobre alimentos característicos do lugar, dois terços das respostas apontam o queijo como o principal elemento identificador. Todos são unânimes em afirmar que gostam e fazem uso dele cada dia, “vareiando” somente o jeito. Muitos o utilizam para acompanhar os doces, para compor o sanduíche com pão e em parceria com o café. Outras nove formas de uso foram citadas, sem nenhumas delas somar representatividade.

Os doces estão em segundo lugar na identidade alimentar de Medeiros, mas bem atrás, em apenas 25% dos entrevistados. Mais elementos comuns ao quotidiano obtiveram eleição individualizada, sem destacar presença notável de qualquer um.

Perguntados sobre conhecimento ou uso de receitas, a maior incidência de respostas recai sobre o pão de queijo (mais de 60%). Os bolos ocupam a vice-liderança (quase 50%). Seguem, em fila, o pudim de queijo, o biscoito e a queijadinha.

Finalmente, metade dos entrevistados conhece origem controlada, e a outra “facção” dispõe de noção aproximada do processo de acompanhamento da elaboração do queijo e sua qualificação. No resumo, Medeiros é uma das cidades mais identificadas com o “redondo” entre todas as visitadas.

Piumhi

Muitas pessoas apreciam as charadas, uma espécie de exercício de raciocínio, uma “malhação” mental, envolvendo competência em vocabulário, conhecimentos gerais, memória e inteligência. Elas continuam disponíveis nas revistas de recreação. Na sua forma mais comum (existem variações e sofisticações), o enigma é composto de um texto em prosa contendo duas ou mais palavras ou expressões-chave. Estas, trocadas por sinônimos, na quantidade de sílabas indicadas, devem chegar ao objetivo, qual seja, de formar o conceito indicado no final da proposta, decifrando, assim, o problema. Vejamos um exemplo.

Número, número, número, que bela cidade mineira (1-1-1)”. Charada antiga, ela compõe uma bem apropriada homenagem. Apresentei-a como desafio para alguns piumhienses, mas ficaram olhando para mim com cara de pastel. Talvez nem tenham ouvido falar sobre esse tipo de enigma. O vocábulo “Piumi” é formado por três números convencionados da matemática, todos com uma sílaba só: “pi”, relação constante entre circunferência e diâmetro; “um”, primeiro natural inteiro positivo; e “i”, unidade dos números irracionais, raiz quadrada de -1 (um negativo). A grafia oficial inclui o “h”, mas a atividade lúdica absorve concessões.

Conhecem é a tradução do vocábulo, trazida da língua indígena: rio com muito mosquito. Há quem diga que vem de Piauí, “rio do peixe”, no sentido de que há muito.

A cidade é movimentada e o campus da UFV junta força ao desenvolvimento local. Passei por ali duas vezes, mas sempre corrido, não contando tempo suficiente para anotar desarranjos sociais.

Os resultados da aplicação do questionário não trouxeram novidades, repetindo aqui e ali o comum em todas as questões. Contudo, tal como em Araxá, as pessoas conseguem discorrer um pouco mais sobre cada uma das questões.

Diante da primeira pergunta, a faculdade arranca na dianteira com 9 votos (das 30 entrevistas). Agropecuária, em diversos elos da cadeia, vem em segundo lugar (6). As festas (feira, expo) completam o trio de maior presença nas opiniões. As demais alternativas (em número de 9) foram pouco votadas (com 1 ou 2 pontos). O queijo comparece uma vez. Alguém informou que Piumhi tem o cognome de “Cidade Carinho”. Muito bom… e apropriado. Deve estar se referindo aos habitantes, gente boa.

No segundo quesito, as respostas se dispersaram: expo e feira, turismo, queijo, tranquilidade e estrutura tiveram 5 ou 6 votos cada uma. Além dessas, cinco escolhas receberam 1 ou 2 votos só. É digno de nota a tranquilidade ser citada por 5 pessoas. Afinal, Piumhi já é uma cidade maior, conseguindo resguardar algo dessa vantagem importante. Parabéns!

Quanto a alimento, o café (16) e o queijo (15) se distanciam na frente, seguidos de feijão (5) gado (3), milho (2), doces (2) e arroz (1). Esse maior destaque para o queijo é uma exceção entre as “onze tribos” consultadas.

A maioria conhece o queijo das suas fazendas, considera-o muito bom ou bom, e apenas um piumhiense não gosta muito. Também gostam mais é do frescal, mas o total de pessoas que aprecia peça mais curada é um dos maiores. O pessoal daqui entende melhor de queijo. Comem-no a qualquer hora, ou no café da manhã e, para 2/3 das pessoas, na companhia de doce. As combinações com pão, café, puro, arroz, omelete, rapadura e, é claro, a “birra” foram votadas uma ou duas vezes somente.

A maioria diz que existem queijos diferentes, mas muito deles confundem qualidade com tipo — já vimos antes esse deslize. Novamente, a Ana Maria Braga foi a mais votada entre as seis pessoas que citaram nomes de pessoas famosas que gostam de queijo. Todo mundo conhece receita que leva queijo, graças à popularidade do nosso pão de queijo.

Sobre origem controlada, muita gente (17) diz saber do que se trata, mas somente meia dúzia discorreu explicando de forma convincente.

Rio Paranaíba

Poucas cidades podem contar uma história tão rica e tão… conturbada. Depois de ter escrito todas as páginas compartilhadas pelas formações dos agrupamentos populacionais da região, compondo o longo primeiro capítulo com os mesmos sacrifícios de índios e negros, pois bem, como se não bastassem tantas agonias, não se aquietou e, durante longos 75 anos, de 1848 a 1923, lutou nada menos que seis vezes pela sua independência. Por cinco tentativas, depois de conseguir a restauração, voltou à condição de distrito. A história dos funerais de um feto mostra bem que o pessoal por ali respirava articulação “am-pm”, vinte e quatro horas por dia. Esta e muitas coisas mais estão contadas na exaustiva análise de José Resende Vargas, “Rio Paranaíba: 250 anos de história”, um riquíssimo repositório da saga da terra, do tabuleiro de interesses e dos intricados caminhos da ação citadina.32

Em muito grata surpresa para mim, este livro narra sobre a família Borja. Explico. Quando deixei a barra da saia da mãe para continuar os meus estudos, em Belo Horizonte, no segundo ano colegial em 1958, meu pai conseguiu ocupação na Companhia Borja Pacheco para botar meia-sola no furado orçamento estudantil. Lá aprendi muitos ofícios sob a orientação dos irmãos, em especial os Srs. Ciro, Abner e Cedro e, se não me falha a memória, também o Sr. Líbano. Eram pessoas extremamente educadas, corretas, sérias, no rigor dos preceitos da ética protestante weberiana. Conservo grata memória de todos eles. Do Sr. Cedro recordo-me de ter visto sua foto no dicionário junto ao vocábulo “gentil”.

_______________

32 VARGAS, José Resende. Rio Paranaíba: 250 anos de história. Uberlândia: Zaardo, 2008.

O livro do “Varguinha” conta que o Sr. Abner venceu as eleições para prefeito em Rio Paranaíba, mas, no tapetão, escalaram o adversário derrotado, alegando fraude. O autor dá interpretação diferente, girando a coisa em torno de rixa religiosa, parecer social, para esconder a disputa de poder, ser social. Sou mais essa versão porque conheci o Sr. Abner. Esse lamentável incidente teria provocado a saída de várias pessoas de bem da cidade, causando prejuízo econômico e social. O desgosto pode ter sido a gota d’água que fez transbordar o copo das insatisfações e motivado a vinda dos irmãos para a capital.

É possível. Rio Paranaíba pode bem ser vista como uma encenação sertaneja da Guerra dos Trinta Anos. Mais lutas, mais páginas de desatinos e agruras. A rivalidade entre católicos e protestantes durou várias décadas e em diversas oportunidades as refregas escaparam dos limites das armadilhas de gabinete, das artimanhas de corredores e das esgrimas verbais. Morreu gente. Uma loucura. Destarte, a citada família pode ter se mandado furtivamente, numa madrugada qualquer de São Bartolomeu.

Mas há ainda uma versão mais romântica, a melhor, ou a mais querida. Quem me contou foi meu pai, “vendendo pelo preço de custo”, expressão da qual se valia para informar estar repassando precisamente o que ouvira, sem tirar nem pôr. Se a primeira motivação da saída foi política e a segunda religiosa, esta terceira, que se fundamenta mais diretamente na base econômica, conta que a irmandade teria decidido tentar a sorte nas ricas barrancas diamantíferas da região. Tão logo chegaram ao lugar escolhido, desembarcada a tralha, um deles começou a cavoucar o chão para fincar o esteio da barraca. Logo na segunda ou terceira estocada da cavadeira manual, em meio aos seixos da “ganga impura” saltou uma enorme pedra reluzente. Recolheram as coisas e vieram para “Belzonte”. Tinham, como se diz, “embamburrado”. Será este mais um romance montado no fascínio do Eldorado? Vai saber. Também, pra que ficar inquirindo coisas, perturbando tão bela fantasia. Agora, convenhamos, com certeza é mesmo o ”preço de custo” — não há muito mais por onde inflacionar.

 

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Bem, afinal, a mudança pode ter sido resultado de um misto de tudo isso. Desenganos, falta de ar para a prática da crença e espaço exíguo para voos mais longos do tino empresarial. Se acaso trouxeram riqueza material na bagagem, o mais certo é terem amealhado em sério e honesto esforço.

Para mim fica este meu feliz, revigorante e benfazejo encontro com o passado de Rio Paranaíba. Por ele identifiquei mais um vínculo histórico-afetivo pessoal com o meu sertão. Mais uma ligação fixada. Muito mais deve haver.

Nesse mesmo livro citado, sobre o lugar, encontra-se um inusitado repertório de canções, hinos e poesias dedicados à terra pelos seus filhos. Em meio a tanto embate, há espaço para a sutileza. Espada e crisântemo.

Provei do queijo produzido em fazenda do município. Guardava, no grosso, as mesmas características encontradas em Carmo, um tanto emborrachado, mas, quem sabe, um pouco melhor em sabor comparado àquele.

As 17 pessoas entrevistadas na cidade se prontificaram a atender ao pedido, mas seguiram a regra das onze cidades (talvez exceto Araxá e Piumhi): as respostas foram lacônicas, quase monossilábicas.

A Universidade Federal de Viçosa (UFV) e a agropecuária somam a maior parte das referências a coisas importantes. Morro do Pião, cooperativa, igrejas, a nascente do famoso rio também foram citados. O queijo foi lembrado uma única vez, obedecendo, assim, à mesma regra geral: não é referência importante.

As respostas à segunda questão nomearam a UFV como a mais importante segundo os visitantes (41% das pessoas). A hospitalidade e o crescimento receberam dois votos cada. Chama a atenção: 4 pessoas (24%) não sabiam indicar percepções do pessoal de fora sobre destaques da cidade.

No terceiro quesito, a agricultura se abriu em festa. Encabeçada pelo café (citado por 53% das pessoas), a lista continua com milho (47%), cenoura (41%), seguidos por batata, soja, alho, feijão, cebola e beterraba. O queijo não foi citado. Assim, também Rio Paranaíba não mantém vínculos efetivos com o nosso patrimônio. Exibiram, isso sim, certo orgulho sobre a fartura do campo, esnobando produção de todo o necessário, mas não sem certo rancor diante do fato de São Gotardo usurpar autoria. Aconteceu algo parecido no passado, já comentamos, em processo semelhante, no qual Araxá surrupiou de São Roque os louros do queijo Canastra.

A quarta pergunta ajuntou total unanimidade quanto ao conhecimento do queijo local e exaltaram sua qualidade. Gostam mais do tipo frescal e 70% do pessoal apreciam-no a qualquer hora. A 53% agrada mais como acompanhamento de doce. Puro, aperitivo ou com “lourinha” foram pouco votados. A imensa maioria percebe diferença nos queijos, mas muitos confundem com variação de tipo (provolone e mozarela).

Metade da população não conhece qualquer ditado alusivo, confirmando a fraca ligação com o produto. Mas surgiu uma frase nova, não catalogada: “dando sopa igual queijo na venda”. Parece ser conhecimento exclusivo. Também quase a metade dos entrevistados não conhece qualquer receita, e os demais preferiram citar o pão de queijo. A maioria não consegue relacionar gente importante, fora Itamar e o prefeito local.

Finalmente, 60% das pessoas não sabem o que é origem controlada. Porém, ao contrário, entre os demais 40% foram dadas explicações consistentes, uma até correta, representando um dos maiores percentuais de conhecimento na região.

São Roque de Minas

“Tem nome de santo, mas já foi terra de índio bravo e negros guerreiros.” Li isso, nesta escrita, sempre a mesma — quem perde a guerra é cruel, violento, quem ganha vira mocinho, bonzinho, humanidade a toda prova.

“Como pode uma cidadezinha perdida nos confins da Serra da Canastra, com todas as suas deficiências, carência profunda dos benefícios mais elementares para a sobrevivência de seus cidadãos, como pode despertar em seus filhos tanto amor, tanta dedicação e tantas raízes afetivas?…”. Assim escreveu Tufy Habib.33 É o visgo do qual já falei anteriormente.

Li o texto a seguir, também do mesmo autor. Provado na mais pura sensibilidade, entre tantas, é mais uma oração em louvor à sua terra natal:34

Como acontecia todas as tardes, estávamos jogando a nossa pelada de futebol em frente à igreja de Nossa Senhora do Rosário. Naquela tarde, o tempo mudou repentinamente, com o céu cobrindo-se de nuvens escuras, com relâmpagos sucessivos e trovões que produziam muito barulho. Apesar da transformação brusca do tempo e da tempestade iminente que estava para desabar, eu e meus colegas continuávamos a correr atrás da bola e a comemorar os gols que fazíamos. De repente, a natureza proporcionou-nos um espetáculo. Mas só eu parei para admirá-lo e observá-lo com todos os seus detalhes. Faltavam ainda algumas horas para o sol se esconder no horizonte, mas toda a terra estava escura por causa das nuvens que impediam que os raios solares a iluminassem. Subitamente, num único pedaço do céu, as nuvens se abriram como se fosse uma janela, na direção do poente, e os raios solares começaram a iluminar um grande espaço nas alturas e chegavam até nós. Uma chuva de grossos pingos começou a cair espaçadamente. Eu parei de correr atrás da bola e passei a admirar aquele espetáculo, enquanto meus colegas insistiam em marcar seus gols. Olhava para as alturas e via os grandes pingos iluminados, refletindo os raios solares, que vinham caindo até nós. Do momento exato em que se via o pingo, até ele cair, durava de cinco a seis segundos. O pequeno Titino resolveu juntar-se a mim e eu comecei a fazer encenação para aquele espectador atento. Com uma exclamação eu admirava o tamanho e a beleza daquele pingo que descia bem perto daqueles três enfileirados. Esse grande pingo só estava na minha imaginação. Andamos de volta para casa, mas sempre olhando para o alto a fim de identificar o “pingão” que eu havia mostrado e dizia para o Titino que iria medir o tamanho dele quando sofresse o impacto do choque no solo. Fiquei apontando e olhando para o alto, como a controlar aonde o pingo ia cair. Já entrando em casa, acompanhado pela mãe, o Titino me viu com um pedaço de ramo medindo o pingo que se esborrachara na calçada cimentada” (HABIB, 1999).35

São imagens intensas, lotadas até à tampa de mimoso conteúdo. As mensagens singelas da cena emocionam. Já li esse trecho várias vezes e sempre me enterneço e repito estremecimentos. Passado o enlevo, recobrada a racionalidade percebo que essas experiências não são privilégio deste ou daquele lugar. No mais simples e humilde rincão, no mais singelo e tosco recanto, elas festejam todos os dias e borboleteiam descuidadas para quem puder e quiser alcançá-las. Sou tentado a ver pureza e a inocência da alma infantil como mais propícias para marcar essas pegadas íntimas, fixar a aderência com o torrão natal. Tanto mais fortes e mais indeléveis serão os vínculos quanto mais legítimos forem os sentimentos, em construção viva da criatividade, sólida nos mais puros e livres princípios. Somente o coração inocente consegue vivenciar tudo isso com mais intensidade, antes dos dias sombrios das descobertas? Por essa razão teria advertido o Nazareno, se não nos tornarmos crianças não entraremos no reino dos céus?

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33 Cf. HABIB, Tufy. Quintal de memórias. Belo Horizonte: (s.l.), 1999.

34 Idem, 1999.

35 Idem, 1999.

Mas há também o lado amargo a considerar. Quais registros marcarão a mente infantil de uma comunidade de risco? Tiroteio, mãe agredida pelo companheiro de plantão, meganhas enfiando o pé na porta, irmãs violentadas, ex-aluno que entra na escola e trunca a vida de doze. Invocando quais imagens ela poderá, depois, rememorar seus primeiros sonhos?

O Sr. Habib percorre o terreno fértil das coisas sobre sua cidade. Do primo, artista errante, pintava e bebia, é dele a Santa Ceia junto ao altar-mor da igreja. Dos quinze dias de chuva sem parar, o correio interrompia as entregas, coisa normal, de rotina, depois lia vinte números de jornais de uma vez, meio molhados. Do cavalo mergulhando até a barriga na lama. Do evento no grupo escolar no qual foi destacado para recitar a poesia “A árvore”. Das touradas, incrível, em São Roque haviam apresentações desse triste espetáculo. Da cruz no meio da mata onde se ajoelhava para rezar nas noites escuras. Da história do parque de diversões e as latas de cozinha “esparrodadas”, de fazer rir até quando se acordava de noite (felicidade no máximo possível do seu limite). O bumbo da “furiosa”, em som forte entrando pelos ouvidos, “se dirigia para o peito e parecia desintegrar o coração da gente”. Não necessitava ter estudado música para saber quando o dobrado se encaminhava para o seu final. Do footing sem preconceitos, os moços também faziam o giro, no sentido contrário. Dos móveis caprichados, com entalhes, feitos pelo pai. Do viçoso aboboral arribando escada acima. Do Russo, apareceu na cidade, desembuchava uma embrulhada de palavras estranhas, a ignorância do povo confirmava a versão da sua origem na terra dos czares, fama consolidada no apego à vodca. Do Chimite, teria salvado uma criança das mãos de um serial killer que assassinou dois membros da mesma família, pai e mãe grávida. Escapou com ela do facínora e escondeu-se no mato por um dia. Ao prestar testemunho depois, na polícia, na dificuldade de se expressar conseguia dizer somente bam bam bam. Da pedinte, manteiga frita pra “jantainda”, andava com embornal onde recolhia doações de alimentos. Em recipiente próprio guardava a banha conseguida das almas generosas. Boa conversa, sem pressa, costumava se esquecer do tempo, ocupando em demasia as pessoas que acudiam suas súplicas. Para se desfazerem dela pegavam uma vassoura insinuando convidá-la para varrer a casa.

Cônego Ivo também descreveu detalhadamente memórias sobre a Mumbuca, carinhosamente assim chamava sua terra, quando aquilo ainda nem vila era.36 Deixou para a posteridade abundantes registros sobre o seu chão.

Depois da festa da Senhora da Boa Morte, o tempo ia dimudando. Seca brava. Ar parado. A poeira, de palmo, formava o tapete das ruas do arraialzinho. Os redemoinhos se erguiam em canudos. O sol estanhava-se. O calor parecia tremeluzir por cima dos telhados. As galinhas de asas suspensas, os passarinhos de bico aberto. O gado emagrecia, comia até folhas de árvores, caía pelas grotas, e morria de fome(MATOS, s.d.t.).37

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36 MATOS, Ivo Soares de. Arraial da Mumbuca. (s.d.t.)

37 Idem.

A poeira de palmo eu vi. O “sô” padre narra mais coisas, sempre de forma tão agradável, precisa:

Na sala, os homens conversavam, num vozeirão. Chegaram os camaradas da fazenda, o assunto variou. Todo mundo fez pito de fumo que o Jesuino trouxe da cidade. O Niquito velho, depois de lamber a palha de fora a fora, enrolou o cigarrão, tirou a binga de níquel, quebrou o cantinho da pedra, meteu o fuzil que soltava faísca longe. Enfiou ali o pito, deu chupadas de murchar a boca, até subir a fumaça. Tirou, bateu a unha, caiu faísca na camisa, deu muito tapa na barriga e falou mesmo que nunca tinha pitado um fumo tão bão” (MATOS, s.d.t.).

Saint-Hilaire percorreu as fazendas da região no início do século XIX. Formava-se em 1842 o núcleo populacional, futuro distrito de Piumhi, com capela dedicada e tudo. Em 1938, virou cidade, de nome Guia Lopes, homenageando José Francisco, à frente das tropas brasileiras no episódio da Retirada da Laguna. Em 1962, rebatizou-se com o nome atual. Abriga 6.686 almas, dizem os primeiros resultados do censo de 2010. Antes eram mais moradores. Cerca de setecentas pessoas deixaram a cidade nas últimas três décadas, modo de dizer, mais saíram e morreram do que nasceram e chegaram. São José do Barreiro é distrito do município e pega o bastão para levar a história adiante — quem sabe um dia será cidade também, com o crescimento do turismo. Conta dez quarteirões e mais tantos loteados. A igreja tem relógio.

Um dado sobre o desenvolvimento de São Roque é-me particularmente caro. Segundo li no interessante livro “Um lugar chamado Canastra”, a atual matriz da cidade e eu nascemos no mesmo ano da graça de 1940.38 Naquele Carnaval, os foliões cantavam: “Oh, jardineira, por que estás tão triste?”. Já na metrópole, fazia sucesso a famosa “You are my sunshine”. Na Europa, os céus desabavam.

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38 BIZERRIL, Marcelo et al (Orgs.). Um lugar chamado Canastra. Atibaia: Instituto Pró-Carnívoros, 2008.

Em um dos livros lidos, ou no arquivo público, vi a foto da construção da nova matriz, bem ao lado da igreja antiga. Fiquei matutando: é melhor uma obra definitiva de um único templo, de uma vez, pra valer. Maior, mais audacioso, não importa levar um século para terminar totalmente. Esse tal de constrói depois desmancha fica mais caro. A igreja hoje existente já não corresponde à cidade, à fé do seu povo. Poderia pelo menos ser melhorada. Num esforço da população, das instituições, do poder público e das empresas poderiam enriquecer o revestimento, colocando mármore, quem sabe, erguer ao lado um vistoso campanário, melhorar a decoração interna, coisas assim. A cidade é centro de peregrinação. Anualmente festejam o santo padroeiro com tradicional afluxo de pessoas de todos os lugares. Durante a semana do dia 16 de agosto há quermesse, missas e procissão. A igreja deve exibir porte equivalente ao fervor da população de toda a região.

Onze pessoas colaboraram gentilmente, respondendo ao questionário. O Parque da Canastra desponta como a principal atração (para 55%), mas a tranquilidade e o estilo de vida local também se fizeram presentes em 45% das opiniões. Confirma-se a regra da sua preservação em cidades menores.

Na segunda pergunta, para 91% dos sanroquenses o pessoal de fora vê o conjunto, Serra e Parque, como mais importante na cidade. Um entrevistado insistiu na tranquilidade do lugar como ponto diferenciado também para quem chega.

Nessas duas primeiras perguntas, notem bem, não foi citado o queijo. Incrível. Nas duas oportunidades mais legítimas, espontâneas, o principal produto da terra, tão célebre, não teve vez. O turismo, mais charmoso, vai destronando o rei?

O terceiro quesito, sobre qual alimento é mais característico, apareceu a principal diferença, colocando São Roque à frente quando a disputa se refere à identidade com o queijo. Menos mal. Ele foi citado por 82% dos entrevistados. Feijão, arroz, milho, café, mandioca e frango caipira apareceram apenas como figurantes. E tem mais, a cidade toda conhece o queijo, consideram-no muito bom, parecem orgulhosos em destacar a sua fama e o capricho da feitura artesanal. Todos gostam (a maioria o prefere fresco) e o saboreiam a qualquer tempo (uma pessoa usou uma expressão interessante: “a hora que chegar nele é essa”). Já alguns preferem na hora no almoço.

A parceria com o doce é a mais citada (55%), seguida da combinação com arroz (36%). Algumas poucas alternativas foram lembradas.

Fica assim uma grande interrogação aguardando melhores explicações. Se, depois de estimulados, os cidadãos da terra do Canastra o exaltam, por que não ocorreram manifestações espontâneas sobre ele? Estaria ele, seu filho dileto, presente somente em alguns atos? O pessoal não vincula história?

As respostas à oitava pergunta, quanto à existência de diferenças de produtos, revelou um dado interessante. “Variam” e “tudo igual” dividem meio a meio as opiniões. Isso pode confirmar a superioridade do capricho artesanal na boa terra, tantas vezes mencionado, mantendo a sua fama em grandes revoadas. Seria uma notícia alvissareira. A base está defendida. Faltam condições ao artesão para se adequar, maturar seu queijo e, colocado o selo, vendê-lo por preço melhor, requintado.

Somente um em cada onze sanroquenses conhece ditado com a palavra queijo. Boa dica para as escolas do ensino fundamental de forma a corrigir essa insuficiência. A professora poderia passar um “para casa”, pedindo a cada um que traga na aula seguinte pelo menos três desses motes populares. Na lida com o turista, o morador deve saber contar casos, histórias, refrões e conhecer de perto as riquezas, coisas assim.

Praticamente todos conhecem receitas — pão de queijo sempre à frente. Um entrevistado apresentou um mexido de composição própria (o queijo vai picado na panela com óleo, açúcar e farinha de milho. Tá alimentado. Pode pegar tarefa).

Somente uma entre onze pessoas sabe o que é origem controlada. Também esse conhecimento precisa ser divulgado entre os filhos da “terra mater” do nosso bom queijo.

Não vi delinquência nas ruas ou indícios de prostituição. Não encontrei crianças perambulando e nem mendicância. Em uma das tardes duas moças mostravam sinais evidentes de excessos alcoólicos. De qualquer maneira, minha amostragem não é de muita valia. Sempre cansado pelos afazeres do dia, recolhia-me ao hotel tão logo encoberto o sol, exausto.

Tapira

Passei pela cidade ainda cedo e só demorei por ali uma parte de uma radiosa manhã de azul anil. As pessoas passavam tranquilamente, demandando os postos de trabalho, a vida seguindo com calma, silenciosa, percebia-se somente as vozes de algumas pessoas — o ouvido até estranha, acostumado com tanta buzina, ônibus barulhentos, gritaria. Que aconteceu, faleceu alguém? Três estavam sentadas no banco junto ao pequeno pontilhão, me pareceu parada de ônibus. Não percebi nada fora do lugar em termos de organização social.

O plano e o relevo não facilitam uma melhor apresentação urbana. Apesar disso, a cidade melhorou muito desde a última vez que lá estive, já se passaram quase três décadas. E isso apesar de Araxá, relativamente perto, atrair para moradia os trabalhadores mais qualificados, bem como deve abocanhar boa parte do bolo de contratação de bens e serviços da principal empresa existente no município.

Provei do queijo local. É de feitura bem cuidada, muito saboroso e, também, diferente, mais encorpado, esnobando personalidade. Conta com a proximidade de São Roque e Medeiros, parecendo compartilhar das boas origens e influências.

Um entrevistado, exaltando as excelências da produção autóctone, exibiu conhecimento ao dizer que cerca de 50% das pastagens do município ainda eram naturais. Mais tarde, em casa, consultei o IBGE virtual e confirmei a informação. Segundo os dados de 2006, elas somam 48,5% da área. As plantadas abrangem somente 26,5%. As autoridades locais deveriam analisar com mais profundidade essa questão e, confirmando essa relação entre qualidade diferencial e a herança dos pastos nativos, verificar a conveniência de estabelecer uma política pública, se já não existe, com percentuais significativos de áreas sob conservação e preservação. E, ao mesmo tempo, não perder a chance, alardear essa superioridade do queijo tapirense. Depois de todas as comparações sinto-me autorizado a sugerir a inclusão de Tapira na Origem Controlada da Canastra, ajuntando-se ao seleto grupo já citado (São Roque de Minas, Medeiros, Bambuí, Vargem Bonita e Piumhi). Um dos queijos que lá provei é excelente. Pode ser produzido no tamanho maior para compor o Araxá Real, junto às peças selecionadas igualmente do Alexandre Honorato.

Nas respostas à primeira pergunta o minério se destaca como a principal referência local em importância. Já sobre aquilo que o forasteiro vê de bom, as opiniões se dispersam um pouco, constituindo-se a tranquilidade e o clima (3 votos cada uma) nos principais chamamentos.

Os alimentos são batata (6 votos) e feijão (4), seguidos de queijo e soja com dois votos cada. Assim, em termos percentuais, Tapira figura como uma das que mais prestigiam a artesania do leite cru.

Todos gostam de queijo, e comem a qualquer hora, sem preferência de acompanhamento. Vai com doce, pão, café, feijão (!), pinga e sozinho. A maioria sabe receita com queijo na lista de ingredientes.

Sobre origem controlada, somente uma pessoa soube dizer o significado e também um único tapirense citou gente famosa que aprecia o queijo. Mas um relato chamou a atenção. Um cidadão contou de um tio, em idade provecta, gabando-se do seu gosto pelo saudável produto da terra, que costuma dizer: “Se eu falhei de comer queijo na vida, não deu dez dias”. Legal! A água e o ar puros, o clima ameno, comida boa, os escalda-pés e, também possivelmente, a vida tranquila garantiram-lhe a longevidade. Ah! É claro, e as bactérias!

Vargem Bonita

Diante da beleza da cidade, postada no alto do promontório, um soldado de um destacamento enviado para tomar posse do lugar, teria exclamado: “Que viso eu”? Essa lenda fixada em Viseu, Portugal, montou versão por aqui, no nosso sertão. Junto às margens do infante rio São Francisco, um dos desbravadores teria também externado sua admiração diante dos esplendores do lugar: “Mas que vargem bonita!”. De fato, é uma cidade graciosa. E faz boa dupla com Medeiros no privilégio do sossego, da tranquilidade.

A semelhança com a metrópole vai um pouco mais além, ou é só vontade minha. Fiquei imaginando a Prefeitura estimulando que todas as casas e prédios sejam pintados de branco. Além de similaridade urbana, sob o sol brilhante que mora por ali, a referência ao Alentejo, assim montada, seria mais uma atração turística.

Anteriormente, comparei duas fotos distanciadas 100 anos na cronologia para mostrar as diferenças operadas pelo tempo. Pois o livro “Um lugar chamado Canastra” mostra também duas poses vargeanas aproximadamente equivalentes.39 De um amontoado de casas humildes, a cidade metamorfoseou-se em um conjunto bem arranjado de construções melhores e logradouros largos e limpos. Se expurgarmos a legenda identificadora, pode muito bem passar como pose de uma pequena cidade da Borgonha.

Rosa “Cheirinho” é uma simpatia. Recebeu-nos na agradável varanda interna de sua casa, contou muitas histórias, irmandade numerosa, nomes de família alternados, revezando, tudo “pareiado”. Mas falou também de vicissitudes, emprego difícil, poucas oportunidades para os moços, no duro enfrentamento da vida como ela é, aquela “frutinha”, uma luta, mas perder a vontade de seguir em frente jamais.

Como seria de se esperar, não consegui fazer anotação sobre desorganização social. Poucas pessoas iam e vinham, em suave e letárgica bonomia, sem qualquer tropicão, nem uma pisadinha em falso. A estrutura social dos padrões compartilhados parece bem estável, consolidada, segura, sem sustos.

Enquanto o manto claro de um céu sem nuvens cobria todo o lugar no comecinho de uma aprazível manhã, abordei sete sonolentos vargeanos, talvez prejudicando o levantamento. As respostas foram monossilábicas, mais além ainda da já costumeira dificuldade de expressão encontrada nas demais cidades.

A população não sabe dizer sobre a característica mais importante (primeira pergunta), dispersando opiniões. Mas também para eles o visitante vai até ali pela natureza local, cachoeiras e passeios. É o turismo já se fazendo presente.

Na resposta à terceira pergunta apareceu destacado índice de ocorrências para o queijo. Ele desponta em primeiro lugar absoluto. Demais opiniões são dispersas e muitos nem sabem dizer qual o alimento característico do lugar.

Todos conhecem o queijo, consideram-no bom ou muito bom, gostam, comem a qualquer hora e a associação predileta é com o doce. Percebem variação na feitura e conhecem receitas, mas, a maioria, não soube citar pessoa importante amante de queijo nem qualquer ditado com o vocábulo. Origem controlada? Ignoram totalmente.

Depois das conversas avaliei se iria até Casca d’Anta. Acabei optando por percorrer as estradas entre fazendas das cercanias para procurar por queijeira. O dever me chamava.

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39 BIZERRIL, 2008.

O ar era abafadiço, um mormaço sufocante, com o sol queimando o céu e acendendo reflexos no cascalho da estrada. Não soprava a mais tênue aragem, não “bulia” a mais tenra folha e até mesmo o minguado regato sob a pequena ponte de madeira rolava preguiçosamente, devagar, quase parando. Somente muito eventualmente um gavião desgarrado cruzava os céus, emitindo o seu lamento em gritos estridentes.

 

Sob um jatobá à beira do caminho, reuni um tanto bom de gravetos ressequidos, acendi facilmente o fogo e coei o café, trescalando o espaço em envolvente aroma, amplificado pela pureza do ar à volta. Apreciada a rubiácea, “ajeitei cômodo” no tronco da árvore, acendi o “pito” e fiquei ali sentado, tranquilo, em plenitude de bonomia, marasmo gostoso, no estado alfa das despreocupações, sem nem ao menos estabelecer qualquer vinculação com o tempo, mister com o qual um bom mineiro sabe lidar muito bem. Os olhos semicerrados, tanto pela fumaça do cigarro quanto pela intensa claridade do sol das duas da tarde, pouco a pouco foram convidando para a entrada no mais profundo do mundo de Hipnos, somente aos justos concedido.

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Arrematando o capítulo, penso que é importante fazer uma ressalva ao meu comentário sobre a dificuldade apresentada pelas pessoas, de uma maneira geral, em desenvolver as respostas às perguntas. Pode significar, de fato, pouco costume com estas coisas, mas, certamente, também porque são trabalhadoras, afeitas ao fazer e comedidas no falar, muito menos tagarelar — coisa própria dos exibidos.

Capítulo IX – Quanto menos queijo menos cultura.

“Meu amor me breganhô, mais cum isso qui mi importa,

eu vou priguntá ele quanto recebeu di vorta.

Meu amor me breganhô, qui mi importa laça-venha,

mais mió do que vancê eu mandei rachá pra lenha.”

A moldura cultural enquadra símbolos, valores, crenças e saberes identificados, traços assentados como propriedade do grupo social. São inerentes, próprios e funcionam como laços de integração, de aglutinação deste mesmo conjunto de indivíduos. Ou, na outra mão, são indumentárias escolhidas para vestir a maneira de ser da coletividade, cumprindo papel de representação. Contribuem para a formação e a produção de elementos da estrutura e da ordem sociais porque foram reconhecidos, selados e carimbados, através de consenso entre as pessoas, como presença distinguida entre os elementos da sua identidade.

Inicialmente, é oportuno comentar que, como regra geral, “desd’o Amazonas ao Prata”, do Pantanal ao Agreste, são encontradiças no cidadão comum brasileiro certas características regulares gerais. Elas são, portanto, grosso modo, aplicáveis também no nosso sertão. Muitas delas chegaram com as audazes caravelas de Cabral, foram reforçadas depois nos séculos da colonização lusitana, e já estão até encardidas pelo tempo, mas continuam por aí, resistem.

A partir de estudos clássicos comumente aceitos, faço um resumo, a seguir, desse nosso “jeitão” geral de ser, mais ou menos presente em todo o território nacional, ressalvados os desvios e falhas, indefectíveis em todos os reducionismos, podendo, portanto, não ser totalmente aplicáveis em alguma subcultura, ou povos e culturas tradicionais, se ainda preservam algo próprio. Vamos lá.

Em cuidadosa análise de textos e ajuntando contribuições de diversos autores (Vianna Moog, Silvio Romero, Paulo Prado e Sérgio Buarque de Holanda), Dante Moreira Leite traçou uma proposta de um quadro geral do caráter nacional brasileiro, indicando padrões comuns à nossa identidade.40 Vejamos alguns, talvez mais intrigantes, ou provocadores.

Primeiro, a aceitação dos problemas do país não nos compete — ficamos esperando que sejam resolvidos ou achamos que não há solução. Vem talvez da apatia, da falta de iniciativa, da preguiça para a inventiva, e da acomodação, desleixo, gosto maior pelo ócio do que pelo negócio, sintomas que padecemos endemicamente. Abatidos intelectualmente, gostamos de cultuar o diploma. Raquíticos em racionalidade, deixamos o misticismo avançar sobre nós, chegando às raias do ridículo. Esta última talvez seja uma faceta mais facilmente comprovável, presente em toda a parte. Poucos povos ocidentais são tão afeitos ao mistério, ao fantástico, ao inatingível. Adoramos quando ouvimos falar que a ciência não conseguiu explicar um fenômeno, preferindo entendê-lo como extraordinário, sobrenatural ou na conta do criacionismo. Consulta aos oráculos é conosco mesmo. Acreditamos em toda

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40 LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. São Paulo: Pioneira, 1983.

nova previsão de fim de mundo, não importa tenham fracassado tantas versões anteriores.

O mesmo citado autor vê também o brasileiro irritado e emotivo. Sendo assim, nós mineiros seríamos uma mutação. Gostamos de mastigar bem as coisas, trocar figurinhas, esperar, “desensofrimento azanga negócio”. Talvez seja influência das montanhas aguardar com calma o sol aparecer “de sobre elas” e, enquanto isso padecemos também de alguma melancolia, é o que pensa João Torres.41 Este mesmo autor cita Tristão de Ataíde, que teria dito que “não se compreende um mineiro fanático”. Não somos xiitas, extremados, arribados. Também Darcy Ribeiro vê em nossa personalidade a capacidade de entristecer-se. O fim da era aurífera talvez tenha sido um bom motivo para internalização desse traço.

Em outro grupo de traços são destacados a cordialidade, a hospitalidade, o respeito às instituições, a caridade, a bondade, a afeição, a ordem, a resignação, a individualidade, a sexualidade e o erotismo e, um tanto contraditoriamente, a rigidez, o espírito de ordem, o sentido de dever e o gosto pela rotina.

A vaidade está incluída, mas isso não é privilégio tupiniquim. É o pecado preferido do tinhoso, regozijo para o anjo do mal. Sente-se mesmo energizada a besta que assobia com esse pecado, porque é vício universal, é erva daninha grassando pelo mundo afora, qual narcotráfico — não há vigilância nas cancelas das fronteiras que consiga detê-la.

Também é citado nosso amor pela paz, tantas vezes manipulado para estimular a não intervenção, deixar as coisas se resolverem pelo diálogo — na prática é quase um monólogo, eles falam e nós dizemos “sim, senhor”! “A docilidade da população é um trunfo precioso. Há que decantar isso, louvar a índole pacífica dessa gente, aclamar a mistura de raças e culturas, apreciar a alegria incontida”, anota Pedro Demo.42 E eu concluo: louvar esse tal de “não é comigo”, essa pasmaceira, sempre esperando alguém, um salvador da pátria. A corrupção endêmica não é de nosso interesse. Já Carnaval, futebol, novela, Fórmula 1, BBB, barzinho horas sem fim, feriados prolongados, muito ao contrário são os mais eleitos. Certos ditames do movimento hippie não foram inventados alhures na década de 60 — nós já os praticamos muito antes disso.

Adotamos por costume, também, o comportamento de hienas, nosso normal é dar risadas, mesmo quando comemos carniça. Nesse caso, também nós os mineiros seríamos uma exceção. Pelo menos para João Torres, para quem as “altas montanhas condensando as nuvens… o sol tardio a aparecer e cedo desaparecer por detrás da serra”, tudo isso nos fez a nós mineiros pessoas acabrunhadas, de uma “tristeza implacável e uma profunda melancolia”.43

Guerreiro Ramos, por seu turno, analisando a administração no contexto brasileiro, fala da nossa dificuldade em estabelecer vínculos com o tempo, da nossa relutância em cumprir prazos e programações. Segundo ele, somos tomados pelo “vício do amanhã”.44 Reconheçamos, é uma chaga nacional. Contorcemo-nos todos quando

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41 TORRES, João Camillo de Oliveira. O homem e a montanha. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

42 DEMO, Pedro. Introdução à sociologia. São Paulo: Atlas, 2002.

43 TORRES, 2011.

44 DEMO, 2002.

instados a assumir um compromisso no calendário. Ou pior, muitas vezes, entre marcar uma hora certa e chegar a um êxito letal, optamos pela segunda alternativa. Para quando o senhor me entrega este serviço? Ih! Prá que. O interlocutor se alonga, gagueja, pigarreia, pensa, varia a conversa, faz qualquer coisa menos entregar uma indicação de conclusão de uma tarefa. Mesmo quando é só para informar sobre tempos possíveis de execução de uma atividade sem compromisso efetivo, a turma “pica a mula”, “salta de banda”, pula “de isgueio”: “Por favor, senhor pedreiro, em média, quanto tempo se gasta para levantar uma parede como esta aqui do projeto?”. O início padrão de resposta é “vareia”. Em seguida, o profissional desfia um rosário de argumentos, chama a atenção para detalhes, encomprida a conversa, comenta sobre trabalho já executado, mas jamais apresenta, de fato, um valor, numérico, fechado, objetivo. Ônibus parado na plataforma da rodoviária, com motor aquecido, sai com dez, às vezes quinze minutos de atraso. O horário anunciado (e escrito na passagem) é apenas uma sugestão. Os “marts” abrem rigorosamente cinco minutos após a hora proposta no aviso afixado. Nos aeroportos, os alto-falantes anunciam a última chamada umas quatro vezes e o avião parte na hora que o último passageiro entender que deve embarcar. Compromissos públicos com presença de autoridades não começam antes do ponteiro grande ter cumprido, pelo menos, meia volta após o prazo acertado originalmente. Em Betim, há lei fixando o atraso: são 105 minutos. O prejuízo empresarial e social dessa prática é incalculável, pois o tempo, o cronograma, é o principal ingrediente de uma tomada de decisão, estabelecendo, efetivamente, um plano de ação, um horizonte. Sem montar vínculo com o tempo, toda a conversa se acomoda confortavelmente no plano das intenções — é um “vamos ver”, um “ahn ahn”, não é projeto, foge da esfera do compromisso.

A famosa lei de Gerson, proposta através de antiga propaganda, apesar de faltar-lhe embasamento científico é aceita empiricamente por todos e, a seu modo, consuetudinariamente, vai sendo validada em todo o território nacional.

Outra chaga dificilmente se fecha: da sovinice, do “pindura” e do calote. Registros antigos informam que os lusitanos se achavam no direito de não pagar por aqui os serviços prestados pelos seus colonos. Teríamos herdado daí essa “graça”?

Liszt Vieira destaca nosso orgulho pela grandeza do país, nossas belezas, nossos rios, nossas matas. Para esse autor, natureza e nação são sinônimos entre nós. Seu muito interessante estudo sobre os hinos nacionais da America do Sul analisa as letras e conclui que o nosso é o único que não fala explicitamente em morrer pela pátria. De fato, nosso “virundum”, em invocação romântico-ufanista, exalta o “berço esplêndido, formoso céu, lindos campos, bosques com mais vida, garridos”. O arrebatamento alcança o “lábaro que ostentas estrelado”. Derramar o sangue? Só hiperbolicamente, “não teme quem te adora a própria morte”, quem sabe com os dedos cruzados às costas. Orgulhamo-nos também pela negativa da inversa, ou seja, o ruim do qual nos livramos. Com efeito, não é difícil se ouvir exultação à condição de país abençoado, sem terremotos, sem guerras. Olvidamos o genocídio diário da mortalidade infantil, os desastres naturais penalizando moradores em regiões de risco, dos assentamentos precários, em especial na faixa litorânea Rio – São Paulo (Teresópolis conheceu trágica e amargamente esta realidade, em janeiro de 2011), das secas no Nordeste, da violência nas cidades, séculos de luta aparentando não ter fim. Nossa guerra dos 500 anos. Holocaustos e mais holocaustos. Um estranho e lúgubre festival.

Mais operacionalmente, detalhando nos gostos, por minha conta incluo: apego exagerado pelo samba, veneração por automóveis, fraca capacidade de poupança, aversão ao planejamento, pouca afeição à leitura, gosto pela verbalização em detrimento da audição e do registro, cultivo de totens estrangeiros, atração pela fofoca, apego às tradições, respeito à hierarquia, bom humor, sutileza, perspicácia, religiosidade, generosidade, caridade, hospitalidade e simpatia.

Ajunte-se a esse apanhado os valores praticados por uma sociedade estratificada, onde uma minoria oligárquica e empresarial assume o comando e a grande maioria, as classes subalternas e oprimidas onde o pendor é de se vender e se submeter ao sistema para conseguir acesso ao mercado de consumo. Todo mundo lutando por pequeno espaço para poder respirar. Vamos ver algo sobre desigualdade em capítulo mais à frente.

Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino e tantos mais já descreveram especificamente o jeito mineiro de ser. É apólogo da nossa natureza alterosa: dois bois mineiros, um mais velho e o outro garrote, estavam no alto do morro. Lá embaixo, uma porção de vacas pastando. O boizinho, afoito: “Vamos descer correndo, correndo, e pegar umas dez!”. E o boizão, tranquilamente: “Não, vamos descer devagar, e pegar todas!”. Ressalvado o machismo…

Muito do que falaram pode ser resumido na historieta do fazendeiro que procurou o vizinho amigo para conversar sobre uma doença de equinos:

 

— Ô, compadre, o meu cavalo “tá” com o mesmo problema daquele seu malhado. O que você deu para ele? E

— Eu apliquei soro nas feridas.

Decorridos uns dias, encontrando-se de novo com o vizinho exclamou:

— Uai, compadre, eu passei o remédio que você recomendou, mas o meu cavalo morreu!

— Uai, compadre, o meu também!!!

Tratemos agora de outras componentes culturais específicas. Referem-se a temas escolhidos previamente. Podem existir mais. O campo da pesquisa é infindável e continua “dando sopa”, à espera de novos pretendentes.

Apesar de obtido por levantamento expedito, passível de melhoria e detalhamento, permito-me concluir que a molecada mudou os hábitos nos folguedos. Muitas atrações antigas — pião, bola de gude e jogos de botões — foram substituídas por skate, patins e games no computador. Roubar fruta nas hortas, já não há tantas assim… Nadar nos córregos está cada vez mais difícil. Mas algumas ainda persistem: futebol para meninos, bonecas para meninas e bicicleta e gibi para ambos. No curto período de meio século (coisa de véspera na escala sociológica de tempo), muitas mudanças se processaram nas ocupações infantis. Na minha classe social brincávamos de roda, jogávamos bilboquê, diabolô, “finco” e rodávamos aros. Hoje, a gurizada vê televisão e se diverte com bichinhos virtuais e jogos eletrônicos. Eu cuidava de cachorros e passeava com eles, construía alçapão para pegar passarinhos, tínhamos quintal com galinhas e certa feita chegamos a ter em casa uma arara — naquele tempo não existia o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Já meu neto cria um pinguim virtual. A discussão sobre ganhos e perdas é complexa, infindável e foge do escopo do livro. Não há como barrar o progresso da tecnologia que coloca à disposição apetrechos cada vez mais sofisticados, tampouco tentar cercear a interação com novos valores.

Uma pena não ter sobrado tempo para pesquisas complementares, mais detidamente. Teria sido interessante fazer uma comparação mais representativa, medindo tempos de ocupação em cada atividade das crianças de hoje e se possível cotejar com a situação vigente em duas ou três gerações anteriores.

Bolas de pano, goma da botina para fazer viola de caco de cuia, chupar manga, nadar no riacho, “fabricar” chiclete com leite de figo, “pitar” cigarro de talo de chuchu, soltar balões, empinar papagaio, colocar pedra dentro de saco de papel e esperar transeunte chutar, quebrar vidraças e tantas coisas mais. Pivete no bom sentido… “mininada dos diabo, cambada de iscumungado, se ocêis num tem pai pá ti inducá, eu te induco, capetada dos inferno”. Dizem que anjo da guarda existe. Para mim, pelo menos, ele bateu ponto todo dia, vigilante, em espreita incansável durante o correr da minha feliz infância, temerária, curiosa, incauta. Afogamentos, desmoronamentos, tombos de árvores, queimaduras com fogo ou cal em extinção, lesões por todo o corpo, quedas, animais peçonhentos e parasitas. Muito diferente de vários desastrados por ai, como os designados para cuidar da família Kennedy, o meu alado protetor era bastante eficiente, competente, extremamente atento, ocupado, incansável, em hora extra todo dia.

Atualmente, esses espíritos custódios estão especializados em prevenção contra terceiros, nas balas perdidas, nos atropelamentos em passeios, no colega que resolve saldar desavença com uma faca e no vendedor da porta da escola incluindo no seu carrinho produtos além de balas e pirulitos.

A propósito de religião, “pras” nossas bandas o Cristianismo impera no centro da contrição desde tempos imemoriais, mas incorporando inevitáveis mudanças e variações sincréticas, ao sabor das necessidades.

Inicialmente, ele se instalou através do Catolicismo Apostólico Romano, nas primeiras ocupações dos lugares. Os topônimos homenageavam os santos seguindo-se a construção do templo simbolizando a posse definitiva e autorizando a elevação à condição de vila. Aos poucos, essa religião foi se multiplicando na fundação das irmandades, procissões e demais práticas de fervor. É a fé atuando, tentando consolidar e preservar valores morais e éticos.

As igrejas evangélicas apareceram mais recentemente, mas já ocupam importante espaço, na crença e também fisicamente, pois todas as cidades contam já com vários templos, nas diversas denominações existentes, em especial a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), a Congregação Cristã do Brasil e a Igreja Mundial. Os primeiros resultados do censo de 2010 dizem que em cada quatro brasileiros um se declarou evangélico. Um novo livro poderá se ocupar das razões porque atendem às ansiedades do povo e por isso se alastra qual fogo na macega estorricada pela seca.

A doutrina espírita é bastante difundida na região e muitos dos nossos conterrâneos se destacaram no conhecimento dos princípios e leis codificados por Allan Kardec, bem como na prática da caridade. Sacramento, da região do queijo de Araxá, é a terra natal de Eurípedes Barsanulfo (01/05/1880), famoso médium, educador, empresário, político, meio diploma de médico e farmacêutico prático (falecido em 01/11/1918, durante a terrível epidemia de gripe).

Entre os imigrantes italianos instalados em “Passa Perto” — alcunha provocativa utilizada pelos próprios sacramentanos, e eu também adquiri o direito graças ao carinho que nutro pela vizinha cidade desde a juventude —, pois bem, um dos “carcamanos” que arrancharam junto às margens do Ribeirão Borá chamava-se Achilles Nolli, um bresciano atarracado, de voz metálica retumbante, mais tarde nosso tio, ao casar com uma irmã do meu avô Ernesto. Moço ainda, simpatizou-se com o Espiritismo, influenciado pelo então já famoso clarividente pela difusão do código, pelas suas faculdades mediúnicas conhecidas em toda a região e seus trabalhos humanitários junto às comunidades menos favorecidas. Certa feita, Achilles recebeu de Eurípedes a prescrição de um unguento qualquer para aplicação em uma erupção no braço. Dias depois, um encontro casual dos dois amigos deu-se sob certo constrangimento do paciente, pois este não se valera do remédio e nem mesmo se lembrava mais onde o tinha colocado.

 

— Não podia sarar mesmo… — disse Barsanulfo, examinando. — Você deixou a pomada cair atrás do criado-mudo do seu quarto e não mais a aplicou…

Em casa, Achilles recuperou a latinha conforme indicado e terminou o tratamento, com sucesso. Quem me narrou essa manifestação foi um dos filhos desse meu tio. Acatando preceito paterno, estou também vendendo pelo preço de custo.

Contudo, nos novos horizontes desse cenário espiritual, visivelmente a secularização vem ganhando no corpo-a-corpo diário. Declina a influência religiosa, comparativamente a tempos passados. As estatísticas mostram o enfraquecimento da presença das religiões, engrossando o quadro de adeptos ao “partido” dos que se declaram agnósticos ou ateus. Esse afastamento deve ser proporcional à população da cidade, mas faltam levantamentos mais abalizados para confirmar. Mesmo porque, nós, mineiros, nunca fomos também fundamentalistas, não levamos nem mesmo a religião de forma excessiva, exacerbada. Não se afina com nosso jeito a ortodoxia, a intransigência.

Lamento também não ter incluído entre minhas lucubrações uma investigação sobre as crendices, feitiços, assombrações e mandingas, as construções da expressão simbólica para impor restrições, condicionamentos e o temor ao sobrenatural, na esteira dos fundamentos religiosos “para manter sagrado o que é sagrado”. “É a crença nas almas, o temor dos espíritos, o medo do medo, a adoração dos antepassados, a coligação com os espíritos e os mortos, a adoração da natureza e a reflexão filosófica”.

Invadindo o terreno da antropologia, seria extremamente interessante averiguar mudanças em relação ao que existia antigamente, no início do século passado, pelo menos em São Roque, conforme relato do Cônego Ivo.45

Lobisomem e mula sem cabeça eram os mais presentes. Quando morria alguém, ninguém dormia de noite, principalmente se fosse assassinado. “Só desacismavam daquele quando outro morria”. Na beira da ponte costumava aparecer ora um caixão branquinho, ora um lençol estendido. Um porco soltava fogo pelas ventas. Para fazer mal ao desafeto, enterrar pedaço de fumo, cabelo, sapo seco, sola de sapato. Fazer signo de Salomão no rasto de uma pessoa provoca terrível dor de dentes. Chá de fragmento de carneira de chapéu faz marido abandonar a mulher. Para confirmar se uma pessoa é feiticeira, basta rezar o Credo pelas costas. Se ela olhar para trás… Há benzeções e simpatias para curar cobreiro, peito zangado, jeito, dor de barriga em nenê, sapinho, brotoeja, quebranto ou mau olhado, dor de dente, bicheira, queimadura, estancar sangue — sangue “aquiete” em suas veias, como “Jisuis” está na sua ceia —, para achar objeto perdido ou espantar baratas, pulgas e bichos. Para perder medo de defunto, beijar os seus pés. Chá de língua de pica-pau faz criança falar depressa. Virar a vassoura atrás da porta espanta visita demorada. Pra secar verrugas, botar sal e depois jogar ao fogo. Terçol se cura passando nos olhos três folhinhas de arruda molhadas e jogando para trás. Para fazer rapaz gostar da moça, quebra-se ovo nas costas da pretendente, pondo para fritar e dando para ele comer. Mangangá dentro de casa má notícia. Briga de galinha na porta da cozinha visita de mulher. Pegar as coisas pela janela é chamar atraso de vida. Passar debaixo do arco-íris faz homem virar mulher. Sonhar com fumo, ou dente, sinal de morte. As flores guardam simbolismos: acácia é amor puro, já o trevo, incerteza, alecrim, ciúme e begônia, cordialidade.

Isso tudo é um resumo de mais de uma centena de valores e crenças das tradições locais apresentados pelo referido autor. Vários ainda permanecem, pelo menos entre as populações de menor renda das cidades menores e também no meio rural. Contudo, ao mesmo tempo, a racionalidade avança e os persistentes vão mudando a cara, tomando mais a feição de folclore. Papai Noel vê restringir cada vez mais a faixa etária de alcance. O avanço da ciência e da tecnologia, a tela do computador, as naves espaciais mostradas na televisão ou, ainda, a mudança do caráter do

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45 MATOS, (s.d.t.).

ensino fundamental e da pregação religiosa e vividos os anseios e realizações no campo da libertação e da democracia, tudo isso, enfim, vai tornando sem sentido, ou sem função muitas dessas montagens a partir do imaginário. Esses fantasmas estão recuando. Sobrevivem, é fato, lendas mais ou menos consolidadas apesar do pequeno tempo histórico de formação, e isso é bom para o turismo.

Uma delas, tenebrosa, está contada em diversas publicações sobre o sertão dos Araxás, é a da Zagaia, instrumento de morte utilizado por facínoras, serial killers da época, em rendosa atividade de latrocínio. Para aumentar o terror, omitem que os bandidos foram finalmente flagrados e presos. Essa narrativa remonta aos tempos da ocupação inicial pelos brancos, numa terra sem leis. O cetro (e a espada), símbolo da dominação, já tinha tocado a terra, mas não a toga e a mitra. As pessoas ainda não formavam massa suficiente para convocar a presença do juiz e do vigário. Tudo andava segundo a regra do salve-se quem puder. O revólver na cintura era peça habitual, compunha a indumentária.

Em especial me chamou a atenção a estória do Mestre Justo. Sua fama de milagreiro e oráculo atraía fiéis para a Serrinha, onde morava. Nas orações apoiadas nos Evangelhos, exercitava suas capacidades mediúnicas e a prática da caridade desdobra-se na lenda de sopa preparada em pequeno recipiente, mas sempre saciando a fome de todos os presentes, não importava quantas pessoas dela se servissem. O mito da providência na multiplicação de pães em forma sertaneja. Muitas metáforas podem ser construídas e tantas análises podem ser feitas a partir desta manifestação cultural. Nosso eremita não come ervas silvestres, ele cozinha. A premiação da fé se dá na subjetivação da fartura, na espera pelo milagre, na projeção, para a transcendência, da solução para aqueles que não conseguem amealhar, objetivamente, as suas necessidades básicas de sobrevivência. Mas é, também, façanha reservada a políticos, capazes de multiplicar por vinte seus patrimônios em curto espaço de tempo.

E, inevitavelmente, como acontece aqui e ali, está muito bem composta a lenda da imagem de São Roque, negando-se terminantemente a mudar para a nova igreja construída. O atavismo da contrição ao local de origem montou essa posição de rebeldia, traduzindo o desagrado dos devotos em reação à mudança. Necessidade cultural de se opor ao novo, quando ele perturba aquilo que está bem assentado, aceito e acomodado.

O Dr. José Pessoa contribui com a história de tiroteio ocorrido durante uma procissão de São João. O fato se deu lá no Arraial das Perobas, município de São Gotardo. Depois de toda aquela aflição, só restava mesmo ao “sô padre recolher o andor para a capela, benzer os fiéis e dar por encerrada a devoção do dia. Qual não foi a surpresa ao ver que a imagem tinha desaparecido? O santo festeiro “deve ter pulado do andor, descido o “corgo” Vira-Saia, o Rio Pirapetinga, atravessado o Indaiá via Fragata e Cedro para nunca mais aparecer nas Perobas”, assim contam.

Esses relatos falam também das figuras populares, os tipos de ruas, os andarilhos, comuns mesmo nas cidades maiores. Existiu e sobrevive até hoje essa tão triste mazela. Espíritos deslocados, caminhando ao largo da ordem social esperada, a maioria por afastamento involuntário.

No meio rural, perguntei se ainda adotam um costume antigo que eu conheci, ancorado nos dogmas de respeito a dias santificados, reservados para a reverência a Deus. Em todas as fazendas pesquisadas não é mais seguido o preceito da não fabricação do queijo na sexta-feira santa. As explicações variam e fazem sentido. Religião não é isso, preciso do pingo para fazer o queijo no dia seguinte, o bezerro não pode mamar tudo, adoece, ninguém mais vem até as fazendas buscar o leite para fazer doce e entregar a instituições beneficentes, ou distribuir para a família como ocorria nos tempos de antanho. Essa última explicação é interessante, do lado do beneficiário também as coisas mudaram. Se eu ganho, “num carece” fazer. Enfim, não sendo assim tão guardada a Paixão de Cristo, pode se tratar de mais um exemplo de como os vínculos com a religião vão se alterando, confirmando as considerações já tratadas anteriormente. A abstinência prescrita pelo estoicismo cristão cede lugar às determinações das relações de troca.

Na roça, persiste ainda o proveito da flora para uso em medicina alternativa. A arnica é usada para dores musculares, luxações, pancadas e picadas de insetos. A calunga, amarga, é boa para indisposições hepáticas. Quebra-pedra para a finalidade explicada pelo próprio nome. A mangaba é de serventia no controle do diabetes. Além disso, várias unidades rurais mantêm um canteiro com cheiros. É enorme a lista de prescrições para chás, pomadas e unguentos.

Quanto às receitas de quitutes, bolos e biscoitos, salgados e doces de todos os tipos, a diversidade se faz presente. Graças a Deus! Pode-se apreciar assim uma variedade interessante. Provei de muita coisa, em diversas localidades, na cidade e no campo, e pude constatar numerosas alternativas de composição, proporções, formas de preparo e tempos de cozimento. Tirei bom proveito também do visual na festa de cores, principalmente dos bolos e doces. Faz tempo, aliás. Não importa a passagem dos anos, embacie a vista com a catarata, envelheçam as retinas, o vermelho roxo do doce de banana e o verde profundo do doce de figo da Dona Diana, minha mãe, continuam ali impregnados, indeléveis. E sempre que vejo uma figueira faço associação imediata com a vitalidade do indivíduo da espécie postado próximo ao tanque de lavar roupa da minha casa do tempo da primeira juventude. Pródiga, produzia bons frutos duas vezes por ano. Não era milagre, soubemos muito mais tarde, e sim porque duas ou três vezes por semana o sempre viçoso arbusto recebia generosas baciadas de água servida com sabão.

Desculpem a escorregada, a “viajada na maionese”. Retomo o tema do livro.

Consegui sistematizar pelo menos três equivalências, encontradiças facilmente nos diversos lugares por onde passei nesse meu esforço de levantamento e análise.

De início, a melhoria geral de condições e de cuidado do preparo dos alimentos. Antigamente, nas casas de colonos ou mesmo de fazendas, a desfeita pela recusa de tomar uma água ou comer um pão de queijo era quase obrigatória na dúvida quanto às condições sanitárias do preparo. Agora, mudou muito a conversa. Numa das propriedades foi servido graciosamente um café de primeiríssima, somente disponível em casas sofisticadas de centros regionais, a custo de aeroporto Charles De Gaulle. Se não bastasse, escaldado com água de fonte filtrada em cafeteira italiana. Pode? E os biscoitos? Sabor inigualável, preparados segundo os melhores preceitos. No café da manhã dos hotéis e pousadas, mesmo os mais simples, pode-se apreciar bolos de fubá e pães de queijo de primeira linha.

(Foto da mesa com café e quitutes)

A segunda reporta ao condicionamento da cultura em torno das receitas em geral. Seja na troca da informação ou na oportunidade de preparo, exerce-se a prosa embutindo etnografia, o jeito local de ser, os traços culturais e a história do lugar. E as prescrições são de domínio público, não se trata de conhecimento maçônico, reservado, ou registrado em patente, ou transmitido de pai para filho durante gerações, já disse.

A terceira traduz a simplicidade ainda vigente na alimentação. O comum é o singelo, o trivial, sem muitos ingredientes ou manipulação complicada. Não existem pratos sofisticados, nem agressivos do ponto de vista de condimentos ou estranhos. Bem regrados, nada oleoso, empapado, obeso, pesado, tirante a carne de porco, gosta de nadar na gordura. Não encontrei pegadas do toucinho, tão comum nas fazendas de antanho, nem sobre o fogão, tampouco nas prateleiras. Os preparos rebuscados ainda não saíram das quatro paredes de cozinhas de hotéis com ares esnobes, para exibir junto a clientes abastados, ou na intenção de impressionar os bugres com seu verniz e lustro. Na encenação falam confiture, dégustation, hors d’oeuvre e coisas assim, de beicinho. No borralho simples, do cidadão comum, nada de brochette de poulet tandoori, é frango com quiabo mesmo. Dessert glacês coisa nenhuma, tome lá goiabada com queijo. De uma maneira geral, frutas tais como a pera e o pêssego são consideradas estranhas. A turma ataca ecológica e sustentavelmente na manga, no mamão, e no abacaxi. A goiaba, a laranja e a banana imperam na mesa patriarcal de doces.

Entre os utensílios e equipamentos utilizados atualmente, isso sim, as novidades amenizam a dureza do dia-a-dia. O fogão a gás e o micro-ondas já chegaram às beiras dos córregos. A panela de pressão faz dueto com o bem-te-vi.

Nos valores praticados e no jeito de ser geral, muitas coisas vão se modificando com o tempo. Nada é fixo, imutável. Saint-Hilaire conta de sua passagem por Formiga.46 Reunido com várias pessoas, na conversa vai, conversa vem, “falou-se

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46 SAINT-HILAIRE, 2004.

muito sobre a França, e me perguntaram se era verdade que lá as mulheres eram tão livres quanto tinha afirmado outro francês que ali passara antes. Confirmei as palavras do meu compatriota, e as informações que dei pareceram de tal forma estranhas a eles que um dos presentes, levando as mãos à cabeça, exclamou: ‘Deus nos livre de tamanha desgraça!’. Aqueles amáveis sujeitos não conseguiam imaginar que um prisioneiro pudesse achar que nada devia ao seu carcereiro”. E eu completo — na cola de certo pensador, também do século XIX—, aqueles “bugres” não percebiam que o aprisionado, ao quebrar os grilhões, liberta o seu algoz. Essa “desgraça”, aos poucos, vai chegando ao nosso sertão. Nas cidades maiores pelo menos, os tabus vão se desmoronando, com o advento da pílula anticoncepcional e graças também aos novos entrantes, mais importantes, na lista de preocupações. Não sem pagar preço eventual frente cada transição. Antes a cada geração, agora, as inquietações fazem parte do cardápio de cada dia. Mas Saint-Hilaire também informou nas notas deixadas sobre Araxá: “Como em todo o resto da província, o número de prostitutas é ali considerável”.47 Não citou nomes, Dona Beja, Candinha da Serra ou Josefa Pereira, mas que estavam por lá essas infelizes, para acudir os tropeiros, isso é coisa tida como muito certa. E logo à frente: “Dizem que há na região muitas pessoas casadas, mas que a fidelidade conjugal é pouco respeitada”. Só não esclarece se o adultério era privilégio de gênero.

Num desses lugares (teria sido em Bambuí, não anotei, perdi a referência), li um anúncio sobre um circo, ali montado recentemente. Chamou-me a atenção a programação do espetáculo. Encerrando a noitada, a companhia apresentava uma peça teatral sob sugestivo chamamento: “Os bandidos da Serra Morena”. Entre as memórias da minha infância, guardo a viva lembrança da chegada aparatosa em Araxá de uma vistosa empresa desse tipo de recreação, também coroando todas as atrações da noite com uma encenação no palco. O título era “O cego de Barcelona”. Agora, juntando os dois acontecimentos, separados no tempo 70 anos, penso na possibilidade de se levantar daí alguma regularidade presente em nosso interiorzão. A magia da ribalta somente se apura nos mistérios ibéricos? Se a mediunidade para a cura alcança melhor credibilidade quando associada a médico alemão desencarnado, assim também existe uma superioridade em atração advinda do fascínio andaluz, da paixão cigana? O Chapadão do Bugre, igualmente, recebe a visita circense, também com direito a uma peça teatral sob apelo irresistível: “Amore e Sangue”. O título é italiano, mas o tema e a encenação em castelo, bem se vê, é coisa de espanhol, nas lutas catalãs de Isidora. Deveras interessante — a dominação do Escorial sobre Sintra deixou suas marcas.

Nessa mesma curta cronologia, pude constatar também profunda mudança cultural alcançando nossa canção sertaneja. De Cascatinha e Inhana a Xitãozinho e Xororó, ninguém tem dúvida, vão léguas de distância, sem qualquer juízo de valor, gosto de ambas. É bem visível o aumento contínuo de complexidade, a começar pelo volume de vendas, em discos, shows, marketing de produtos e serviços, comercialização de marca e tanta coisa mais, agora em níveis e condições que as duplas antigas jamais poderiam ter imaginado. O “vibrato” (trinado) praticamente não existia. Mudou a motivação para as letras e temas, embora certos resquícios ainda persistam — os

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47 SAINT-HILAIRE, 2004.

“versos tão singelos… o meu sofrer, a minha dor” ecoam em “é que a viola fala alto no meu peito”. Os arranjos, o instrumental, as vestimentas, os recursos, de reprodução, luz e fogos das apresentações, tudo, enfim, se sofistica. As feiras, exposições e rodeios são abrilhantados por dezenas e dezenas dessas parcerias, assim informam os sites específicos. A demanda justifica as alterações, segundo o interesse e o gosto. Quem sabe um dia se escreverá algo compondo uma sociologia dessa nossa música. Até lá aproveito um texto da distinguida fonoaudióloga Lorena Rosa, minha filha:48

“O canto sertanejo surgiu no Brasil no século passado, na década de dez, por meio do jornalista e escritor Cornélio Pires, que costumava trazer para os centros urbanos os costumes dos caipiras. A música retratava em sua letra a tristeza do peito sertanejo ou o lado alegre do caipira (Caldas, 1987; Andrade, 1989; Publifolha, 2000). Torna-se importante fazer distinção entre música caipira e música sertaneja. A primeira é o resultado da fusão das culturas indígena, europeia e africana e só canta sobre a vida no campo, histórias de bichos, chegando muitas vezes a ser fábula musicada; eventualmente, conta “causos” ligados à religião e entreveros resultantes do contraste entre pessoas e coisas caipiras e urbanas. No que diz respeito à criação da música caipira é, normalmente, coletiva, sendo comum o anonimato, tanto da letra quanto da melodia. A música sertaneja, por sua vez, é a música caipira feita nos grandes centros urbanos por não-caipiras, “fabricadas” por imitação, humorismo ou comércio puro e simples; só fala de temas da cidade, sendo, em geral, mais dramática e negativa, com perdições, traições e adultérios. Apesar das características bem diferentes, ainda guardam algumas identidades: a música sertaneja prolifera nos mesmos lugares onde se sedimentou a cultura e a música caipiras – Mato Grosso, São Paulo, Minas Gerais e Paraná. O público consumidor também é o mesmo e a forma nasalada de cantar foi mantida e parece ser uma estratégia de venda bem-sucedida na música sertaneja. Embora as músicas caipira e sertaneja se tornem, a cada dia, mais distintas, é inegável que a música sertaneja descende dos traços da caipira” (CALDAS, 1987).

Quanto à fala, vários traços da mineiridade encontram-se presentes aqui e ali, na entonação cantada e em expressões capitaneadas pelo recorrente “uai”. Em Carmo do Paranaíba, é mais evidente. As cidades menores e o meio rural ressaltam a estrutura e o vocabulário “caipiras”. Ainda se ouve, mormente no campo, o jeito espreguiçado, engolindo a sílaba final, carregando, torcendo ou mesmo omitindo o “r”, dependendo da sua posição no vocábulo e coisas assim. Mas muito menos “arretado” comparativamente a, digamos, 50 anos atrás. Ao contrário, a maioria dos artesãos e seus familiares já incorporaram o modo citadino de se expressar, na forma e no conteúdo.

Nos centros urbanos, mais ainda, esse traço se esmaece sob a ação do tempo, contando com a poderosa colaboração do aumento da escolaridade e da influência dos meios de comunicação, aplainando os usos e os costumes. Entre as crianças e os idosos, em especial nos estratos de menor renda familiar, é possível perceber

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48 ROSA, Lorena L. C. Vibrato sertanejo: análise acústica e correlatos fisiológicos no trato vocal. 2003. XX f. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo-USP, São Paulo, 2003.

mais presentes o sotaque e aplicações do vocabulário “mineirês”. Supostamente os meninos herdam o “dialeto” dos mais velhos, nas primeiras etapas da aquisição do idioma. Depois, na continuação do processo de socialização, nos bancos escolares, no sofá em frente à TV e na convivência em geral, vão se distanciando dessa referência original.

Saint-Hilaire registrou o uso de vocábulos emprestados do espanhol: sierra, ciudad, de la (no lugar de da), gobernador.49 No meu tempo de menino (vantagem de ser velho) pelo menos no meio rural era comum o entonces. No idioma de Cervantes significa “naquele tempo”. Deveriam utilizá-lo para significar “então”, talvez incluindo na pronúncia a influência da terra das touradas. Esta herança também já se diluiu no tempo.

Enfim, na regra geral, pelo menos na região estudada, o jeitão mineiro de se expressar vai desaparecendo. Talvez não tenha até se feito presente mais intensamente algum dia porque estamos na fronteira de transição para o falar paulista. Dessa maneira, vai ficando hoje mais por conta do folclore, restrito às brincadeiras e piadas virtuais, ou a estudos antropológicos de interesse específico.

Sendo assim, em muito boa hora João Velloso editou o excelente dicionário do dialeto “geraisano”.50 Colecionou algo em torno de absurdos 7.000 verbetes e os apresentou de forma elaborada, associando exemplos e referências de vários tipos. Uma empreitada de fôlego, muito bem feito. Parabéns!

Cônego Ivo chama a atenção para a ocupação das pessoas em muitos ofícios em São Roque ainda vila. Identificando cada profissional pelo nome, ele relaciona fabricantes de polvilho, farinha, sabão e adobe, carpinteiros e marceneiros, pedreiro, parteira, tingideiras e tecelãs, armador de arreio, trançador (de chicotes, relhões, laços e cabrestos), fazedor de gamelas, barbeiro, tirador de formiga, ferrador de animais, furador de cisterna, sapateiro, fogueteiro, fazedor de fumo, criador de abelhas, latoeiro (para lamparinas, cadeias e cafeteiras), armeiro, vassoureiro, benzedor, curador, feiticeiro e, por fim, talvez a mais interessante de todas, tirador de filhote de papagaio nos coqueiros. Torrar café, cada casa acudia sua necessidade, era tarefa para as mulheres, com cuidado para não tomar vento, se não “estuporava”. Essas ocupações ou já não existem ou foram transformadas. E a velocidade de mudança aumenta cada vez mais. Mais de 90% das pessoas que estão nascendo hoje se ocuparão de afazeres não existentes atualmente, ainda serão inventados, assim vaticinam os livros especializados no estudo das megatendências.

Também “dimudaram”, e muito, os nomes que “fazem gosto” para levar até à pia batismal. Minervina, Zé Cilistrino, Orozimbo, Randolfo, Belmira, Teodoro, Matilde, Carlota, Sebastiana, Ambrósia, Arquidâmia, Teodorico e Emengarda hoje em dia quase mal se vê — nem nas lápides dos campos santos.

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49 SAINT-HILAIRE, 2004.

50 VELLOSO, João Vitor F. Pipocas! Dicionário quase etimológico do Gerais. Belo Horizonte, (s.l.), 2009.

— Tenha a santa paciência! Estratela Dinuca do Nascimento??? Isso lá é nome que se ponha na criança? — esbravejava o notário. — Nós estamos no Brasil!!! Essa não! Embolada estrangeira e ainda por cima em italiano?

 

— Uai, sei não, seu dotô! Sô da roça, narfabeto, foi minha dona qui mandô botá assim, deferênça pra mãe dela.

— Ainda por cima isso, repetindo nome esquisito, como se chama a sogra!

— Bão, a graça dela é Balduina. Mais eisz trat’ela di Nuca. .

Muito bem. Sendo assim, se são mesmo traços comuns, durante as pesquisas dispensei ocupar-me da confirmação da sua existência entre os habitantes dos municípios visitados. Seria esforço desnecessário constatar o óbvio. Variando para mais ou para menos, estão todos eles impregnados nesse nosso modo de ser.

Mesma coisa sobre o processo de transformação pelo qual vão passando essas cidades, de estruturas ainda voltadas para a produção pecuária tradicional, trajando ainda até algumas peças íntimas do feudalismo tardio, no trabalho escravo e infantil, nas condições precárias de atendimento das necessidades mínimas do trabalhador rural contratado — isso para citar apenas uns crimes, práticas de um patronato que se formou na lida com escravos, dos quais se servia como peças.

A partir da segunda metade do século passado esses lugares têm-se metamorfoseado em sociedades agrícola-industriais, capitalistas, adquirindo outros hábitos de consumo na interação com as coisas do espírito e de nova relação com a vida. Essa lógica despencou sobre todos, indistintamente, uma força indômita da qual não foi possível se “esconder até passar”.

Descreverei em detalhes o que consegui identificar, compreender e registrar das regularidades referidas ao queijo. Aquelas que não carece gastar tempo “caçando” para se ver presentes em todos os municípios, em sentimentos, comportamentos, valores, crenças, e expectativas da interação, destacados das experiências comuns praticadas pelas populações. Servi-me delas para desenvolver análises comparativas entre as cidades escolhidas. Tentei também averiguar quais as influências da globalização sobre o elenco de hábitos, ao impor uma uniformização de valores, atitudes, comportamentos, aspirações e formas de relação, no sacrifício da diversidade cultural, eliminando o singular, excluindo especificidades e impondo monotonia, da mesmice e da falta de criatividade, principalmente a contestadora.

Inicialmente, mais importante, tratemos especificamente da presença da artesania de leite cru tradicional no pensamento e no jeito de ser das populações da região.

Considerando as opiniões das quase 300 pessoas entrevistadas, vi o nosso queijo zanzando um tanto acanhadamente pelas ruas de São Roque de Minas, Medeiros, e Lagoa Dourada. A presença é mais tênue ainda, pouco perceptível, em Vargem Bonita, Tapira, Carmo e Rio Paranaíba. Nas demais cidades pesquisadas, Araxá, Ibiá, Piumhi e Bambuí, são raríssimos os vestígios espontâneos de vínculo simbólico com o referido produto.

Ao contrário do doce no Nordeste, o queijo por aqui está longe de “celebrar, identificar, nomear, ou compor”. Ou, olhando a imagem refletida, as pessoas não o aclamam nas manifestações, ele não está presente, de peito aberto, entre os símbolos, não é explicitado com veemência enquanto componente cultural e não compõe valores ou crenças relevantes. É alimento, tem gosto e sabor, é verdade, mas, repetindo, não figura destacadamente na lista dos traços culturais compartilhados dos grupos sociais urbanos em geral.

Com os artesãos a conversa foi encaminhada me valendo de questionário próprio, também estruturado. A receptividade foi a melhor possível, sempre cordial, simpática. Tanto era mais o meu interesse, como, também, parece, a preocupação principal dos anfitriões cuidarem do bom proveito dos encontros. Os diálogos se desenvolveram quase exclusivamente sobre o produto, sua fabricação e desenvolvendo identificação da relação entre o homem e seu espaço, seu esforço e sua produção.

A maioria dos entrevistados era de proprietários, com produção aprovada junto ao IMA. Não é difícil identificar em todos eles, de forma bem aparente, certa satisfação de ter alcançado tal posição, certo orgulho da condição de artesão diferenciado. Uma das esposas queixou-se de todas as providências a tomar para atender aos preceitos de higiene, em cada entrada e saída de uma queijeira — fora isso nenhum dos demais mostrou saudosismo ou preferência pelas condições anteriores de elaboração. Também se valem de terminologia mais técnica, de quem dispõe agora de informações científicas do processo de produção. Essa característica completa um quadro bem interessante de vantagens. Se os fazendeiros antes conheciam bem o seu mister, e davam boa conta de todas as tarefas e elementos pertinentes à sua ocupação e à sua propriedade, eles o faziam empiricamente. Agora somam forças com a tecnologia, aperfeiçoando sua atividade.

O bom humor é a tônica. Todos se apresentam serenos, alegres. Conseguem não trazer para o ambiente da recepção, à gente estranha, as preocupações com a arrecadação, os compromissos assumidos, problemas de saúde, certamente presentes no cotidiano da maioria.

Durante os encontros, no entremeio das perguntas, muitas outras informações interessantes foram registradas. “O queijo bom tem que ter consistência firme e fechada. Pequena ranhura, ou trinca, pode aparecer por problemas de transporte ou quando a peça está muito curada. Contudo, buraco redondo no queijo é produto da ação de coliformes fecais”. “Já tentamos usar luva, mas não deu certo, dificulta a manipulação”. “Prensagem pode até ser feita, mas deixou de ser artesanal legítimo”. Aqui em casa até as galinhas bebem soro, comentou um artesão, reforçando o velho ditado sobre a fartura trazida pela produção do queijo.

Pode-se verificar a interação existente também por caminhos alternativos, comparando dados da produção atual existente do queijo. Essa referência, embora, aproximada, ao destacar objetivamente a existência da atividade, condiciona, de mais ou menos, a presença econômica no lugar e, consequentemente, pelo menos do ponto de vista do materialismo-histórico, pode traduzir a maior ou menor influência sobre as demais interações sociais vigentes.

Cidades Produtores /

 

mil habitantes

kg de queijos /

 

habitante / ano

ton. de queijo /

 

produtor por ano

Araxá 4,8 14,0 2,92
Bambuí 6,6 25,3 3,83
Carmo do Paranaíba 21,3 53,3 2,51
Lagoa Formosa 33,0 64,7 1,96
Medeiros 124,9 464,6 3,72
Piumhi 1,7 5,2 3,06
Rio Paranaíba 39,4 87,5 2,22
São Roque 127,4 229,9 1,80
Vargem Bonita 92,5 166,4 1,80

Fonte: Emater e sites diversos

O quadro relaciona os principais dados definidores da atividade em cada um dos locais. Considerando somente esse retrato resumido que ele expõe, queijo é com Medeiros e São Roque de Minas. Ou seja, decorridos dois séculos, continuam figurando como os principais baluartes da sua produção. Essa constatação junta força aos achados das pesquisas, confirmando a mais forte presença do produto junto às populações dessas duas cidades. Bambuí é a campeã da produtividade, seguida de perto por Medeiros. A Emater e os produtores de São Roque e de Vargem Bonita devem conhecer a razão dos seus desempenhos tão baixos (os menores entre todas as onze analisadas) e saber se já foram tomadas medidas corretivas, se necessário. O capricho é tão maior assim?

Cruzeiro da Fortaleza, no Cerrado, destaca-se com a maior produção por habitante por ano (587) entre todos os 37 municípios da nossa região. Essa informação mostra que ela compõe, com São Roque e Medeiros, a trinca de forte presença da produção. O pessoal de lá parece também recender o produto, vivenciam, pelo menos assim diz a tradicional Festa do Queijo, já editada na 26ª versão. Bambuí também comemora faz tempo.

No Capítulo VII detalhei os dados da pesquisa em cada cidade. A tabela que segue adiante é um resumo das três primeiras perguntas, indicadoras da ligação da população local com o queijo. A coluna “Qtde” informa quantas pessoas foram entrevistadas em cada cidade e a coluna “% da Pop.” (percentual amostrado da população) mostra a representatividade da amostra. As três colunas seguintes apresentam quantas respostas foram apresentadas a cada uma das três primeiras perguntas (o mais importante na cidade segundo os moradores, o mesmo para os visitantes e quais os alimentos são mais destacados), nas quais figurou o queijo. Por exemplo, em Araxá, diante das duas primeiras indagações, ninguém o citou. Já na terceira, 18 pessoas (18,4% dos entrevistados) incluíram o queijo na resposta (como alimento mais importante da cidade).

Cidades Qtde. %   Perguntas  
     
Araxá 98 0,10 0 (0,0%) 0 (0,0%) 18 (18,4%)
Bambuí 42 0,18 1 (2,4%) 2 (4,8%) 22 (52,4%)
Carmo do Paranaíba 28 0,09 0 (0,0%) 0 (0,0%) 3 (10,7%)
Ibiá 15 0,06 0 (0,0%) 0 (0,0%) 2 (13,3%)
Lagoa Formosa 11 0,06 0 (0,0%) 0 (0,0%) 0 (0,0%)
Medeiros 21 0,61 1 (4,8%) 0 (0,0%) 14 (66,7%)
Piumhi 30 0,09 1 (3,3%) 5 (16,6%) 16 (53,3%)
Rio Paranaíba 17 0,14 1 (5,9%) 0 (0,0%) 18 (18,4%)
São Roque 8 0,16 0 (0,0%) 0 (0,0%) 8 (100,0%)
Tapira 11 0,20 0 (0,0%) 0 (0,0%) 2 (18,2%)
Vargem Bonita 7 0,32 0 (0,0%) 0 (0,0%) 3 (42,9%)
Total geral 288 0,12 4 (1,4%) 7 (2,4%) 88 (30,6%)

Fonte: pesquisa do autor

No quadro, como se vê, São Roque é a mais “antenada” — 100% das pessoas olham o queijo como alimento de referência. É seguida por Medeiros (66,7%), confirmando-se o esperado. As duas cidades continuam como principal polo de produção e identidade do queijo. Em seguida, aparecem Piumhi (53,3%), Bambuí (52,4%) e Vargem Bonita (42,9%), reforçando a região da Canastra como guardiã da identidade. Piumhi é a campeã em espontaneidade (20,0% das respostas diante da primeira e da segunda perguntas, não referidas a alimento).

O extremo oposto é formado por Lagoa Formosa, Rio Paranaíba, Carmo do Paranaíba e Ibiá, apresentando tênue ou nenhum vínculo com essa referência cultural. Araxá e Tapira coincidem na baixa adesão de 18%.

Arredondando a média total geral, um em cada três habitantes das 11 cidades considera o queijo como símbolo. Mas diante das duas primeiras perguntas, que não induzem as pessoas a pensar no queijo, a situação é bem desfavorável, se não lamentável. Somente 3,8% das pessoas, efetivamente, veem com alguma firmeza o queijo como patrimônio local. Confirma-se, mais uma vez, a tênue interação.

Em levantamento correlato em Belo Horizonte, entrevistei 47 pessoas nas ruas, bares, consultórios e amigos, estes, via e-mail. Para cada uma delas, perguntei se conheciam ou se já tinham ouvido falar sobre as cidades sob análise. Encontrei o seguinte:

Cidades Conheço Ouvi falar Não conheço
Araxá 63,8 34,1 2,1
Bambuí 21,3 63,8 14,9
Carmo do Paranaíba 17,0 46,8 36,2
Lagoa Formosa 6,4 27,6 66,0
Medeiros 6,4 36,2 57,4
Piumhi 29,8 57,4 12,8
Rio Paranaíba 2,1 31,9 66,0
São Roque 14,9 40,4 44,7
Tapira 2,1 34,1 63,8
Vargem Bonita 2,1 14,9 83,0

Fonte: pesquisa do autor

Os locais foram apresentados na ordem acima — na oportunidade do levantamento eu ainda não tinha incluído Ibiá na lista das cidades objeto de estudo. Sua posição nos resultados deve ser intermediária. São Roque foi citada no meio da lista para não induzir percepção inicial sobre queijo. O levantamento, sem definição de amostra e método de coleta, não guarda muito rigor científico. Foram escolhidos dois pontos principais de pesquisa: nas proximidades do Mercado Central e nos calçadões da etoile da Savassi, abrangendo, portanto, duas classes distintas de renda. Não entrevistei mulheres, de abordagem mais complicada no meio da rua. Sendo assim, talvez os resultados sejam até conservadores porque, supostamente, os homens são mais “viajados”. Se tivesse incluído mulheres, os percentuais para “Conheço” talvez tivessem sido menores.

Na medida geral, apenas 16,6% das pessoas conhecem as cidades citadas, 38,7% já ouviram falar e 44,7% ignoram ou nunca tiveram notícia delas. Infelizmente, não disponho de dados equivalentes para outras regiões de Minas, mas não me parece de todo ruim. Os percentuais para “Conheço” são ligeiramente superiores na citada região de lojas “A”, como era de se esperar.

Araxá é ponto bem fora da curva. Foge do padrão geral. Excluída da contagem, as médias para as 9 cidades restantes se modificam um pouco (11,3%, 39,2% e 49,5% respectivamente). Elas precisam empreender esforços de marketing na capital para aumentar a sua presença no conhecimento médio da população. O investimento deve ser maior um pouco para Vargem Bonita, Medeiros, Tapira, Rio Paranaíba e Lagoa Formosa. A primeira é a campeã quanto ao desconhecimento. Com o incremento do turismo, Casca d’Anta há de diminuir esse isolamento.

Deste mesmo levantamento construí também o quadro a seguir. Ele apresenta as referências citadas pelas pessoas quando perguntadas sobre o que cada cidade lembra, oferece de importante — os números entre parênteses indicam quantas citações ocorreram para cada “atração”.

Cidades Referências
Araxá Grande Hotel/Termas/Águas (32), Beja (4), Doces (3), Fosfato (2), Matriz, Requeijão e Mercado (1)
Bambuí Expo (3), Calcário (2), Café, Chagas e Matriz (1)
Carmo do Paranaíba Queijo (2), Agricultura (2), Café e Nascente (1)
Lagoa Formosa (Não foram feitas indicações)
Medeiros (Não foram feitas indicações)
Piumhi Nascente (2), Praça com coqueiros, Cristo e Furnas (1)
Rio Paranaíba Sinval Boaventura (1)
São Roque Nascente (6), Queijo (3), Serra (1)
Tapira Fosfertil (1)
Vargem Bonita Casca d’Anta (1)

Fonte: pesquisa do autor

Coerentemente com o quadro anterior, Araxá se destaca nas referências conhecidas, abocanhando 68% das memorizações. Em segundo lugar, bem atrás, vem Bambuí, com 10,5%. Medeiros, Lagoa Formosa, Tapira, Vargem Bonita e Rio Paranaíba frequentam a ponta com fraca identificação.

Talvez o mais importante dessa planilha seja mostrar que para toda a importante região produtora o queijo aparece em apenas 6,6% das citações e somente em duas cidades: São Roque e Carmo do Paranaíba. Está fraco, muito débil, deveras. Sugere necessidade de mais propaganda. As demais cidades devem se informar sobre a fórmula utilizada por Carmo do Paranaíba para mostrar tão boa presença, mesmo não sendo uma das mais famosas quanto ao queijo. Essas indicações são maiores comparadas às percepções espontâneas autóctones (já mostrei). Quer dizer, na média geral o pessoal de fora lembra mais o queijo quando referido a essas cidades que seus próprios habitantes. Interessante.

Mudemos agora um pouco a abordagem. Efetuei outra pesquisa, no conforto de casa, via internet, sem sol e sem chuva. Valendo-me de conhecido site de busca, “guglei” os trinta primeiros links apresentados para cada uma das cidades focadas no estudo. O objetivo foi verificar existência de qualquer tipo de referência ao queijo de leite cru nesses espaços etéreos. Não deixa de ser uma via indireta de medir qual a interação entre a cidade e o referido produto, pois ela estaria retratada na importância dada a ele por aqueles que tiveram o cuidado de lançar na rede seus escritos sobre cada lugar, independente da motivação (sites oficiais de prefeituras, câmaras municipais, etc., assim também de festivais e feiras, propaganda e marketing de todos os tipos, principalmente os voltados para o turismo, portais noticiosos, trabalhos diversos, inclusive acadêmicos sobre cada localidade). A investigação foi feita durante o mês de dezembro de 2010, correspondendo, portanto, à situação naquela época (certamente vem mudando constantemente). Vejamos quais foram os resultados.

De Araxá citam cremes, sabonetes, mineração (muita mineração), artesanato, doces, café do Cerrado, turismo (muito turismo), batata inglesa, moderna estufa hidropônica, feijão, mandioca, voo livre, maracujá, folias e baladas. Em meio a tão incrível diversificação, apenas dois sites citam o queijo, mas em frases modestas, uma delas em ufanismo exagerado, considerando-o o melhor de Minas. Entre essas trinta primeiras páginas selecionadas se apresentam o Clube da Cozinha e o Festival Internacional da Cultura e Gastronomia. Embora se dediquem ao tema alimentação, especificamente, não citam nosso queijo (aí já levaram para o lado pessoal, uma ofensa, perdoem-me os meus amigos que participam da iniciativa). Nos sites desses eventos, tampouco consegui encontrar receitas com queijo entre os ingredientes. Pode-se assistir a um vídeo no qual o maître, com batata na boca em acento francês, como convém, esnobando pressuposta superioridade, apresenta seu cardápio sofisticado, Terrine de foie gras, robalo no vapor com caviar e cassoulet a provençal, tudo estranho à nossa cultura. Ao final, sobremesa, parecia goiabada, vem queijo… nada… Outros três links registram a presença da seleção brasileira, concentrada para a Copa do Mundo de 1958, falam de Dona Beja banhando-se nas águas, utilizadas muito tempo depois por Getúlio Vargas para se curar de gastrite, e contam vantagem para o Grande Hotel recebendo todos os presidentes da República desde sua inauguração, em 1944. Essa regra já incorporou exceções.

Os três dáblios bambuienses falam de café, arroz, milho e soja, usina de etanol e açúcar, Carnaval (muito Carnaval), Axé, Congado, expo e algo sobre pecuária e produção de leite. Passou perto, mas nada diz sobre o queijo. Um site enciclopédico informa ser “reconhecida internacionalmente pelo fato de terem se desenvolvido na cidade estudos aprofundando o conhecimento científico da moléstia tripanossomíase, vulgarmente conhecida como Doença de Chagas”. Uma formidável contribuição histórica, mas pagando bom preço por isso. Encontrei também um estudo feito ali, concluindo pelo maior índice de mortalidade entre os idosos que dormiam mais. Há também uma avaliação dos serviços odontológicos prestados aos moradores. Assim, pelo menos por esta amostragem, Bambuí aparece em muitos temas de saúde. Será por que lá comem menos queijo?

Dos trinta sites consultados sobre Carmo do Paranaíba, apenas dois registram a importância do queijo, e um é papel-carbono do outro. É pouco, mas menos mal. Nesta navegação pelos mares plasmados sobre Carmo, encontrei notas interessantes, distinguindo a cidade. Conta com três times de futebol de melhor porte — coisa de se admirar —, e com duas igrejas bonitas — a matriz e a de São Francisco, já comentei. Uma notícia exalta o forte impulso econômico experimentado com as cooperativas. Confirma a importância desse tipo de associação. No mais, café, Festa do Peão e prisão de falso médico.

Ibiá tem feira livre, fanfarras (isso é bom), festival de dança (também muito bom), Nestlé e estação ferroviária. Plantam café, cana, abacaxi e soja. Um lavrador foi morto por javali e prenderam três ladrões de reses (far west). Tem gado (muito gado), quase 6 cabeças por habitante. Foi o maior produtor de leite do país em 2005, segundo uma única notícia, isolada, perdida. Condição importante. Deveria ser mais festejada, exaltada. Muitas fotos da cidade e da linda Cachoeira da Argenita. Queijo não é citado uma única vez. Tem base?

Lagoa Formosa (vou me mudar para lá) exibe Carnaval, Festa do Feijão, Festival de Pratos Finos e concursos públicos. Mas queijo nada. Coisa inesperada apareceu foi num site descrevendo o distrito de Monjolinho de Minas, de autoria de Maria Correa de Santana, cientista social. Impressionante. Uma povoação ocupando singelos doze quarteirões é objeto de uma completa descrição, segundo texto cuidadoso, de várias páginas, não encontrável em nenhuma das descrições sobre as cidades disponíveis para internautas. Parabéns para a competente escritora.

Depois, embarcando novamente no imenso navio virtual, e aportando em Medeiros, encontrei o site da Prefeitura Municipal, muito bem-feito, bonito. No item história, discorre sobre a formação da cidade, aspectos culturais e tantas coisas mais. Um trecho narra: “A primeira loja da cidade era de propriedade do Sr. Zé Turco, vendia-se Óleo de Rícino, sorrizal (sic), azeite caseiro, aspirina, sal de gado…”. Um site vaga mais detidamente também sobre sua história, sua cultura, as muitas festas na roça, com diversos tipos de comida, destacando o arroz doce e o doce de leite. Não cita o queijo. Passando por outra porta, aí sim encontrei um item específico sobre o “redondo”, sua fabricação e o compromisso com os resultados. Ainda bem, mas é muito pouco, somente um em trinta.

Continuando o passeio na transcendência “www”, agora em Piumhi, três sites pelo menos dizem que além de pecuária, comércio e serviços a economia apoia-se na produção agrícola do café, milho e feijão. Um portal mostra estabelecimentos comerciais de diversos setores, os “peg-pags” com “variedades de mercadorias, inclusive o saboroso queijo da Canastra”. Melhor se não tivesse dito, tão pouca coisa, acessória — Poncio Pilatos no Credo —, a cidade auferindo tanta vantagem econômica com a comercialização, hoje é um dos principais entrepostos. As descrições não guardam correspondência entre a presença na economia e o divulgado para fora, via internet. Assim parece. Ah! Tem Expôpiumhi.

De Rio Paranaíba dizem ser forte mesmo é a agricultura. Existem no município 180 pivôs! As referências tratam de batata, cebola, alho, cenoura, café, milho e soja. Nem ao menos citam o leite. Importantes também são o campus da UFV e o Carnaval. Foi a única cidade entre as consultadas contando com um site informativo do tempo por lá. Há muitos filmes no YouTube, um deles mostrando paisagens maravilhosas da região. Existem pontos turísticos de interesse, incluindo o belvedere dividindo as duas águas, do Paranaíba e do São Francisco. O queijo não comparece em nenhuma das 30 apresentações consultadas. Lamentável.

São Roque cita o produto em minguados dois portais, repetindo o mesmo texto, também iguais: “A vida econômica do município se baseia na produção do queijo Canastra há mais de um século. Uma economia semiclandestina, já que a produção é artesanal e ninguém paga imposto. Noventa por cento do queijo é levado para a região metropolitana de São Paulo e distribuído através de pequenos comerciantes”. Olhada a proporcionalidade com sua importância, deixa a desejar. É quase nada para o berço que acalentou o famoso queijo — ou foi o queijo que embalou São Roque? O turismo é importante, merece muitos sites, contudo, em reverência à sua história e ao nome alçado pelo queijo, deveria ocupar lugar de destaque em qualquer apresentação dessa cidade. É como descrever o Rio de Janeiro sem incluir o Cristo Redentor, Carnaval e samba. Uma das fontes consultadas, isso lá é verdade, comenta: “Além de todas as belezas naturais que a região do Baú nos reserva, o povo mineiro é um capítulo à parte. Gente da terra, e extremamente hospitaleira. Sempre convidam para entrar e tomar um “cafezim” com “queijim”. Gente extrovertida, conquistando pelo jeito simples e carinhoso de ser”. Mas é pouca coisa, coadjuvante. São Roque, sendo a terra natal do queijo (ou São Roque é que é dádiva do queijo?), e figurando ainda como a referência máxima da sua produção, deve ser também o centro da recuperação da sua majestade. Para tanto, ao lado da união de forças na defesa da história artesanal local, é preciso, é indispensável, desenvolver projetos de marketing. Todo mundo reconhece a importância da divulgação. E a Web, essa imensa malha virtual, é um dos veículos.

Nos “ambientes www” tapirenses a conversa flui sobre sua pecuária, mineração (bota mineração nisso), a boa produção de leite e o rico fosfato. Uma referência, de triste memória, trata da operação Passárgada, nas irregularidades na gestão municipal. Tem Expotap, rodeio, cantoria, dança, mas queijo não. Já o espaço cultural do site da Prefeitura Municipal cita o produto, acompanhado de linda foto de peças marcando excelência. O texto alusivo é adequado: “A produção do queijo artesanal serve muito bem para ilustrar a agroindústria, o que o tapirense é especialista em produzir. Tudo isso vem desde a colonização e, de lá para cá, a tecnologia acrescentou novidades. Mas o essencial permaneceu: o amor e o carinho com que cada peça é produzida”. Uma das mais modestas entre as cidades irmãs é exemplo para as demais. Mostra caminhos. Enviei e-mail para o prefeito, parabenizando-o.

Nos “reflexos” de Vargem Bonita trazidos para a tela há um diagnóstico municipal bem-feito, o mais completo entre os encontrados nessa navegação de longo curso. Segundo o referido estudo, o município se destaca na criação de gado, de corte e de leite. Em seguida, informa: “Muitos pecuaristas têm mostrado empenho em relação à produção de queijos, em particular do tipo Canastra, feito com leite cru, tradicional na região e com longa presença no mercado. No entanto, muitos são os desafios a enfrentar, uma vez que tal atividade é praticada fora dos adequados padrões de controle sanitário do rebanho e microbiológicos, exigidos durante a produção. Essa situação não impede a comercialização do citado queijo, mas inibe sua expansão e mantém baixos os preços. Existe a ideia de buscar a certificação do produto da região, com a obtenção do devido selo do SIF. Para tanto, a Cooperativa de Crédito de São Roque de Minas – Saromcredi vem subsidiando um estudo piloto, em convênio com a Epamig”.51 O diagnóstico cita ainda “o potencial para incremento e melhor aproveitamento da produção artesanal, inclusive do famoso queijo” como uma das vantagens competitivas do lugar. Ao final, na lista de recomendações, sugere “apoiar a criação de uma associação ou cooperativa de produtores de queijo Canastra, com o objetivo de união e fortalecimento da atividade, bem como de reforço da marca, conhecida tradicionalmente no mercado, melhorando as condições de fabricação e, em consequência, a qualidade do produto”. Uns sites citam os esportes radicais, o processo contra um ex-prefeito acusado de crime ambiental e o potencial do turismo, o novo filão da cidade, depois de extinto o garimpo. Resumindo, somente uma citação do queijo é pouco para a cidade. Outro www, também igualmente bem elaborado, indica 71 ações em favor

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51 SIF: Serviço de Inspeção Federal – órgão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Brasil. Epamig: Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais.

do desenvolvimento sustentável da cidade. Entre estas, duas se referem à promoção do queijo. Trata-se de excelente análise sobre implantação de Agenda 21 local em São Roque de Minas e Vargem Bonita.

Resumindo, dos 330 sites sobre a região não somam os dedos das mãos aqueles contendo alusão ao queijo. Três por cento, muitíssimo pouco. Quase nada. Por esta constatação, o produto está longe de ocupar representatividade mínima. Convoco, pois, todos os prefeitos, secretários, empresários e instituições desses municípios para corrigirem essa lacuna. Não deixem por menos, cada prefeitura crie um site com o título “O queijo da minha terra”. Ele conteria os dados principais sobre a história, as características, a produção e a distribuição, lista dos artesãos, receitas, presença da cooperativa, aspectos técnicos, recomendações, cuidados, “causos”, curiosidades e demais informações de interesse.

Observação: no “Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais”, de Waldemar Barbosa, encontrei a referência aos Voluntários da Pátria, em número de 97, que teriam saído da região de Araxá para lutar na Guerra do Paraguai (leia-se, da Inglaterra).52 Está sumido num compêndio, quase ninguém sabe disso. É o retrato de como tratamos a nossa história.

Estudei também os brasões das cidades, com o mesmo objetivo de verificar a existência de referências ao “redondo” neste símbolo oficial de cada lugar.

No araxaense figura gado, mas queijo não. Nesse caso, cabe uma penitência minha. Na festa do centenário da cidade em 1965, participei dos preparativos do desfile cívico comemorativo montando o carro alegórico da empresa de meu pai. Identifiquei na história e na vida da terra: ocupação indígena, sol, água, gado, Árvore dos Enforcados, milho e café. Meu tio Annibal De Blasiis, profissional de marketing, aquarelista de mão cheia, com curso superior de Belas Artes, naquela época morava na cidade, aposentado, fugido do corre-corre da pauliceia. Pedi a ele para compor o brasão com esses elementos, pintando-o num painel de madeira. Consegui também a insígnia em latim — “Assim todos se lembrem”. Posteriormente, através de lei municipal, a alegoria foi oficializada. Na época, eu não atinava bem para a questão, não adquirira ainda a consciência histórica necessária para incluir o queijo no símbolo local. Ou também porque não devia estar tão destacado assim na nossa formação e ainda não está.

No selo de Bambuí comparecem seis elementos constitutivos: história de armas e água, literatura, química, gado, cruz de Cristo e a divisa “A união faz a força”. Não faz, portanto, alusão direta ao queijo. A lei municipal institucionalizando os brasões é a melhor fonte para se encontrar as explicações dos significados de cada uma das chamadas. Tentei na Câmara Municipal de lá, mas não encontrei.

O escudo de Carmo, da terra somente inclui a soja e o café no suporte. Não faz referência à pecuária e, muito menos, ao leite ou ao queijo. No mais, castelos (muitos castelos) e flor de Liz. Encontrei uma descrição detalhada, fazendo uso da terminologia da heráldica (blau, jaude, coroa mural), nos trinques, mas sem indicação dos significados. A concha normalmente representa peregrinação ou

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52 BARBOSA, 1971.

reporta a Santo Agostinho na limitação da mente humana para conhecer Deus. Agora, qual a razão das seis dessas vieiras nas armas da cidade isso lá é coisa de se investigar para saber melhor.

Ibiá tem milho, café, gado, mineração e chaminé. Igualmente, referência indireta ao leite e, na pressuposição de segundo nível, o queijo. Portanto, não tem.

O de Lagoa Formosa é rebuscado, coroa mural de seis torres, coração flamejante representando o “acendrado amor dos filhos à cidade”, rosas heráldicas evocando a beleza da terra e flores de Liz da padroeira, Nossa Senhora da Piedade. No rodapé, o aguado faz alusão à repousante lagoa local. O escudo inclui também hastes de feijão. Não exibe gado, muitos menos queijo.

Melhor sorte encontrei em Medeiros, na simpática atenção do presidente da Câmara, Sr. Pedro Domingos, de quem consegui o texto explicativo oficial. O bonito brasão é composto de torres, em referência à dominação portuguesa, escudo, com a Matriz de São José, a cabeça de gado “representando a riqueza pecuária leiteira e de corte do município” e o coreto da praça. Ramos de café e milho ladeiam o escudo. Por baixo, aparece a faixa com a inscrição “Medeiros” e duas datas — da elevação à condição de vila e de cidade. Não inclui o queijo.

O de Piumhi é composto de igreja sobre a colina (horizonte característico da cidade), gado, milho e mineração. Queijo só indiretamente. O fundo negro do brasão chama a atenção. A primeira impressão é um tanto lúgubre, mas deve ser entendido como referência positiva. A explicação oficial contida na lei deve clarear melhor.

O emblema de Rio Paranaíba talvez seja o mais enfeitado. As referências são o rio, o sol e a montanha, a irrigação, destacando a importância da agricultura, o gado (menos mal) e muitas frutas e legumes — uma cornucópia em profusão sugerindo terra prometida. Duas ramas vistosas e carregadas de café emolduram o escudo. O queijo não é, pois, convocado diretamente.

São Roque caprichou também. Tem torreão, cocar indígena, cruz de Cristo, estrela e espada (maçons?), triângulo vermelho da bandeira mineira, e, no centro do símbolo, uma cachoeira. Em cada lado, um mosquete ornado com a cruz lusitana, reverenciando as entradas e bandeiras em 1673. Na parte de baixo, figuram rio e montanhas. Não colocaram o queijo.

Tapira desenhou um arranjo um tanto inusitado. Destaca a mineração, um jarro cheio de um líquido e um copo (levando a crer tratar-se de água) e o gado. Dois galhos da rubiácea contornando as laterais e duas pequenas canoilas de milho ficam embaixo, simetricamente dispostas, em composição, heterodoxa, fora do padrão normal (somente dois ramos, um de cada lado). Estariam representando proporcionalidade no produto interno? O emblema chama a atenção por não trazer o característico formato de escudo, colocando as referências dentro de uma espécie de gota invertida. O queijo não é explicitado.

O brasão vargeano é emoldurado pelo ramo do café e pela vara de milho. O desenho principal, no singular formato de “U”, engloba o diamante, o boi, o arroz e o São Francisco, com a Canastra ao fundo. Sem queijo.

Ficou assim. Em nenhum brasão ou bandeira dos onze municípios é encontrada referência direta ao queijo. O gado aparece em sete das armas e o leite em apenas uma, mas não há espaço específico para o nosso produto tradicional, confirmando distância entre a sua presença na atividade econômica da região e o reconhecimento oficial da sua importância.

Vejamos agora qual a presença do queijo na literatura regional. Em ingente esforço de leitura — as obras estão listadas ao final deste livro, na galeria de referências bibliográficas —, perscrutei a produção contemporânea dos filhos deste nosso rincão. Lendo tudo com atenção, e percorrendo detidamente também as entrelinhas, visei dois objetivos principais: apreender traços culturais da nossa gente e verificar qual a proximidade dos escritos com o meio rural e o nosso queijo. Foi uma prazerosa campanha, mas, infelizmente, ao final, ela autorizou-me a levantar a suspeita, ou quase certeza, de que o nosso queijo não é bom coadjuvante dos enredos de ficção, ou dos registros sobre as histórias das cidades do Sertão dos Araxás, diferentemente de outras regiões onde a pena se ocupa da descrição de produtos conterrâneos. Vejamos, vamos lá.

Discorrendo com competência e em muito boa conta sobre nossos lugares e nossa gente, Mário Palmério, nascido no Sertão da Farinha Podre, não se preocupou em estabelecer vínculos com o queijo. “Vila dos Confins” e “Chapadão do Bugre”, as magistrais e consagradas obras do laureado uberabense, regionais de cabo a rabo, descrevem nossas paisagens, nossos costumes e nosso povo. Suas páginas estão respingadas de aguardente, à vontade, abrideira e saideira, mas não citam o ofício de produção ou o uso do queijo. Gado tem um “mucado”, pra muito, mas leite, quase nada. Num fundo de página aparece uma tal coalhada de queijo.

Autran Dourado, escritor de alto coturno, é patureba, portanto, filho do Cerrado, do Salitre. “Tempo de amar”, “Uma vida em segredo”, “Ópera dos mortos”, “Sinos da agonia” e “Lucas Procópio”, todos têm um pé no curral, Mamotes, Fundão, Pedra Menina, Ribeirinha e Encantado. Os personagens comem melado com farinha e manga (no paiol é mais gostoso), catam gabiroba, encostam-se às porteiras, fabricam marmelada, emocionam-se junto aos caixões com anjinhos e trilham muitos destinos marcados. O mundo de Biela é a cozinha, na profusão de doces, biscoitos, preparando o feijão e o torresmo. Mas nadinha de queijo. Em “Sinos da agonia” principalmente, a pinga encharca várias páginas, uma delas em inversão de preconceito, interessante. Mas também sem queijo.

O bonito livro de Lucy Costa e Fernando Pinto, “Bambuí… Nossa Terra, Nossa Gente”, contém 253 páginas de texto e quase outro tanto ocupado por fotos. Nele são encontradas duas minúsculas referências: somente o vocábulo solto, perdido em meio a um leilão e um registro já esmaecido de uma fábrica antiga, desativada, portanto, não artesanal. O livro se concentra mais nas pessoas, é verdade, mas mesmo assim é de se estranhar não tenha apresentado relação com o produto. Perfilam advogados, padres, médicos, tanta gente, sem qualquer relação com o queijo. Nem ao menos a citação de uma receita, a chamada de uma tradição, um mote, qualquer coisa. Estão estampadas fotos de gado, sadio, mas nada fala sobre o destino dado ao leite produzido.

Flávio José de Almeida discorre sobre a história de Patrocínio em interessante e extenso levantamento. O queijo aparece acidentalmente, em duas minguadas linhas. É pouco para um livro contando tantos casos, se ocupando da economia e do comércio, mesmo se dedicando mais às instituições, legislação e arrecadação do município e se restrinja ao exíguo tempo de uma década. Impressiona bem a riqueza de detalhes compilados pelo autor sobre as interações e a organização da cidade, citando nomes em profusão. Os demais lugares devem tentar dispor de igual contribuição. Tenho conhecimento de atividade profícua e útil da Fundação Calmon Barreto em Araxá reunindo formidável acervo de diversos registros.

O importante estudo de Maria de Fátima Almeida também sobre Patrocínio, mais de meio milheiro de páginas, cita somente três vezes o queijo, duas delas en passant e uma em rápidas duas linhas, onde exalta a excelência do produto local. Dessa leitura se infere a fraca presença da pecuária em geral e em especial da feitura do queijo.

Tufy Habib exalta de forma pungente a sua terra. São escritos de belíssima lavratura, volteando no tema central da saudade, de forma suave, inebriada, bonita, maviosos madrigais, raramente se vê. O queijo não inspirou sua verve.

Cônego Ivo, também de São Roque, através de suas graciosas linhas focou mais o plano da fé e dos mistérios. Não citou o queijo.

Trezentas e cinquenta páginas lotadas de nomes, histórias e merecidas reverências formam o livro de José Vargas sobre Rio Paranaíba. Um trabalho invejável. Cita três vezes o queijo. Duas rapidamente, nomeando cidadãos que trabalharam no ramo, e no finalzinho, muito grata novidade, em uma poesia de Lino Aguiar. Exalta o “povo desconfiado, como o queijo, nunca quis ser vedete, porém nos alimentou, nos educou” e saudando a certificação, “para o Queijo Minas sair do anonimato, para aparecer com nome e endereço”, libertando-se da condição anterior, de “ficar calado, a conquistar o nosso pão de cada dia sem fazer alarde … ao invés do queijo suíço éramos o queijo sumiço”. É a mais encorpada alusão sobre o produto encontrada nos livros lidos.

Geralda Pereira da Silva, em sua pequena grande ode a São João da Serra Negra, cita três vezes a presença do queijo na vida da comunidade, na maior densidade em referências que encontrei. Seus registros detêm, assim, o título de principal homenagem à nossa artesania. Mas se passa na terra de cegos — quem tem um olho é rei. A capa do livro traz uma foto da vila. Dá vontade de mudar para lá.

Dr. José Pessoa, em “Cruzes da estrada”, nos apresenta inusitados e interessantes relatos, focados nos crimes ocorridos em São Gotardo na primeira metade do século XX. O livro mostra muitos costumes vigentes, inclusive o do veredicto de inocente para a maioria dos autores dos crimes — a impunidade não é invenção recente, se vê. Estabelece também oportuno arrazoado sobre a Folia de Reis e razões da sua extinção, nessa marcha de mudanças e perdas de manifestações culturais. A maioria dos “causos” envolve fazendas, mas somente uma vez foi citado o queijo. Mesma coisa se deu em “São Gotardo, sua gente e sua evolução”, uma longa descrição de sua autoria sobre a história local. Discorre com propriedade sobre as origens do lugar, os costumes, pecuária, carne, couro, feijão, café (muito café), rapadura, milho, toucinho, leite (duas vezes), mas não inclui o queijo. Na condição de profissional da saúde, o autor dedica a segunda metade do livro de 380 páginas à história da medicina lá no Córrego da Confusão (um dos nomes ancestrais do lugar). Apresenta dezenas de casos de atendimento médico à gente do meio rural, mas não diz se pelo menos recebeu um queijo como pagamento pelos serviços prestados.

O Prof. Célio Fonseca, discorrendo sobre Lagoa Dourada, cita apenas duas vezes o nosso produto artesanal, também de forma complementar, como parte da lista de produção local ou na matula de comitiva de carro de boi. Mais para o final do livro detalha a agropecuária da terra, mas não cita o queijo, portanto, ele não está presente no “canto da alma”.

Em Araxá, Vilma Duarte, de incontável prole de escritos, privilegiando a poesia, cita duas vezes o saboroso filho da terra, em “Mineirice”, com goiabada cascão e bolo de fubá. Podia ser mais. Sua aplaudida verve literária descreveria na conta devida esse nosso patrimônio. Na amizade consolidada desde os tempos dos bancos escolares, posso pedir para ela dedicar algo especial. Sempre com os pés no nosso chão, “correndo descalça pisando o verdume da pradaria”, certa feita até atolados em estrume de vaca no curral, discorre sobre doces, e tanto beijo. Seria tão bom ver a sua destreza graciosa fazer rimá-los com queijo.

A historiadora Glaura Lima nos presenteou com um muito bem-feito resumo sobre a história da estância hidromineral. A exiguidade das 100 páginas não permitiu maiores aprofundamentos. Por isso, a atividade rural aparece de forma acessória e o queijo é citado uma única vez em meio à lista de produtos da terra. Volto a insistir na importância econômica representada pela comercialização do queijo na cidade nas primeiras décadas do século passado. Precisamos reconduzir essa interação ao seu merecido lugar.

Maria Santos Teixeira escreveu a “Cantiga do carro”, cujas páginas nos brinda com uma versão enfestada da “forza del destino” despencada sobre a cabocla Teresa, envolvendo assassinato acidental, mas invertido — o sogro é que mata o genro. Foi nesse romance que encontrei a mais apaixonante presença do queijo.

Ele aparece logo nas primeiras cenas do enredo, partilhando os tempos serenos de venturas e esperanças no sítio. Depois, durante todo o meio da trama, enquanto são trilhados todos os desencontros, e são vividos a loucura e o desatino urbanos, ele não participa, como se sua índole não se ajustasse a tantas agruras. Mas, ao final, ele reaparece, no abnegado exercício do perdão e na pujança revitalizadora da renúncia, no retorno ao campo, na recomposição da vida, aplacados todos os sofrimentos, cicatrizadas todas as feridas, coadjuvando final feliz. Agradou-me ver nesse encadeamento de sentimentos, nesse roteiro de dois planos, uma parábola em homenagem ao nosso queijo.

Da mesma autora é “O rouxinol”, traçando biografias da nossa gente. Uma intrincada história das irmãs gêmeas, com fecho em claustro e doação, pode ser desdobrada em um livro à parte. Mais para o final, uma poesia relata as atividades na Fazenda das Amoras e não inclui a fartura do queijo. Fiquei indagando: lá não se davam a esse mister? Cismei nessa dúvida até que li o seu “Retalhos que o tempo deixou”. Nele, contando “causos” de várias propriedades no entorno, anota queijeiras e queijos. Infelizmente, de forma passageira, acidental, sem detença.

“Araticum”, de Calmon Barreto, é um bem apresentado conjunto de histórias, a maioria delas rurais, e verídicas, segundo o prefácio. O palco é o nosso sertão. De forma rápida, comenta a feitura do queijo nas fazendas, ou a presença nos embornais, compondo a munição de boca dos boiadeiros. Menos mal.

O importante trabalho de Mário Lara, “Nos confins do Sertão da Farinha Podre”, em documentada exposição arregimenta copiosas informações sobre a nossa região e mais especificamente sobre a Fazenda São Mateus, em Ibiá. Parabéns! A menos que eu tenha me distraído e deixado escapar citação, nesse seu livro o queijo comparece apenas uma vez, na página 294, onde a cronologia já alcança 1880. Nas páginas 65 e 249, cita muitos produtos da época (milho, arroz, cana, mandioca, porco e até 20 barris de aguardente) e o queijo Araxá não comparece, certamente porque só veio se fazer mais presente ao final do Império.

Muitos bons escritores se ocuparam da Dona Beja e se empenharam na exaltação ao famoso Grande Hotel e Termas, hoje uma das sete maravilhas de Minas, mas não há justa alusão às delícias da gostosa iguaria.

E foi essa a minha caminhada pelas páginas dos nossos escritores regionais. Mário Prata, nascido uberabense, foi criado no interior de São Paulo. Afonso Arinos de Melo Franco, paracatuense, entre várias obras, doou-nos “Pelo sertão” e “Os jagunços”, certamente regionais. Considerei-os fora da área perquirida e, na premência do tempo, não foi desta vez que li esses autores, não obstante as muitas referências louvandeiras.

Montei, assim penso, uma amostragem suficiente para entender que a produção escrita autóctone, telúrica, mesmo vazada em autêntico regionalismo, não destaca referências sobre o nosso queijo. Não se trata de um “pito” — quem sou eu, longe disso. Melhor tomar como provocação para as próximas investidas, tanto dos renomados, da velha guarda, quanto para a nova geração de escritores. Até lá me alegro vaidosamente diante da possibilidade deste meu livro emplacar o título de mais extenso trabalho específico sobre o tema, em língua portuguesa pelo menos.

Vários desses autores, em especial Mário Palmério e Autran Dourado, citam cachaça e fumo de rolo. Esses dois patrimônios culturais de natureza imaterial estão assim tão mais presentes que o queijo em nossa construção e vivência culturais, para justificar esse maior chamamento nos romances? Uma boa pinguinha e um cigarro de palha ensejam mais inspiração literária? Eles propiciam melhores estratégias simbólicas, induzem mais facilmente a ficção? Apontam para melhores possibilidades estéticas? Parece que sim, a julgar, inclusive, pelas dezenas de sinônimos criados para a “branquinha” e a profusão de nomes, aos milhares, na criatividade dos rótulos das garrafas. Alguns textos citam também o truco, jogo de cartas tão bem encaixado à índole alterosa, no assuntado, na desconfiança, na conversa mole, matreira. Certamente, deve ser mais fácil montar literatura em seu derredor, um rico e imenso espaço de expressões, metáforas, alegorias, estórias e personagens. É solo fértil para a pena de um hábil escritor. Tudo bem, mas será o nosso queijo assim tão simples, tão humilde, impotente para sugerir enredos ou participar de alguma trama?

Em nosso cancioneiro popular não consegue mesmo. Muitas letras da MPB sorvem a branquinha ou puxam baforadas, mas exaltando o queijo não consegui encontrar, assim, numa rápida passada — podem até existir ocorrências, mas bem aquém daquelas duas citadas forças da mineiridade.

Parece que essa insuficiência não se dá somente no queijo. Frieiro cita Dante Costa para que a nossa literatura, de uma maneira geral, “é pobre de descrições de grandes pratos, ou de almoços e de festas de mesas”, confirmando o que ele considera como “indiferença anímica dos brasileiros pela alimentação”.53 Mesmo entre autores naturalistas, são raras as referências porque é rara a presença na vida mediana do povo.

Em publicações diversas, fora da criação literária, nosso personagem não encontra melhor sorte para desempenhar papéis a altura de seu curriculum.

O “Lugar de memória” editado pela Fundação Calmon Barreto, apresenta 61 resumos biográficos, 10 entre esses ilustres cidadãos araxaenses ligados ao meio rural. Não cita a produção do queijo em meio a muitas referências à criação de gado, empreendedorismo, pioneirismos e coisas assim. Da mesma instituição há um interessante registro de 48 páginas sobre tradição rural nas redondezas, detalhando dezesseis propriedades antigas. Em quatro delas aparece rapidamente a produção de queijo. Muito pouco. Um desconto: os registros cuidam mais dos aspectos arquitetônicos das sedes das fazendas.

Nas livrarias, nas estantes especializadas em culinária, a propósito bastante profícuas e concorridas, a regra geral é aproximadamente a mesma.

O livro “Terra de Minas” detalha uma centena de receitas. O queijo comparece acessoriamente em cinco delas, duas especificando que seja mineiro e três recomendando outras procedências. É pouco, é suficiente? Seguramente, não se considerarmos o título dado ao trabalho. E mais: se há espaço para Cointreau… Textos bem escritos, falam da nossa cultura, mas sem queijo.

Entre as 100 receitas de petiscos apresentadas no “Comida di Buteco”, doze delas incluem queijo na composição. Mas a maioria é catupiry, cremoso, ou parmesão ou provolone. Somente em dois casos aparece o nosso artesanal. Uma miséria. Além disso, os pratos sugeridos são sofisticados, de elaboração complicada, deixando dúvidas se é mesmo tira-gosto e, menos ainda, se há preocupação de garantir identidade nossa, mineira. Em um deles a desanimadora lista de ingredientes quase inviabiliza o preparo. Quem lê desiste de fazer. Das 97 receitas do festival “Comida di Buteco”, dezenove levam queijo, mas somente duas exigem o nosso, de Minas, sem dizer qual é, e apenas uma recomenda o Canastra. O resto é catupiry, provolone e gorgonzola.

O caprichado “100 classic and creative recipes” tenta levar algo do Brasil lá para as “estranjas”, mas apronta confusão ao tratar do queijo Minas apresentando-o como branco e fresco, e sabor entre ricota, mozarela e feta (grego). E também faz concessões pra estrangeiro nenhum botar defeito: o pé de moleque é preparado com mel e xarope de milho, e o pão de queijo é feito na batedeira, com parmesão ou pecorino romano.

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53 FRIEIRO, Eduardo. Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. São Paulo: USP, 1982.

Por seu turno, os encartes especializados em turismo raramente dedicam espaço para o queijo. Por exemplo, o Guia anexo à edição de 11 e 12 de dezembro de 2010 do jornal “O Tempo” é dedicado às “Belezas que só Minas tem”. Inclui comidas típicas e artesanato, mas o “redondo” aparece só de relance, acanhado, reduzido a um vocábulo somente.

Quanto a dísticos, divisas, emblemas ou cognomes identificando nossas urbes, somente para Lagoa Formosa encontrei “Cidade das Rosas”. Existem traduções dos nomes indígenas de várias delas, já citei. Nenhuma delas inclui o queijo.

Poderíamos pesquisar também na pintura. Nas aquarelas e óleos de nossos conterrâneos explorando o tema da natureza morta, ao contrário, vê-se mais queijo que pinga ou cigarro de palha, mas de forma coadjuvante.

Afinal, ao concluir todos esses levantamentos, muito pouca coisa se pode identificar do queijo, na literatura, na propaganda, nos emblemas, nas receitas e nas externalizações em geral, constatando-se, assim, uma debilidade de vínculo.

Mudando um pouco o campo de averiguação e análise de traços e componentes, vejamos agora outros espaços de manifestação cultural.

Das minhas entrevistas (e também de textos consultados), ajuntei uma boa coleção de ditados, refrões e expressões comumente utilizados envolvendo alusão ao queijo, talvez muitos deles já bem amineirados por costume.

“Pão, pão, queijo, queijo” é convocado quando se deseja estabelecer separação entre coisas, ou estabelecer isonomia, ou, ainda, identificar necessidade de justiça, mas sempre em partição. Não deixa de caracterizar impropriedade, desfazendo uma das combinações mais apreciadas em toda parte, não somente em Minas, frio ou quente. Bem diziam os romanos: “Caseus et panis sunt optima fercula sanis”. Ou, convertendo para a última flor do lácio, “Queijo e pão, ótima comida para o são”.

“Fazenda que não produz queijo até os cachorros são magros”. O sentido é mais na sugestão escondida de mensagem oposta, prestigiando o ofício e indicando a fartura trazida pelo trabalho.

“Descuidei do queijo, o rato comeu”, “Com a faca e o queijo na mão”, “Doce sem queijo, abraço sem beijo”, “Um abraço, um beijo e um pedaço de queijo”, “Tendo queijo nada mais quero”, “Pão e queijo, mesa posta é” e “Quem mexeu no meu queijo?”, todos eles envolvem conotação de superioridade, de vantagem, de coisa principal, de objeto desejado. Pressupõem também poder ou prevalência.

Por sua vez, o refrão “Falta um queijo e uma rapadura” identifica empírica e subjetivamente um mundo de chão a ser vencido, ou uma longa empreitada a cumprir, ou um tempo muito longo a ser contado para completar uma tarefa e coisas do tipo.

Na contagem da idade, referida a coisa antiga, costumam se valer da expressão “Mais velho que a Serra da Canastra”. Pode ter o sentido da obsolescência ou, pior, dizer que o interlocutor está “por fora”, “démodé”.

Ainda referido ao deus Cronos, temos “O tempo cura até queijo”, que pode ser entendido como uma evasiva, um deixa pra lá, paciência, com intenção consoladora. Às vezes, pode ser utilizado beirando a pilhéria, feito se diz “na vida tudo é passageiro, exceto motorista e cobrador”.

“Mais furado que queijo suíço” significa coisa mal arranjada, de pouca valia. Não deixa de conter xenofobia, depreciando concorrente estrangeiro.

O ditado “Avançar na lua pensando que é queijo”, muito utilizado, vale como metáfora para advertir contra os excessos da pressa, do “desensofrimento”, da sofreguidão, do tropeço, do despreparo, ou mesmo presunção.

“Não se pode derreter o queijo duas vezes” recomenda cumprimento da empreitada de uma investida só, melhor assim, ou porque já não é mais possível numa segunda tentativa conseguir o bom termo alcançado na primeira chance. Algo equivalente a “o que deve ser feito deve ser bem-feito”.

Já um entrevistado citou, sem receios, o seguinte mote indagativo: “Aonde vamos comer o redondo?” — honni soit qui mal y pense.

“Mineiro descasca, carioca raspa e paulista come com a casca”, pendenga antiga levada para os prazeres da mesa. A diferença vai justificada no embate entre os mais altos preços cobrados nas capitais distantes e o conhecimento da contagem dos microscópios, segundo o qual a casca abriga a incrível população de 10 bilhões de micro-organismos por grama, dez vezes mais que na massa interna.

Citaram umas duas vezes a conhecida historinha do mineiro que encontrou uma lâmpada mágica com direito a três pedidos. Na terceira escolha, teria optado por uma mulher bonita, já meio desconcertado, constrangido, receoso de ser repreendido ou alvo de chacota, caso tivesse persistido no seu único agrado.

Sonhando: no dia em que o Sertão dos Araxá for um Estado independente, não deixaremos por menos: a bandeira terá três queijos sobre fundo azul, o feriado principal será o Dia do Queijo, a bola de futebol será um queijo, nossas minas serão de queijo, as novelas terão como enredo principal o queijo, em vez de bala teremos queijo perdido, e, sem dúvida, os políticos transitarão com malas cheias de queijo.

Voltemos ao assunto sob tratamento.

Os apaixonados recitam: “O sol já vem saino, redondo qui nem um quêjo, quero ver o meu amor, muitos dia qui eu num vejo” ou “Vô mandá fazê um relógio, de u’a fatia de quêjo, pra contá as hora e os minuto dos dia qui num te vejo”. Bonito demais da conta! Nossa cultura atada aos enlevos do coração.

“Quer ver um mineiro correndo? Joga um queijo ladeira abaixo” ou “Mineiro quando vê um queijo rolando pula em cima” são motes desaforados, insinuando como sendo a única motivação para o bom caipira se mexer.

O vocábulo serve também como unidade de medida de volume de produção de leite. Assim, uma vaca de dois queijos significa que de seus úberes se colhe diariamente vinte litros do precioso líquido.

Transplantando de Gilberto Freyre para a nossa “civilização” do gado, por aqui também ocorreu uma chegada colonial traçando os contornos do ethos regional. No nosso caso, a parcela relativa de contribuição africana e indígena é bem menor comparativamente ao Nordeste, na Bahia, ou mesmo no Rio. Faz sentido. Não tivemos naquele tempo por aqui as “plantations”, extensivas em mão-de-obra. Do pouco que tínhamos, os exploradores dizimaram, já vimos. Resultado, na religião, nas artes, na cozinha, nas composições étnicas, nas formas de ver e representar o mundo é tênue a presença do patrimônio nativo ou afrodescendente por estas bandas, talvez somente manifestado de forma mais explícita em festejos anuais. Já comentei a respeito.

No frigir dos ovos, quais conclusões se extrai de todas estas considerações? Pela não existência de uma relação clara, encorpada, impregnada, entre o nosso queijo e as manifestações culturais externalizadas no nosso oeste mineiro investigado. Essa constatação nos permite concluir que também a produção artesanal do queijo de leite cru, a não ser aqui e ali, já está diluída em meio ao denso caldo de muitos interesses econômicos. Em São Roque, talvez a única exceção, ele começa a dividir o quarto com o turismo, ou mesmo perder a liderança para ele.

As pessoas das cidades visitadas já não o têm em conta representativa entre as principais manifestações de regularidade e estabilidade da ordem social. Ele não ocupa espaço relevante na consciência coletiva. O materialismo histórico traz contribuições: se o meu trabalho é alienado, também o são as minhas percepções. E o pior é que o mundo vai se nivelando por baixo, não é privilégio ocidental. Tudo isso, afinal, compõe razões suficientes para que juntemos forças na recuperação de espaços, enquanto herança cultural a ser mantida. E, então, temos pela frente um longo caminho a trilhar para conseguir melhor lugar enquanto representação social identificada e reconhecida.

Talvez este seja o início da história. Quero dizer, ao se articularem ações para conquista de posição econômica e comercial relevante para o queijo artesanal do oeste mineiro, tão desejável, ao mesmo tempo, dialeticamente elas estarão contribuindo também para desenvolver o fortalecimento da cultura em geral, na prática, e, de quebra, nivelar os caminhos que nos levam à consolidação das virtudes democráticas. Digo isso porque as pessoas, com raríssimas exceções, se apresentaram mais como cerceadas por um quadro institucional mais amplo, que não se questiona, do que dispondo de uma competência e de um conhecimento próprios ou de capacidade de crítica sobre a situação vigente. Enxergam o mundo como algo dado, acabado e tendem a transferir para o campo dos mistérios, do misticismo, a razão para as coisas que não sabem explicar. Além disso, para a maioria, a justiça não é possível no mundo dos homens, cada um vê as coisas como sendo assim mesmo, fazer o quê, e abandonam, postergam para a transcendência, em outra dimensão, futura, o que não conseguem alcançar aqui e agora na Terra.

Diante das perguntas formuladas, a imensa maioria das respostas é simples, acanhada, na assiduidade dos monossilábicos. As raras externalizações discursivas, mais ainda as críticas, denotam, talvez, fraco exercício em reflexão. O questionário pode não ter conseguido incentivar o encompridar das conversas — falha nossa. De qualquer modo, os conteúdos das percepções dos entrevistados nos autorizam a ver as pessoas não se identificando e não se exercitando plenamente como atores do processo. Não são “idiotas sociais”, mas há um longo trilhar até se conseguir desenvolver plenamente uma consciência mais clarificada da vida para si. Sendo assim, muito menos hão de querer e saber conservar vínculos com instituições imateriais, aparentemente menos afeitas ao chão batido das suas jornadas.

Muita coisa ainda precisa e deve ser escrita sobre o queijo de leite cru e sua luta. “A seara é imensa”. São praticamente os mesmos campos de batalha a enfrentar o próprio país para conseguir alçar posição privilegiada em desenvolvimento humano. O futuro dos três irmãos, Canastra, Araxá e Salitre, está intimamente atado à maior independência do Brasil na gestão dos seus destinos, apagando seu nome da vergonhosa lista dos campeões mundiais em desigualdade social, mãe e filha cruéis de todas as nossas mazelas, nascente e foz caudalosas de todas as misérias, montante e jusante de todas as injustiças.

A plenitude da existência do legítimo queijo ao longo do século XXI se relaciona com a possibilidade de projetos próprios para a nação, dispensando a vinda de alguém para dizer o que nos convém. A partir daí, livres, autônomos, podemos assumir uma posição social mais afinada com nossa condição de invejável grandeza, correspondente à nossa população, ao espaço geográfico, à riqueza e à economia. Ocupando posto de destaque no concerto das nações, poderemos, de fato, nos orgulhar da brasilidade, de peito inflado, exibindo para o mundo algo sintonizado com a pujança de nossas belezas naturais.

(foto da Serra da Canastra)

Capítulo X – A hora do espanto

Nunca desligue a televisão, aparelhinho fantástico —

“ensina a arte de viver a vida sem porquês”.

O presente capítulo se ocupará de uma avaliação do desenvolvimento nos onze municípios em foco. Para alcançar esta finalidade, invocarei alguns dos principais índices disponíveis costumeiramente utilizados nesses casos. Trata-se de uma primeira aproximação que pode, e deve, ser aprimorada no futuro, porque não existem dados históricos suficientes para empreender uma análise mais aprofundada, observando a variação ao longo de décadas e comparando aos principais movimentos socioeconômicos em cada um deles. Seria extremamente interessante verificar quais os avanços obtidos, por exemplo, em Tapira, depois da chegada da indústria por lá, mas as poucas estatísticas disponíveis aqui e acolá não são facilmente recuperáveis, e talvez de pouca valia. Infelizmente, é assim. Estas insuficiências estão relacionadas com a fraqueza de nossas instituições, com o descaso das autoridades e com a nossa débil democracia, padecendo de raquitismo crônico.

É possível apontar problemas nas referências adotadas nas comparações a seguir, provar que não são boas, que contêm imperfeições, distorcem valores e falseiam a realidade. Tudo isso tem fundamento. Mas três afirmativas também estão corretas: os indicadores utilizados, sendo ruins, o são para todas as cidades, sem distinção (e, assim, se prejudicam um resultado qualquer, o fazem indistintamente para todas); mesmo imperfeitos servem para a automedição, ou seja, para um mea culpa a quatro paredes, e, finalmente, se não gostamos, arranjemos então outros para colocar no lugar. O que não pode, e não convém, é deixar ao Deus-dará, no vai da valsa, esquivando-se das comparações, sem avaliar a evolução da vida ao longo do tempo. Essa, talvez, seja a principal razão pela qual apresento a incômoda análise a seguir.

Índice de Desenvolvimento Humano – IDH

Tomemos primeiramente como base o IDH, criado na década de 90 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Como se sabe, essa referência é uma das principais formas utilizadas hoje em dia pelo mundo afora, Organização das Nações Unidas (ONU) à frente, para se ter uma noção, um esboço, das condições gerais de vida de um lugar. O IDH considera poder aquisitivo, longevidade saudável e acesso a educação como três principais variáveis que traduzem, de forma aproximada, a situação de uma população. Escolheram três indicadores (renda per capita, expectativa de vida ao nascer e alfabetização de adultos, este juntamente ao nível de escolaridade), considerados correspondentes, ou seja, “regulando” com aqueles três eixos, bateram no liquidificador de um cálculo matemático e geraram um número cujo valor varia de 0 a 1. Tanto melhor é a situação de uma família, da cidade, de uma região ou do país quanto maior for o resultado obtido. A partir de 0,9 é considerado muito alto, um clube privé frequentado por 38 países. Entre 0,7 e 0,899 é visto como alto. Segue-se a faixa média, 0,5 a 0,699, onde mora o Brasil atualmente, no seu limite superior. Abaixo de 0,5 topa-se com a pior miséria do mundo.

O IDH-M, municipal, é uma variação mais interessante desse índice. Ele afunila a avaliação considerando o município um sistema isolado, disponibilizando resultados mais adequados das condições de núcleos menores.

O quadro a seguir apresenta o IDH-M das onze cidades escolhidas daqui do nosso cantinho. Ele resume a variação entre 1991 e 2000. A última coluna, “Pos. 2000”, indica qual a classificação da cidade, no referido ano, entre os 853 municípios de Minas Gerais.

Cidade IDHM

 

Geral

IDHM

 

Renda

IDHM

 

Longevidade

IDHM

 

Educação

Aumento no período (%) Pos.

 

2000

1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000
Piumhi 0,710 0,800 0,662 0,744 0,703 0,818 0,766 0,837 12,7 38
Araxá 0,736 0,799 0,676 0,745 0,707 0,751 0,825 0,901 8,6 41
Ibiá 0,727 0,797 0,697 0,767 0,721 0,791 0,764 0,833 9,6 46
Medeiros 0,707 0,792 0,654 0,733 0,727 0,818 0,739 0,825 12,0 65
C. Paranaíba 0,709 0,792 0,632 0,712 0,743 0,829 0,752 0,836 11,7 66
Bambuí 0,680 0,788 0,625 0,692 0,663 0,811 0,752 0,860 15,9 81
Tapira 0,720 0,780 0,660 0,688 0,751 0,827 0,749 0,826 8,3 112
S. R. de Minas 0,674 0,766 0,637 0,699 0,703 0,815 0,682 0,785 13,6 190
Vargem Bonita 0,672 0,760 0,589 0,666 0,690 0,789 0,738 0,826 13,1 208
Rio Paranaíba 0,691 0,755 0,612 0,676 0,736 0,775 0,726 0,815 9,3 246
Lagoa Formosa 0,689 0,750 0,606 0,666 0,743 0,795 0,717 0,788 8,9 281

Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano (s.d.)

Em Piumhi, a melhor cidade da região em IDH-M 2000, verificou-se o bom crescimento de 12,7%, comprando ingresso para o seleto rol dos municípios que se envaidecem na condição de desenvolvidos, ou seja, de 0,800 para cima (aliás, é a única entre as onze a desfrutar desse privilégio, maneira de dizer, é competência mesmo). Esse avanço foi conseguido principalmente graças à melhoria em Longevidade. Mas há um dado preocupante, o da Educação com crescimento abaixo do esperado (9,27%), podendo ser prejudicial para a década seguinte,ou seja, a que se encerrou em 2010.

Araxá amargou o segundo pior crescimento do período, perdendo posições no Estado e a liderança entre as onze. Por mais estranho que possa parecer, numa cidade voltada para a Saúde, esse fraco desempenho correu justamente por conta da Longevidade, com a vice-lanterna de aumento no grupo.

A Educação, no mesmo compasso, não andou bem, repetindo o segundo pior desempenho, podendo ter trazido reflexos negativos o período seguinte, 2001-2010.

Em termos relativos, a melhor contribuição para o crescimento do IDH-M veio da Educação, com 40,2%, seguida pela Renda, com 36,5% e Longevidade, com 23,3%. Mantendo-se a taxa de crescimento do índice, o município levaria 14,8 anos para alcançar os 0,919 de São Caetano do Sul (SP), (o melhor IDH-M do Brasil -0,919), e 5,4 anos para alcançar Poços de Caldas (MG), o campeão do Estado (0,841), se eles, por seu turno, não avançassem mais.

Em Ibiá, o crescimento foi relativamente fraco e se distribuiu igualmente pelas três variáveis, um pouco menor na Educação.

O IDH-M subiu 12% no período em Medeiros, com desempenho uniforme nos três vetores (12,1% em Renda, 12,5 em Longevidade e 11,6% em Educação). Pelo menos comparativamente, trata-se de saldo positivo no período, sinalizando bom uso do erário público.

No jeitão geral, o mesmo quadro se verificou em Carmo do Paranaíba, com crescimento mediano, também uniformemente distribuído.

Bambuí viveu a mais espetacular elevação de IDH-M na década (15,9%) entre todas as cidades. Para alcançar esse salto campeão, valeu-se da vara da Longevidade, com expressivos 22,3% de aumento no período. Assim como em Vargem Bonita e São Roque, algo de melhor aconteceu na Saúde. Quais as possíveis razões desse avanço admirável? Ele pode ter sido resultante de várias ações, na melhoria de condições de moradia na zona rural, nas campanhas de vacinação, na merenda escolar e outras providências benfazejas desse naipe. Os poderes públicos souberam encaminhar a arrecadação em favor do bem-estar geral. A Educação também apresentou invejáveis 14,3%. Já o acréscimo em Renda não atingiu os mesmos níveis, contentando-se com 10,7%.

Tapira não andou bem. Foi o pior desempenho do grupo no período. Algo está errado no rendimento das pessoas por lá, pois esse componente prejudicou o índice geral do município. Praticamente estagnou no período (4,2%). Não necessariamente a presença de indústria leva a um melhor crescimento, parece. Mais para frente vou comentar sobre isso.

São Roque de Minas se deu bem. Avançou 13,7% em qualidade de vida. Esse ganho não foi propriamente representado pela atividade econômica. O crescimento se deu mais graças a expressivos aumentos em Longevidade (15,9%, seguindo Vargem Bonita, resolvendo, total ou parcialmente, uma mazela crônica na saúde pública), e em Educação (15,1%, possivelmente obtidos investimentos na rede de ensino local). Já a Renda, supostamente o carro-chefe das demais movimentações, cresceu apenas 9,7% no período. Valendo-se de qual cartola conseguiram materializar esse prodígio, qual a mágica empregada, é coisa a ser estudada e copiada pelos demais municípios em geral.

Vargem Bonita igualmente andou bem. O índice subiu 13,1%, marcando esse mesmo valor para a Renda e 14,3% para a Longevidade, possivelmente em função de solução de problema grave de saúde pública, “feito” Bambuí. Já a Educação cresceu apenas 11,9%, não tendo sido alvo, assim, da mesma prioridade dos governos da década naquele município.

Rio Paranaíba deve lá saber o que ocorreu com a sua Longevidade. Foi o pior crescimento de todo o grupo, ou seja, vindo, quando as coirmãs estão indo. Elas conseguiram resolver problemas estruturais importantes. A vacinação infantil falhou? Como estão as taxas de natalidade e mortalidade? Insuficiência sanitária urbana importante? Epidemia? A sociedade e os poderes públicos, atacando essas mazelas, farão a cidade avançar, alcançando índices melhores.

Lagoa Formosa segura a lanterna no grupo, distanciada 35 posições em relação à Rio Paranaíba. Também aqui a Longevidade representou o papel de bicho-papão. Os demais índices não estão de todo ruins, embora devam ser melhorados também. A esse respeito é de se registrar um dado curioso. Na entrevista junto a onze pessoas, duas delas destacaram a saúde como ponto positivo, o aspecto mais importante. O IDH é de 2000, já o meu levantamento é mais atual, de 2011. Assim, se o executivo municipal tomou providências, o índice deverá melhorar na próxima edição.

Olhando agora o grupo das onze companheiras como um todo, as médias de crescimento são: 11,2% para o IDH-M Geral, 10,5% para a Renda, 11,9% para a Longevidade e 11,2% para a Educação. Poderia ser melhor, e, principalmente, não ocorrendo tanta desigualdade.

No resumo geral, a região prosperou mais em Longevidade, podendo assim ser recomendada como opção de moradia para quem deseja aumentar o seu tempo de vida aqui na Terra. Brincadeira. Fosse essa a determinação, vamos nos mudar para Santo Antônio do Retiro, ou São João do Paraíso ou Divisópolis, todas no extremo norte do Estado, junto à divisa com a Bahia, às margens do Rio Pardo. Por ali, o IDH-M de longevidade subiu, respectivamente, espetaculares 89,1%, 70,6% e 54,7%. Orações e intervenção divina? Não. Devem ter sido tomadas providência em relação à mortalidade infantil, à vacinação, à melhoria nas condições sanitárias básicas, à instalação de serviço de água potável, à construção de um posto de saúde, coisas assim.

Vejamos agora outra análise possível, qual seja a da comparação do grupo das onze ao conjunto das cidades mineiras em situação semelhante. A faixa de IDH-M-2000, de 0,750 (Lagoa Formosa) a 0,800 (Piumhi), compreende 244 municípios que falam “uai”. Eles estão contidos no terço superior da distribuição em Minas Gerais. Contudo, Piumhi ainda está muito longe de Poços de Caldas, a melhor nas Alterosas, com um exibido 0,841 em 2000 (esta, por sua vez, amarga um vergonhoso 63º lugar no Brasil. Nem de binóculo avista São Caetano do Sul (SP), lá no alto dos seus 0,919, primeiríssimo mundo, elevado a essa condição montado na cauda do cometa do seu invejável nível educacional).

O quadro a seguir mostra as posições relativas das nossas onze cidades dentro do referido conjunto de 244 municípios mineiros. O sombreado mais forte destaca as melhores (de mais alto avanço), e o mais fraco, as piores (quem mais perdeu posições), no geral e em cada componente do IDH-M.

Cidade IDHM

 

Geral

IDHM

 

Renda

IDHM

 

Longevidade

IDHM

 

Educação

1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000
  • Piumhi
54 1 28 5 165 33 64 123
  • Araxá
5 4 9 3 153 224 7 8
  • Ibiá
16 9 3 1 96 124 72 137
  • Medeiros
66 28 43 11 73 32 135 157
  • Carmo do Paranaíba
59 28 87 38 26 6 102 126
  • Bambuí
174 44 109 106 228 62 104 59
  • Tapira
26 75 30 117 13 11 110 154
  • São Roque de Minas
198 153 76 81 166 50 232 241
  • Vargem Bonita
202 171 201 184 191 136 141 155
  • Rio Paranaíba
125 209 144 162 45 185 171 195
  • Lagoa Formosa
138 243 163 183 33 115 190 240

Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano (s.d.)

Do ponto de vista das posições no ranking em 2000, podemos dividir a tabela em três partes: a primeira, uma trinca com IDH-M até o décimo lugar, ou seja, a elite das 144 citadas, depois o quarteto entre o décimo e centésimo, classe intermediária e, por fim, os quatro lugares mais para o final da lista em posição de desvantagem.

Bambui foi a campeã do salto no IDH-M. Subiu incríveis 130 posições, graças, principalmente, à Longevidade e um pouco ao crescimento da Educação. Em seguida vem Piumhi, avançando 53 lugares. São Roque também se ajeitou melhor. Salvou-lhe a Longevidade, num pulo espetacular de 83 casas. Na Renda, perdeu e na Educação, assim também em Vargem Bonita, não conseguiu superar o que já era uma desvantagem e continua a ocupar uma das últimas posições no conjunto dos 244 municípios. Juntamente a Ibiraci, Carneirinho e Botelhos, amargam o conjunto daquelas que não desfrutam IDH em Educação igual ou superior a 0,800 em 2000. Durante o decênio seguinte, bons frutos serão colhidos com o funcionamento do Instituto Ellos. Medeiros, Carmo do Paranaíba e Vargem Bonita melhoraram razoavelmente bem no Geral. Araxá patinou.

Medeiros também subiu posições, destacando-se o desempenho da Renda. Porém, a Educação, ao contrário, sofreu um baque substancial. Trata-se de particularidade a ser detidamente analisada pelos poderes públicos, a população de olho, marcando homem a homem, colada nas ilhargas. Se tivesse conseguido ganhos em Longevidade, estaria confortavelmente situada entre as primeiras do conjunto.

Piumhi foi o destaque nos ganhos da década, assumindo a primeira posição do grupo de 177, desbancando Conselheiro Lafaiete da liderança no ano de 1991, além de fazer poeira sobre Guaxupé, Sete Lagoas e Araxá.

Na face mais sombria, acanham-se furtivamente Tapira, Rio Paranaíba e Lagoa Formosa. Despencaram muitas posições no período quanto a IDHM-Geral. As perdas foram substanciais, demandando uma rigorosa análise das causas para posterior montagem de um planejamento de ações, envolvendo todos — população, governo e instituições. Tapira, de situação razoável em 1991, sofreu perda terrível. O que teria ocorrido? As duas últimas vão levar muito tempo para recuperar esse abalo tão profundo experimentado no derradeiro decênio do século XX. O seu IDH em 2000 era de 0,780, com maior crescimento no período na Longevidade. A Renda aumentou um tico só. Assim, a riqueza advinda da atividade minerária pode não estar conseguindo chegar até à população. Ou então caminhou para o lugar comum dessa realidade de afluxo de pessoas de menor renda em busca de um lugar ao sol, que só brilha lá em cima, nas coberturas. Parece que sim. Pelo menos na primeira década deste novo século viveu o maior crescimento populacional entre as onze (23,3%, um disparate!), maior que Araxá (18,6%, também um horror!) e bem acima da média do grupo, 6,5%. Veremos esses dados mais detalhados a seguir.

Um fato chama a atenção. Tirante Bambuí, todas as demais cidades perderam posições em relação à Educação. Preocupado com essa regularidade tão adversa mostrada nessa amostragem, levantei o desempenho na Educação nos 37 municípios da região comparado a todo o Estado. Obtive o quadro a seguir:

Cidade Posição IDHM-Educação
1991 2000
  • Araxá
24 23
Patos de Minas 40 27
Cruzeiro da Fortaleza 207 47
Sacramento 98 54
Vazante 80 70
Conquista 67 85
  • Bambuí
153 91
Patrocínio 62 93
Pedrinópolis 297 98
Santa Juliana 76 126
Coromandel 135 178
  • Piumhi
104 184
Campos Altos 307 187
  • Carmo do Paranaíba
155 189
Lagamar 219 192
Guimarânia 89 205
  • Ibiá
114 206
  • Tapira
162 239
  • Vargem Bonita
210 240
Abadia dos Dourados 411 241
  • Medeiros
206 245
Varjão de Minas 246 247
São Gotardo 147 262
São Gonçalo do Abaeté 273 286
Perdizes 296 288
Arapuá 188 322
  • Rio Paranaíba
260 326
Delfinópolis 463 381
Pratinha 433 411
Matutina 316 419
Serra do Salitre 311 438
Tiros 359 448
Presidente Olegário 323 469
  • Lagoa Formosa
303 482
Tapiraí 332 486
  • São Roque de Minas
441 495
Santa Rosa da Serra 481 497

Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano (s.d.)

Apenas um terço das 37 cidades melhorou suas posições em Minas quanto à educação, no período de 1991 a 2000 (são as destacadas com tarja). E o pior: nesse mesmo período de 1991-2000, Minas viu sua educação e sua renda crescerem menos que a média geral do país. Quer dizer, a maioria piorou dentro do ruim. Das onze cidades sob análise, apenas Bambuí ganhou posições — Araxá não conta porque a diferença tão pequena pode ser considerada empate técnico. Minha terra parece ter a vocação para a patinação. Os secretários de todos os municípios devem entrar em contato com Pedrinópolis, Abadia dos Dourados e Cruzeiro da Fortaleza (destacados em tarjas mais escuras) para ver como conseguiram driblar tão bem esta lógica tão cruel.

José Vargas anota no seu livro que na seção do dia 11 de agosto de 1905 da Câmara Municipal de Carmo do Paranaíba foi apresentado um projeto de lei para extinguir as escolas dos distritos (incluindo a Vila de São Francisco, hoje Rio Paranaíba). Pelo menos, eram honestos. Não é bom estudar, ampliar a visão, quando crescerem vão querer emancipação, vamos manter a ignorância, a submissão. Que se contentem e sintam agradecidos com as bolsas que vamos enviar. Ah! E um show de dupla sertaneja de vez em quando.

Tão logo estejam disponíveis os índices relativos a 2010, os respectivos governos municipais, em especial as secretarias afeitas aos três eixos, devem examinar o comportamento na primeira década do século XXI.

Continuemos nas interpretações dos dados.

Araxá desfruta de IDH-M de 0,799, empatando tecnicamente com Piumhi, mas podendo perder mais em distância, caso tenham se mantido na primeira década do “Terceiro Milênio” as mesmas tendências da anterior.

No conjunto citado das 177 cidades consideradas, em cerca de 20% o aumento da renda foi o maior entre as três dimensões. A “terra onde primeiro se avista o sol” figura entre elas. Pode significar que o poder público não conseguiu extrair da base econômica o mesmo proveito auferido pelas cidades companheiras ou, dito de forma diferente, não canalizou para a Longevidade e para a Educação o crescimento experimentado nos resultados da atividade produtiva — façamos, porém uma ressalva: essa é, sem dúvida, uma constatação expedita, primária, carente de uma análise mais aprofundada.

Continuando a apreciação dos números, naquela bela estância, depois da Renda, o maior ganho na última década se deu na área da Educação onde, faz tempo, é o carro-chefe (em 2000 ultrapassa os 0,900). Bom para a cidade. Mas perdeu 14 posições no correr desses anos devido à queda relativa em longevidade. Assim, quanto a aumento de expectativa de vida, a mundialmente famosa parada hidromineral, considerada a maior da América Latina, conseguiu melhorar muito pouco, sendo ultrapassada por várias cidades. Não deixa de ser um descompasso em se tratando de cidade com vocação quase secular nos cuidados com a saúde.

O mesmo aconteceu com o Brasil na média geral — melhorou, mas piorou. Explico. Seu IDH vem subindo em termos absolutos. Na euforia de gastos, no enorme banquete mundial, de gula sem limites no consumo desenfreado, os países geram riquezas como nunca viram antes, enquanto depredam o planeta em largueza perdulária, esnobam falsa sustentabilidade e veem declinar a felicidade. Nesse sonho ideal de recursos ilimitados, pouco se importando com os efeitos nefastos sobre o clima global, as nações viram seu IDH subir mais. Já a “minha terra tem palmeiras” derrapa em volta da 72ª posição, ou mesmo despenca para 75ª, agora que o PNDU está propondo incluir a desigualdade social no cálculo do índice. Soamos trombetas festejando o aumento do IDH médio geral, mas varremos para debaixo do tapete essa realidade das perdas relativas. O mundo como um todo melhorou mais. A produção esquizofrênica gera riquezas, mas a distribuição das benesses se faz de forma desigual pelo planeta. E o nosso “patropi” fica com a mesma pequena parte do bolo. No mais, fingimos não saber, varremos a vergonha para debaixo do tapete, esquecemos que somos especialistas em perder. A renda per capita brasileira (Nações Unidas – 2004) era igual à média geral do mundo (e da América Latina também). Nosso IDH atual é menor do que a média da América Latina, quer dizer, estamos abaixo da média do ruim. Riqueza e grandeza imensas, tanto me ufano, para ser medíocre em qualidade de vida. E, reprisando o Brasil, Araxá melhorou, mas piorou. Ganhou, mas não levou. Cumprindo esse regozijo, no esgotamento de nossa opulência nativa, vendo sair nossos fertilizantes, nosso ferro, nosso ouro, caranguejamos… para trás… engatados na marcha-à-ré. Desemboque está ai pertinho para nos avivar a memória.

As primeiras notícias sobre o censo de 2010 dão conta de que o Brasil subiu quatro posições no concerto mundial, assumindo a 73ª posição. Quer dizer, caíra mais ainda, para a 77ª casa. Uma coisa de admirar em meio a tanto alarde sobre crescimento. Os números mostram outro quadro. Não anda. Frio e imóvel como uma estátua, “deitado eternamente em berço esplêndido”. A mesma fonte de dados diz que somos puxados para baixo por causa da educação. Essa eterna carência. Esse programa sem prazo para se cumprir. Essa mudança tão alardeada e que não acontece. Essa crise permanente é um projeto, bem o disse Darcy Ribeiro, mas sem um fim previsto.

Nesse mesmo período, a média para o Estado de Minas Gerais subiu de 0,697 em 1991 para 0,773 em 2000, ou seja, um aumento geral, em arredondados 11%. Assim, nossa região experimentou um desenvolvimento superior à média geral das Alterosas. A propósito, nosso Estado ocupa posição desconfortável, desabonadora, se não mesmo vergonhosa, em relação ao país. Abrigamos 11,5% da população, cerca de 16% dos municípios da nação, mas, no entanto, colocamos somente 6% das cidades entre as 220 de melhor IDH do Brasil. Nas unidades da Federação como um todo, estão na nossa frente Rio Grande do Sul, Distrito Federal, São Paulo, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Goiás e Espírito Santo (sem contar a “Ilha da Fantasia” de Pernambuco). A melhor cidade mineira em 2010 (Poços de Caldas) só vem aparecer em 66º lugar na corrida nacional.

Mais uma informação desalentadora: na disputa dentro do rol mineiro, acima de Piumhi, na região, temos São Gotardo (28ª) e Patos de Minas (19ª posição). Assim, a melhor entre as 37 cidades desse nosso sertão não figura entre as dez primeiras do Estado. Precisamos estabelecer uma visão comum, em esforço conjunto para modificar, num prazo determinado, condição tão adversa. Araxá, Piumhi, São Gotardo, Patrocínio e Patos com a palavra.

Ainda sobre Araxá, seria interessante esquadrinhar qual a percepção da esclarecida população sobre o seu IDH e seu incômodo 38º lugar entre as cidades mineiras. Pelo menos quem nasceu e ama o lugar não pode deixar de indagar por que não figuramos entre as dez primeiras das Alterosas. Principalmente levando em conta seu importante parque industrial (fertilizantes, turismo, móveis e agronegócio, onde se inclui a doçaria de revoada internacional) e o nível educacional e intelectual de seu povo atestado por toda uma história de apego à cultura (artes, literatura e museus). A pulga atrás da orelha futuca mais ainda quando se toma conhecimento do IDH superior de cidades como Uberaba, Uberlândia, Ituiutaba, Araguari, Patos, São Gotardo, Frutal, Nova Ponte, Iturama, Luz, Nova Serrana e Piumhi, para citar somente as mais próximas. Autoridades, lideranças, empresários e o povo devem discutir esta incômoda situação. Iturama, também localizada no Sertão da Farinha Podre, é um conjunto de 160 quarteirões, quase perfeitamente traçados. Conta com duas praças e desfruta IDH superior ao da terra da Dona Beja. Que tal planos quinquenais de objetivos? O primeiro, a ser alcançado em 2015, teria por slogan, com todo o respeito, “Iturama não”. Para 2025, a visão seria “Somos o que há de melhor no Alto Paranaíba”. Para 2030, “A primeira a oeste do São Francisco”, e finalmente, para 2035, a motivação seria “Somos os melhores de Minas”. As lideranças, formadores de opinião, instituições e administrações sucessivas das demais cidades devem montar projetos similares. Quanto melhor essa “briga” entre nós tanto melhor para a região. Por que a terra prometida tem que estar alhures e não por aqui mesmo?

Finalmente, é interessante notar, também em IDH-M, que nosso sertão parece estar de pernas para o ar. De uma maneira geral, nos municípios analisados, o IDH-M da Renda é inferior ao da Longevidade e da Educação. Tanto em 1991 quanto em 2000. Estranho. Supostamente, é preciso ter dinheiro para montar e manter escolas de bom nível e levar avante programas de saneamento básico (água, esgoto e lixo), de combate às causas da mortalidade infantil e a males tais como Dengue, Chagas e Tuberculose, entre outros. Ou os cálculos são mais condescendentes com umas parcelas, ou a educação e a saúde estavam tão ruins que bastou pouca coisa para melhorar.

Não existe relação rigorosa entre população e a classificação nesse “campeonato” do IDH-M, conforme se vê o quadro a seguir. Há cidades pequenas ou maiores melhor ou pior posicionadas. As duas primeiras em habitantes estão melhor colocadas, mas já a terceira, Carmo, pula para 5º lugar. Medeiros e Ibiá, menores, roubam-lhe posições. As menores ocupam posições intermediárias.

Cidade População

 

2010

Pos. População

 

2000

Variação

 

%

Mulheres

 

%

Urbano

 

%

Araxá 93.683 2 78.997 18,6 50,6 98,5
Piumhi 31.885 1 28.783 10,8 50,3 89,6
Carmo do Paranaíba 29.752 5 29.460 1,0 49,9 84,8
Ibiá 23.265 3 21.044 10,6 49,0 84,7
Bambuí 22.709 6 21.697 4,7 50,5 85,0
Lagoa Formosa 17.136 11 16.293 5,2 49,6 75,5
Rio Paranaíba 11.898 10 11.528 3,2 48,8 61,4
São Roque 6.686 8 6.325 5,7 47,9 63,1
Tapira 4.102 7 3.327 23,3 46,2 66,9
Medeiros 3.444 4 3.038 13,3 47,4 56,6
Vargem Bonita 2.163 9 2.212 -2,2 47,1 52,8

Fonte: IBGE

Aproveitando o assunto, incluí mais dados no quadro (população, segundo o censo de 2000, variação no período 2000-2010, percentual de mulheres e o percentual da ocupação urbana sobre a total do município).

Carmo do Paranaíba e Bambuí perderam uma posição cada uma, em população, na última década (para Piumhi e Ibiá, respectivamente). Tapira foi a que mais cresceu no período e Vargem Bonita, ao contrário, encolheu um pouquinho.

O quadro mostra duas relações diretas com o porte da cidade: a parcela urbana da população (sendo que Araxá dispara no seu ínfimo território municipal, depois dos desmembramentos sucessivos das primeiras décadas do século XX) e o percentual de mulheres (nesse caso, só falta aparecer um gaiato qualquer para dizer que a genética determina que nasçam mais “meninas mulheres” nas cidades maiores). Bambuí, Lagoa e Tapira representam pequenos desvios a estas regras. As duas primeiras teriam um pouco mais de mulheres e a última, ao contrário, um tiquinho mais de homens que o determinado pela equação composta pelo comportamento das onze cidades.

Índice de GINI e mais indicadores sociais

Vejamos agora mais análises entre tantas possíveis. (É fácil entrar no Atlas de Desenvolvimento Humano ou qualquer desses bancos de dados entre tantos disponíveis e compor tabelas e avaliações). As secretarias municipais conhecem e devem saber muito bem trabalhar com eles.

Podemos estabelecer novas comparações através da planilha apresentada a seguir. Ela considera outros indicadores de qualidade de vida, levantados em 2000 nas onze localidades. São eles:

“Índice de Gini” – mede a desigualdade social (avó, mãe, filha e neta de todas as mazelas sociais). Atenção: o valor é inverso do comumente usado, ou seja, quanto mais próximo de 0 melhor a situação. Ao contrário, resultados maiores indicam que a situação é pior.

“Analfabetismo” – percentual de pessoas com 15 anos ou mais analfabetas. Quanto menor o valor melhor, um “xô” nesta covardia, crueldade danada;

“Vulnerabilidade” – percentual de adolescentes do sexo feminino, entre 15 e 17 anos, com filhos. Números maiores estão normalmente atrelados a baixo nível de escolaridade, dependência, violência, exploração sexual de crianças e adolescentes (crime contra a humanidade) e demais chagas da desorganização social;

“Esperança de vida” – probabilidade referida a cada membro da população ali vivendo. Quanto maior melhor, filosofias à parte;

“Mortalidade infantil” – indica os óbitos até 5 anos de idade em cada grupo de mil crianças nascidas vivas. Quanto menor melhor e, ao contrário, números maiores retratam uma vergonha local;

“Proporção de pobres” – razão entre a renda média dos 10% mais ricos e os 40% mais pobres. Guarda relação inversa, ou seja, quanto maior pior;

“Água” – refere-se ao percentual da população dispondo de água tratada. Quanto maior melhor.

Cidade Índice
Gini
Analfab. Vulner. Esper. Vida Mortal. Pobres Água
Araxá 0,57 7,92 7,78 70,08 31,11 34,53 98,59
Bambuí 0,49 14,88 0,25 73,64 20,46 31,51 95,25
Carmo do Paranaíba 0,58 12,56 4,63 74,76 17,55 29,87 92,10
Ibiá 0,50 12,14 6,27 72,45 23,80 34,54 93,27
Lagoa Dourada 0,57 9,38 7,17 69,75 32,21 40,62 90,72
Medeiros 0,56 12,55 2,76 74,07 19,32 29,78 94,46
Piumhí 0,59 12,13 7,32 74,07 19,32 35,24 97,32
Rio Paranaíba 0,48 12,85 5,66 71,49 26,66 37,33 86,87
São Roque de Minas 0,54 13,35 1,01 73,91 19,75 43,10 84,93
Tapira 0,52 12,98 3,22 74,61 17,92 33,25 90,87
Vargem Bonita 0,48 14,88 8,88 72,33 24,16 37,21 94,72
Poços de Caldas 0,56 7,26 3,97 75,98 13,54 36,17 99,43

Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano (s.d.)

Os números em negrito ressaltam os melhores no grupo e os grifados apontam o pior desempenho em cada um dos indicadores. Para efeito de comparação, estão indicados na última linha os valores ostentados por Poços de Caldas, o benchmarking mineiro.

Como se vê, somente no Coeficiente de Gini, na Vulnerabilidade e na relação de pobreza contamos com cidades que competem ou mesmo superam a referência mineira (Bambuí, Medeiros e Tapira são as que conseguem ter três índices melhores. Se atacarem o analfabetismo, ficarão até em situação bem confortável). Nos demais índices, falta comer muito queijo e rapadura até conseguir melhorias, em especial na mortalidade infantil. Cada município deve analisar a sua situação, comparando com as demais cidades do bloco e com a bela estância hidromineral do sul mineiro.

Piumhi, o melhor IDH do grupo, escancara a pior desigualdade social (há de tudo neste mundo tão estranho). Chama a atenção também a vulnerabilidade. Algo está acontecendo por ali exigindo providência enérgica das autoridades e instituições. Quanto à água vai bem.

Carmo do Paranaíba também apresenta Índice Gini pior. Com tanta água em volta é vice-campeã em carência. Fazer a linfa chegar até as torneiras é um problema a ser enfrentado.

Bambuí e Vargem Bonita estão na rabeira em analfabetismo e de uma forma até um tanto destacada, perdendo o contato com o grupo. Precisam tomar medidas enérgicas urgentes.

A vulnerabilidade também não está bem em Vargem Bonita. Esta constatação é surpreendente. Contraria um pouco o que foi dito sobre cidades menores, desfrutando de melhores condições de manutenção da ordem social. O que se passa por ali? Estaria confirmando a chegada da exploração sexual como chaga do turismo? Vargem Bonita precisa conversar com Bambuí e São Roque de Minas para ver como conseguem essa melhor proteção à suas jovens.

Lagoa Dourada e Araxá são ovelhas desgarradas, pontos fora de uma boa regularidade na região quanto à mortalidade infantil. Em esperança de vida, igualmente, não estão bem, já vimos.

São Roque de Minas se destaca negativamente no indicador relativo à proporção de pobres, constituindo-se em uma exceção em todo o circuito. Precisa cuidar também do abastecimento da linfa para fugir da incômoda posição da cidade com mais latas d’água na cabeça. Está muito abaixo da média da região.

Tapira e Ibiá transitam modestamente nas médias, sem exibir nada de melhor, mas também não seguram lanternas.

As homenagens e os parabéns vão para Vargem Bonita e Rio Paranaíba na igualdade social, Araxá e Lagoa Dourada destacadas nas melhores taxas de analfabetismo, Bambuí na surpreendente e exemplar taxa de vulnerabilidade, (São Roque também recebe o abraço), Carmo do Paranaíba e Tapira na esperança de vida e na mortalidade infantil, Medeiros e Carmo do Paranaíba com menor índice de pobreza e Araxá com a água. Essa constatação é, no mínimo, curiosa, aguardando estudo mais detalhado: como pode acontecer isso, cidades de uma mesma região, relativamente próximas, cada uma com uma vantagem diferente? As chuvas benfazejas estão dispersas, isoladas, assim também as tempestades. O anjo protetor das jovens selecionou praças para se assentar. Já algumas conseguiram fazer o sinal nas portas das casas espantando a passagem do capeta da desigualdade. Sendo assim, a realidade, os encontros de municípios poderiam incluir a discussão desses índices, cada um mostrando sua excelência para proveito dos demais. Se já não o fazem.

Objetivos do Milênio

Sigamos agora para mais um quadro comparativo. Ele foi montado com base nas informações do portal das condições dos municípios em relação aos Objetivos do Milênio (ODM 2015), especificamente sobre o quesito Respeito ao Meio Ambiente. Os sinais “x” indicam ocorrências em 24 meses, referidos a 2008.

Araxá é a campeã do desrespeito quantitativo (não dispomos de informações para identificar as intensidades, grandezas e reversibilidade das agressões), coisa de se admirar, pois na condição de estância deveria ser um brinco, exemplar, mas… Poços de Caldas também enfrenta problemas de poluição de águas, assoreamento, degradação de áreas de preservação (AP) e contaminação do solo. Ambas as cidades, originalmente turísticas, famosas pelas águas, incorporaram fortes processos de industrialização. Chegaram, assim, às encruzilhadas dos seus caminhos de definição de tendências. Piumhi, com população bem menor, também se encontra em situação desfavorável. Em posição exemplar acham-se Carmo de Paranaíba e Lagoa Formosa, declarando não terem registrado ocorrências e Rio Paranaíba registrou eventos, contudo sem alteração importante para a vida da população.

Cidade Poluição Água Assor. Poluição Ar Queima Degrad. AP Prejuízo Agricult. Contam. do solo Desmate
Araxá   x x x x x x  
Bambuí x     x        
C. Paranaíba                
Ibiá x x           x
Lagoa Dourada                
Medeiros x x     x     x
Piumhi x x   x     x x
Rio Paranaíba                
S. Roque x x   x       x
Tapira       x        
Vargem Bonita   x            

Fonte: www.portalodm.com.br/relatorios

Legenda: Poluição de corpos d’água; Assoreamento de corpos d’água; Poluição do ar; Queimadas; Degradação de áreas protegidas (AP); Prejuízos em atividades agrícolas; Contaminação do solo e Desmatamento.

Atividades econômicas

Interessante apreciação se retira de www.economia.aedb.br/seget, bem cuidado site ensejando uma análise sobre a relação entre o IDH-M e a ocupação econômica preponderante de uma cidade. Dele se conclui: não é o tipo de atividade que determina o avanço e a situação socioeconômica de um lugar. Um município pode ser agropecuário, ou industrial, ou fornecedor de serviços, ou mesmo pode nem contar com uma presença maior em qualquer desses setores na sua economia, não importa, e alcançar altos níveis de valores do seu IDH-M. Dessa maneira, o acesso ao topo não é privilégio de uma vontade vocacional específica. E mais: ao contrário do que se poderia esperar, as cidades se ocupando preponderantemente de serviços vivem, ao mesmo tempo, o melhor dos céus e o pior dos infernos, sofrendo a média geral mais baixa. Mundo desatinado, sem controle.

Atividade Mínimo Máximo Média
Agropecuária 0,501 0,952 0,713
Industrial 0,425 0,953 0,731
Serviços 0,448 0.960 0,682
S/Preponderância 0,495 0,978 0,716

Qual a melhor? A cidade industrial talvez. Mas a agropecuária e a mistura de todas as três estão bem próximas.

Em tempo: tanto mais difícil será para um espaço qualquer alcançar o Primeiro Mundo quanto maior for a dispersão em seu interior. Explico. Em qualquer Estado, se o IDH-M varia muito entre os municípios, normalmente a média geral não é boa. Ao contrário, numa cidade, quanto mais próximas forem as rendas familiares, melhor a situação geral do índice local. Mais uma vez, se vê, a desigualdade social, além de causa e efeito, é visor incontestável de todas as misérias.

Para Stiglitz, a riqueza pode estar associada ao poder puro, na medida em que dela se apropria favorecendo a classe dominante na manutenção da sua posse. Ao contrário, a geração de benesses pode se atrelar a um cuidadoso equilíbrio de estratégias eficientes em equidade em uma lógica de “preferência aos princípios de justiça social”.54 Talvez explique porque cada cidade, cada província, cada país pode ter piores ou melhores IDHs. Não será certamente porque o município é muito grande, ou pequeno demais, porque faz frio ou calor, ou antigo ou novo e balelas equivalentes. Se pequeno fosse melhor para administrar, Cruzeiro da Fortaleza rimaria com beleza. Se frio fosse condição para desenvolvimento, os esquimós desbancariam a Noruega. Roma arde num calor dos diabos no verão e dominou o mundo. Se antiguidade fosse importante, a Etiópia teria IDH girando na volta dos 0,95. Chega. Já perdemos tempo em desvio.

Os doze indicadores de Putnam

Tratemos agora da última avaliação, deixada para ser apresentada em gran finale, talvez, quem sabe, por ser a mais fulcral, de raiz, estruturante.

Os administradores públicos, em especial os da gestão municipal, caso ainda não o tenham feito, devem ler “Comunidade e democracia”, de Robert Putnam, uma das propostas mais importantes, e interessantes, entre as disponibilizadas sobre esse tema dos indicadores afeitos às questões humanas e sociais. Trata-se, em resumo, de utilização de índices sociais, diretos ou indiretos, para avaliar o desempenho institucional ou, ainda, a tenacidade, a presença, a robustez e se está bem chuleado o tecido social vivenciado pelo grupo de pessoas e, ainda, principalmente, para aferição do nível de vigência das instituições democráticas do lugar.

_____________________

54 STIGLITZ, 2007.

O autor mostra que se adotando critérios prévios bem definidos e incorporando cuidados metodológicos adequados pode-se chegar a uma percepção aproximada sobre a situação de determinada comunidade quanto à sua atuação enquanto grupo social, aspectos da cidadania e tantas variáveis sociológicas, tais como coesão, mobilidade, organização, classe e status.

Ele propõe doze indicadores para medir a realidade social de determinado agrupamento de pessoas, um município em especial. Cada um pode fazer o levantamento em sua própria cidade, aplicando questionário a vários cidadãos. O entrevistado, após emitir sua opinião a respeito, livremente, atribuirá a cada indicador uma nota, variando de um (representando fraca presença ou situação extremamente indesejável ou mesmo ausência no aspecto sob análise) a cinco (correspondendo a uma situação adequada, propícia, concorrendo aquele fator para uma condição de alto nível). Esses índices, definidos pelo autor, estão listados a seguir. Os parênteses englobam algumas das principais variáveis mensuráveis representativas de cada um deles.

1. Estabilidade e apoio da Câmara ao Executivo municipal (número de mudanças na ocupação dos cargos. Instabilidades dos gabinetes. Manifestações de vaidades pessoais ou desentendimento. Disputas explícitas de poder).

2. Presteza orçamentária (época na qual o orçamento municipal fica pronto para o exercício seguinte. Número de emendas e revisões. Desacertos).

3. Disponibilidade de serviços estatísticos e informação (dados e informações são colocados à disposição da população. Prestação pública de contas da administração).

4. Legislação reformadora (temas e interesses envolvidos nas leis discutidas e aprovadas. Problemas e temas discutidos pelos vereadores e pelo prefeito. Resposta a demandas populares. Alinhamento com o planejamento e o desenvolvimento da cidade. Existência de pactos sociais).

5. Inovação legislativa (percentual aprovado de leis modeladoras, modificadoras, nas áreas de interesse. Projetos estruturantes, alavancadores do desenvolvimento).

6. Creches (disposição, facilidade de acesso e qualidade dos equipamentos existentes. Percepção da população em relação ao atendimento. Cobertura existente, etc.).

7. Clínicas familiares (atendimento do tipo “consultório familiar”, assiduidade e qualidade disponíveis. Percepção popular a respeito).

8. Instrumentos da política industrial (apoio existente, inclusive, na comunidade. Vigência de mecanismos de garantia de desenvolvimento da infraestrutura. Preocupação com as formas de apoio aos serviços públicos. Número de patentes e inovações tecnológicas conseguidas. Novos equipamentos. Desenvolvimento de leis e regimentos incentivando parcerias entre os setores público, privado e população — em oposição ao clientelismo e subsídios a determinadas empresas).

9. Capacidade de dirigir recursos para a agricultura (investimento na agricultura, privilegiando os produtores rurais da região. Número de patentes e inovações tecnológicas conseguidas. Novos equipamentos. Quantidade e qualidade de dispositivos e técnicas. Inteligentzia autóctone para equipamentos e técnicas. Planejamento. Crédito).

10. Gastos com as unidades sanitárias locais (nível de responsabilidade. Percentuais dos orçamentos municipal, estadual e federal, alocados para a área de saúde. Comprimento das filas e tempo de atendimento nos postos de saúde. Percentual de cesarianas em relação ao total de partos. Ocorrências de faltas de remédios e materiais. Óbitos por falta de socorro médico. Endemias e epidemias. Níveis salariais do pessoal. Atrasos nos pagamentos de salários).

11. Habitação e desenvolvimento urbano (recuperação de moradias, inclusive e principalmente, nos casos de enchentes. Erradicação de favelas. Aquisição de terrenos para a expansão urbana. Calamidades públicas. Existência, vigência e qualidade do plano diretor da cidade. Capacidade da municipalidade de levar avante mutirões de construções de casa, arranjo urbano, equipamentos).

12. Sensibilidade da burocracia (qualidade das informações sobre serviços públicos diversos. Qualidade do atendimento e da orientação geral de utilização de cada serviço e de como proceder para utilizá-lo. Consciência do servidor enquanto empregado do povo. Com quantas pessoas conversamos, quantos metros de corredor percorremos, quantos formulários preenchemos, quanto tempo penamos em quantas filas até conseguirmos o atendimento desejado? Para quantas pessoas transferem ligação até chegar ao funcionário que pode lhe atender? Estão interessadas no progresso de sua cidade, da sua comunidade?). Recentemente, por e-mail, devidamente identificado pelo meu nome completo, solicitei uma informação a um órgão público. Depois de quase um mês me responderam, condicionando a resposta ao fornecimento do endereço e CIC. Dá para ver muito bem a que distância eles estão do conceito de cidadania. É a burocracia (no sentido pejorativo, adquirido na irracionalidade do trato da coisa pública, da confusão entre o cofre do erário e o bolso particular do servidor e tantas coisas mais) institucionalizada na sua mais alta capacidade autoritária.

A pesquisa sobre esses doze pontos é um pouco mais demorada e envolve maiores custos e por essa razão apliquei-a somente em Araxá. Foram consultadas doze pessoas, sete do sexo masculino e cinco do sexo feminino, com idade média de 42,5 anos, com tempo médio de moradia de 32,1 anos. Entre as onze escolhidas, é a cidade mais dotada de recursos, inclusive, acadêmicos, maior população, mais tempo de formação política, dentre outros. Assim, é de se esperar, devem ser encontrados ali as respostas mais favoráveis para as indagações propostas pelo referido autor. Se for verdadeira esta premissa, o desenho final obtido, (será apresentado a seguir, e adianto, nada alvissareiro), é de uma situação geral desalentadora ao antever condições nada melhores em todas as demais cidades.

À primeira pergunta, sobre estabilidade e apoio da Câmara ao Executivo municipal, quatro pessoas veem a questão sem emitir maior juízo a respeito, mas para outras quatro a estabilidade é sinônima de manutenção de poder, jogo de interesses e exercício de vaidade. Os vocábulos “ditadura” e “caos” foram aventados uma vez cada um. Duas pessoas não entenderam bem a pergunta e inverteram a resposta, o Executivo não apoia a Câmara. Esse posicionamento também cheira a mão de ferro, podendo revelar centralização de poder. Duas pessoas não responderam. Nota final estimada: 2.

No segundo quesito, presteza orçamentária, a imensa maioria (dez) vê problemas, dificuldades, decepção, falta de informação, principalmente quanto à destinação dos recursos. Duas pessoas sentem que está a contento, indicando existência de quadros na Prefeitura e na Câmara Municipal à disposição da população para consulta. Nota final estimada: 4.

Na disponibilidade de serviços estatísticos e de informações as opiniões se dividem em dois times equilibrados entre satisfeito e nem tanto, ou não veem bem ou não têm conhecimento. É representativa a parcela que não se interessa muito pelo problema, podendo significar falta de motivação e, pior, porta aberta para os desmandos. Na esfera federal pelo menos, as coisas funcionam assim. Os políticos atrevem-se ao uso do erário público porque sabem que a população não se incomoda com isso. Pelo contrário, continuam votando neles. O Correio de Araxá, de 30 de julho de 2011, trouxe a notícia sobre a aprovação da prestação de contas do município relativa ao ano de… 2002. Melhor será se não tivessem divulgado. Nota final estimada: 5.

A quarta e a quinta perguntas estão interligadas e as resposta são desfavoráveis. Em ambas, 83% reclamam de falta de visão, dificuldades ou, muito pior, nem ao menos firmaram opinião a respeito. Alguns falaram de uma atuação girando em torno de interesses de minorias. Notas finais estimadas: 2 e 2.

Quanto a creches, a situação é, relativamente, um pouco melhor. Um terço das pessoas vê como boas as condições oferecidas. Mas a metade não teve como opinar, por desconhecimento, desinteresse ou porque patina em dúvidas. Nota final estimada: 6.

A sétima e a décima perguntas referem-se ao quesito saúde e as respostas, em ambas, acusam o novo chefe do Executivo de abandonar ou mesmo desmantelar o sistema (coadunando-se, assim, com o comportamento encontrado no IDH-M local relativo à saúde, já vimos). Tratando-se de um profissional da área, deveria, pelo menos, conseguir esclarecer a população qual a razão das medidas tomadas, pois quase 2/3 da população está insatisfeita ou não tem opinião a respeito, ou não se interessa. Notas finais estimadas: 3 e 3.

Quanto a instrumentos da política industrial a média desfavorável se repete. Apenas 1/3 vê acertos na gestão do tema. Felizmente, apenas uma pessoa imputou à presença das indústrias o crescimento da cidade. Menos mal — somente um cidadão araxaense vê o mundo de cabeça para baixo. Nota final estimada: 3

Mais surpresas são encontradas nas respostas ao quesito indagando sobre a capacidade de dirigir recursos para a agricultura. Também somente 1/3 vê adequação. Para o restante, a situação é desfavorável, nos cortes de projetos pelo prefeito e coisas assim. Mas, pior, duas pessoas veem a “distribuição como desnecessária, de baixa eficiência, onerando os cofres públicos”. Seria interessante conversar mais para averiguar adequadamente qual é o posicionamento, ou seja, se eles são contra conceitualmente a qualquer aporte de recursos público para a agricultura (o que seria lamentável), ou se em função do desacerto da forma como está sendo feito atualmente. “Distribuição”, da forma como foi utilizado o vocábulo, pode sugerir doação ou mesmo levantar suspeita, ambas indesejáveis, perniciosas, corrosivas. Nota final estimada: 3.

Finalmente, para a décima segunda pergunta, quanto à sensibilidade da burocracia dos órgãos públicos, bingo, nenhum dos entrevistados, ninguém, acorreu em defesa do servidor. Ele é visto como insensível, carente de cordialidade, fazendo favor em atender às filas imensas. Somente uma opinião fugiu à regra da reclamação, apondo um “depende”. Sugere a existência de alguém lá pelos corredores da gestão municipal fugindo à regra? Nota final estimada: 1.

Numa média geral das doze perguntas, apenas 27,7% concordam, ou aprovam, ou veem com bons olhos a atuação da administração, Prefeitura e Câmara, e utilizando a nomenclatura de avaliação escolar a cidade não consegue nota 3. Mais do que lamentável.

Resumo da ópera: há um comprido caminho a percorrer até se alcançar a plenitude do funcionamento das instituições democráticas. E se este diagnóstico e este vaticínio valem para Araxá, tanto assim também para a região e mais ainda para o país. Muita luta, esforço e boa vontade devem ser despendidos para se alcançar o desejado e apreçado empoderamento dos cidadãos, em condições tais que nos permitam afirmar, categoricamente, que vivemos em uma democracia.

Após um levantamento mais completo, podem e devem ser programadas diversas reuniões, transparentes, democráticas, sérias, de fôlego, tanto internamente na Prefeitura entre as secretarias, quanto também com lideranças, associações e população em geral para discutir. Que o povo não seja “apenas um detalhe”. O objetivo é aprofundar a análise de cada um dos itens, identificando origens, problemas, e tentar definir providências necessárias à sua solução. Será, certamente, um instrumento valioso para o desenvolvimento do plano estratégico da cidade e mais valia terá na medida do acompanhamento regular da variação, aplicando periodicamente o questionário.

Observação: o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) faz avaliação equivalente por meio dos seus “Indicadores de Percepção Social”.

Capítulo XI – A expectativa de quem espera

“A não ser que a ciência toda esteja errada, não somos anjos decaídos.”

Cumprido todo esse esforço de viagens e visitas, pelo menos dois ganhos eu auferi: um furo a menos no cinto e recuo no espaço ocupado pela minha ignorância. Aproximei-me mais do queijo, do turismo e das cidades. Ao mesmo tempo, confirmo em abalizado testemunho a complexidade da vida em geral. Constato, também, um tanto desalentado, que muitas coisas ficaram para trás — podia ter empreendido mais estudos, não consegui abranger tudo quanto desejava.

De certa forma, identifiquei proposituras de sociólogos modernos, captando “visão coerente e estável” das pessoas, mas talvez não tão consistentes no seu todo. Eventuais insuficiências enquanto pesquisador talvez tenham captado mais cada “eu” individualmente, e menos os papéis desempenhados pelos indivíduos na sociedade. Uma perda, pois somente das interações entre os membros do grupo se consegue extrair a principal matéria-prima para os estudos sociológicos. Ou, quem sabe, é bem provável também, os atores, na carência de prática, não souberam romper a distância entre o self e a sua posição como ator, dificuldade, talvez, aumentada pelas rápidas mudanças que vê desfilar em torno de si. Como se costuma dizer, quando estamos quase conseguindo as respostas para dilemas apresentados, lá vem a vida com novas indagações. Bem a gosto de Galeano, “caí do mundo e não sei como subir de novo”. A célere mutação dos valores nos assusta a todos, apavora. Sentimo-nos meio perdidos, sem tempo para “digerir”, não conseguimos captar a tempo uma percepção completa sobre o significado de cada nova ação antes de se apresentarem outras nesses tempos de mídia, de informação, de velocidade. Crise de personalidade e decomposição da cultura para Touraine, expressões de aberta provocação social e política, sexualidade explícita para Jameson, nada nos escandaliza, nenhum fato social, por mais estapafúrdio, nos atiça a indignação. Os desmandos de todos os tipos já são considerados normais, banalizados, tornaram-se o ar a respirar. É a “esquizofrenia” denunciada por vários autores, vivida por nós, os consumidores contumazes, “levados correnteza abaixo por um caudaloso rio de símbolos”, aponta Leff. Quando mal começamos a dar os pontos definitivos no alinhavado, tentando fechar as costuras, aparecem novos moldes mandando cortar tudo de maneira diferente. Um sufoco. Sentimentos coletivos de viver o absurdo.

A esse respeito, Jameson também notou que não estamos conseguindo “organizar passado e futuro em uma experiência coerente e, portanto, seria difícil esperar que conseguíssemos algo além de colecionar fragmentos e praticar fortuitamente o heterogêneo, o aleatório”. Todo mundo zumbi.

Por todas essas razões, talvez, eu não tenha alcançado a compreensão do “repertório sociológico” na profundidade desejada para trazer maior proveito. Possivelmente, somente elaborei esboços dos “esquemas recorrentes e onipresentes de ideias, de crenças e de comportamentos” citados por Lloyd.

Nem tudo está perdido. Independentemente deste trabalho, os espaços continuam abertos para novas pesquisas e análises. As muitas incógnitas permanecem à disposição de interpretações e avaliações.

Também fica validado o alerta apresentado no início do livro sobre as ciências sociais. Elas não oferecem receitas prontas para a solução dos problemas. A sociologia em particular está muito treinada em interpretar a vida, mas não consegue contribuir substancialmente para apresentar um “finalmente”, arrematar propostas, muito menos aquelas envolvendo transformação.

Sendo assim, talvez mais na condição de filho da terra, apresento abaixo considerações, quem sabe de proveito, para as populações em geral, para os poderes públicos, para as instituições e as empresas, no eventual interesse de desenvolver novos esforços em favor do desenvolvimento social local. Posso estar ensinado o “Pai Nosso” ao vigário, ou repetindo a mesma nota, já tantas vezes tocada por importantes autores. Vamos lá.

Pedro Demo considera como “nossas mais belas utopias”, a participação, a autogestão, as propostas comunitárias, a democracia, a autopromoção, a igualdade, o desenvolvimento e a qualidade de vida. Peço licença para destacar o primeiro item da lista, fundamento para todos os demais, assim entendo.

A participação, “ampla, geral e irrestrita”, de todos os segmentos da sociedade, no vigor da democracia é o básico, principalmente enquanto “forma alternativa de poder”. Somente através dela é possível montar, legitimamente, perspectivas correspondentes aos reais interesses da população, num processo permanente, 24 horas de cada dia, encadeados, sem falha, na conquista de si mesma e de um fim que não tem fim. Estrategicamente, pressupõe a preocupação em identificar o que deve ser feito para virar do avesso a realidade apresentada como dada, impingida, como se não pudesse ser transformada. Principalmente no Brasil, há anos de pernas para o ar, em cambalhotas, significa voltar a colocar os pés no seu chão. Por essa razão, durante todas as etapas de desenvolvimento de qualquer projeto de interesse social deve prevalecer um princípio básico: a única atuação válida de cima para baixo é a de fomentar a atuação de baixo para cima. Curto e grosso: a “administração pública é coisa muito séria para ficar na mão do governo”. O controle social está previsto na nossa Carta Magna, delineando a participação popular na gestão sob caráter democrático e descentralizado. Se as iniciativas não forem conduzidas através dela, da vontade dos que estão por baixo, o recurso segue em direção bem diferente. Abandonado à sua “natureza”, o dinheiro escorre rumo aos bolsos dos ricos.

Esta máxima da vigência da participação dos indivíduos como atores de seu futuro serve para todos os estratos de poder existentes em qualquer sistema que se isole em nossa sociedade, grassada por tão vergonhosa desigualdade social. Em uma unidade federativa, por exemplo, a única atuação válida do governador é abandonar o gabinete e sair a campo, fomentando a atuação de baixo para cima. Em uma cidade, o “Sr. Prefeito” estará muito bem se conseguir disseminar por todo o seu secretariado essa vontade de ver o povo à frente de todos os negócios públicos municipais. E assim por diante — uma epidemia geral.

A população deve participar. Again and again. Muito mais efetividade se vê na presença e na contribuição dos habitantes, os donos do lugar, tomando parte em todas as propostas, nas diversas fases, desde a concepção até a avaliação final. Comparando duas cidades, se uma conta com o apoio e o esforço de seus cidadãos, participando das discussões, se entregando às ações de seu interesse e cobrando resultados junto aos seus representantes, pela manhã, à tarde e à noite, sem cessar, e a outra se prende às benesses do poder, esperando, enquanto este se lambuza nas mesuras palacianas, vai-se inflando de vaidade da bajulação sem fim e se corrompe na locupletação de todos os tipos, indiferente às necessidades do povo. Assim, depois, decorrido um tempo, a primeira, progressista, democrática, livre, terá se distanciado tanto que dificilmente será alcançada por aquela, arcaica, aprisionada, submetida à ditadura de qualquer tipo, “coroada ou popular, civil ou militar”, autorizada ou não pelo voto.

Essa presença, efetiva e indispensável, dos indivíduos nos processos de interesse deve se dar, em pelo menos, dois eixos, interconectados, compartilhando vários espaços em comum.

O primeiro, no desenvolvimento da consciência quanto à existência dos planos de ação. Uma abordagem sociológica chama a atenção para os vários caminhos possíveis de atuação além da área econômica. É bom olhar assim, pelo menos para efeito de desdobramentos e apuro da criatividade. “O espaço social é composto por uma pluralidade de campos autônomos”. Muito embora todos eles possam estar vinculados à dominação e à dependência, muitos podem não envolver interesses financeiros obrigatoriamente, abrindo outros horizontes de atuação. Nessa ótica cai muito bem a expressão “capital social”, tão utilizada hoje em dia. Ela se refere a competências diversas a serem potencializadas em proveito do grupo, sem significar, necessariamente, relação próxima com poderes econômicos. Pelo menos, em princípio. São vários os exemplos desse tipo de atuação. Vejamos.

Arthur Rosa, meu genitor, era apaixonado por xadrez. Por iniciativa própria, sem ficar perguntando sobre o que poderia fazer pela cidade, conseguiu espaço, adquiriu as mesas, cadeiras e tabuleiros, e começou a ensinar o inteligente e curioso esporte a alunos da rede municipal de ensino básico. A receptividade foi excelente. Hoje a cidade abocanha expressiva parte dos troféus dos torneios regionais e estaduais. Cada um daqueles meninos e meninas, motivado pelas peripécias estratégicas dos valores e posições das peças, se aprumou em diferente disposição para os estudos, aspirou novo alento para a convivência, festejou outras percepções para a vida. Cada peão movimentado sobre o tabuleiro ajudou a construir trincheira contra as ardilosas investidas deletérias da vida moderna.

A “minha dona” Fátima estuda francês faz tempo. Sei lá porque, cismou com esse idioma. Recentemente, movida apenas pelo seu permanente e inalienável espírito humanitário, inquieta na sua preocupação com os menos favorecidos, instada na sua invejável disposição para tomar iniciativas e tocar avante projetos quando o objetivo envolve possíveis ganhos para crianças e adolescentes de comunidades de risco, pois bem, essa alma gentil e benfazeja um belo dia arranjou uma sala na empresa onde se sacrifica diariamente e no breve período da hora do almoço começou a passar o “je suis, tu es, il est” para moços e moças da população do entorno da usina. Ensinar francês pra quê? — perguntavam. É o que eu sei… respondia. Estas aulas podem não ter sido a única razão dos bons resultados auferidos, mas vários daqueles meninos depois cursaram faculdade. Um deles levou avante o gosto e chegou a trabalhar como intérprete. Duas alunas, inteligentes, tanto assim que logo abraçaram a oportunidade quando viram chegar essas aulas ao seu bairro carente, estão embarcando para a França e para o Canadá, conseguiram bolsas para aprimoramento de curso superior. Onde estariam hoje sem essas aulas? Voilà.

Henrique Natal Vieira estudou canto lírico em Belo Horizonte. Mais tarde, quando voltou para a terrinha, resolveu passar adiante seus conhecimentos na arte. Só mesmo vendo o preparo das vozes de tantos jovens que se beneficiaram de seus competentes ensinamentos, apoiados no acompanhamento, ao piano, de exímia artista araxaense das claves. Quais cidades da região contam com esse diferencial em sopranos, tenores e barítonos?

São cases para citar somente os muito próximos. Já narrei em capítulos anteriores mais exemplares presenças de cidadania. E tantos mais há de haver em meio à nossa generosa gente.

Um segundo eixo: o simples ato de decidir arregaçar as mangas e começar hoje mesmo. Se, digamos, limpando seu passeio e sua rua, participando de mutirões de construção, prestando serviços profissionais de sua competência aos conterrâneos, em especial aos mais necessitados, repassando seu conhecimento, participando das reuniões da Câmara Municipal, analisando as contas do “Sr. Prefeito”, então, se 30% da população adulta de uma cidade pudessem doar quatro horas semanais dedicadas a projetos desse tipo, definidos, assim, é como se ela contasse com cerca de 3% de seus filhos entregando esforço extra na sua construção, sem despender um centavo a mais do erário público. É um poder que se instaura, uma força hercúlea. Por essa via, um município, digamos, de 20 mil habitantes, arregimentaria 600 pessoas para trabalhar para ele, sem necessidade de recorrer aos cofres, normalmente de possibilidades limitadas. Uma cidade assim alcançaria esfera invejável de qualidade de vida. Focando a educação e a saúde, o IDH-M daria um salto formidável!

Em “São João da Serra Negra: sua história e sua gente”, Geralda Pereira da Silva nos apresenta um personagem incrível, um exemplo bonito de cidadão, como deve ser, pensando em seus semelhantes, na vida em comunidade, sem exigir nada em troca. Aristófanes da Silveira esbanjou boa vontade e coerência. O “Seu” Tufim, assim chamado, engenheiro prático, por vontade e conta próprias projetou e construiu uma ponte sobre o Rio Espírito Santo, um gerador de energia canibalizando peças usadas de veículos, um campo de aviação e uma pinguela pênsil — sim, senhor! —, e de boa extensão. Um feito seu sorve o hálito da poesia, não na frieza da métrica, mas no fôlego do espírito. Um belo dia, olhando a vila crescendo assim, meio desordenadamente, foi até à sede, Patrocínio, levar sua preocupação. O prefeito se sensibilizou e prometeu enviar um agrimensor para estudar o assunto. Dias depois, quando o técnico lá chegou com o milho, o Tufim já estava com o fubá pronto. Em desenho bem traçado sobre cartolina, apresentou ao emissário uma planta para a localidade, com as ruas, a praça e tudo mais. A aprovação foi imediata e, ato contínuo, puseram mãos à obra, desapropriando e marcando os logradouros em traçado bem-feito, ordenado, seguido até hoje. O homem pensava e fazia. “Craneava” soluções e as executava. Minha admiração e minha homenagem. Ninguém segura uma localidade com um Tufim em cada cem.

Tais atitudes favoráveis são construídas por processo, induzindo e na medida da seriedade dos poderes instituídos, da transparência das ações, na contagem dos frutos recolhidos, na honra ao mérito consignada pela própria sociedade, em insuspeita meritocracia, sem os vieses das estruturas de poder. Os rituais e mecanismos de comemoração de vitórias, de fazer justiça aos empreendedores, de prestigiar, de fortalecer a autoestima devem ser legítimos, independentemente de qual partido o cidadão seja filiado, do de plantão no poder ou não. Placas, medalhas, troféus, representação em encontros, viagens, treinamentos, entrevistas são as formas mais comumente utilizadas para reforçar a atuação. Democracia — esse é o nome do jogo. Tudo deve se dar no andamento da identificação e da reprodução da cultura, na clarificação dos símbolos e dos valores inerentes ao modo de ser da sociedade, na consciência da existência de um lastro cultural próprio do povo. É condição básica para consolidação e satisfação no sentido de pertencer para o fortalecimento das amarras sociais e para proporcionar riqueza de espírito.

São Roque, já vimos, foi favorecida por atuação desse tipo, de um punhado de homens (e de mulheres). Não pensaram duas vezes para fazer algo por uma cidade em situação obsidional estranha, sitiada também por dentro.

A população dos estratos de menor poder aquisitivo enfrentam limitações para participar. Tino e competência não lhe faltem, mas a labuta de sol a sol, a distância e as dificuldades materiais que se antolham cerceiam os graus de liberdade, encurtam o raio de ação. Nesses casos, são válidos os incentivos seletivos, tais como almoços no bairro, prefeitura ambulante, exibição local de filmes, palestras, cursos e apresentação de resultados, fornecimento de condução e lanche, etc. Todos devem emitir a sua opinião. Não existe o “idiota social” como regra. O que se vê mais presente é um enfraquecimento, uma submissão da dignidade pessoal das classes subalternas, condicionadas à autoridade e o descaso do patrão, do feitor, do coronel. Para mudar esse quadro falta é participação, treino. E só há um meio de conseguir isso: fazendo.

As cooperativas traduzem uma aplicação prática da primeira ideia acima descrita. As iniciativas já existentes em diversas cidades resultam da mobilização em torno da união de esforços para conseguir reduzir custos, aumentar a capacidade de barganha, diminuir a intermediação, melhorar o apoio técnico e mais tantas vantagens. Aula inaugural do curso de economia. Um seu parente próximo, o mutirão, é igualmente benfazejo. O cooperativismo é o locus privilegiado da objetivação das pessoas. Deixam de ser indivíduos, subjetivos, para, em associação de esforços, formarem o coletivo, objetivo, fazendo emergir soluções para os interesses comuns. As economias saudáveis foram construídas assim, na participação incansável, dia após dia, lá no chão, na base da reprodução material da vida. Também deve ser assim na feitura do queijo. O artesão precisa compor a sua família, estudar, exercitar mais a mente, tornar-se menos escravo da sua propriedade e do seu trabalho, desenvolver política, atuar nos sindicatos, nas cooperativas, toda hora, sem nunca ser, obrigatória e completamente, trabalhador, pai e político. E mais: bem recomenda Pedro Demo, tanto melhor serviço prestarão as associações se elas não se limitarem à função de abrigo onde, de pires na mão, se vai buscar benefício pessoal, mas sim, ao contrário, abrirem espaço onde se cultiva o confronto de todos os dias, mirando contra as forças que usurpam e se apropriam da vida comum.

O fomento à leitura e ao estudo é pedra angular. Ela ajuda a integrar teoria e prática. Muitas pessoas não compreendem bem isso, para elas são coisas distintas. Pior, para elas teoria é ocupação específica de filósofo, ou de gente desocupada, entendem que é coisa que não leva a nada, una scienza tale che com la quale o senza la quale il mondo gira tale e quale. Nada tão longe, da teoria e da prática, sempre de mãos dadas. Muito além disso, elas são dois polos de um mesmo imã, núcleo e protoplasma da mesma célula, inseparáveis. A existência é de ambos, ou seja, se um desaparece, o outro também se extingue. Não é possível gerar um deles, sem, ao mesmo tempo, parir o oposto. Ninguém consegue atar-se exclusivamente à prática, tornando-se obsoleto, e nem dedicar-se somente à teoria, reduzindo-se ao diletantismo. O Luciano notou que as janelas metálicas de sua queijeira estão se oxidando sob a ação dos vapores salitrados emanados da cura. “Bolou” a alternativa do uso da madeira e vai propor junto aos órgãos da área a alteração das especificações exigidas. Montou teoria. Ao mesmo tempo, mantém em sua fazenda muitos escritos — ele sabe que precisa ler livros e revistas para se atualizar e eventualmente “maquinar” e aproveitar ideias. Isso é prática.

Uma pedra angular das orientações vem da necessidade inarredável de se vivenciar, proteger e perpetuar a história local. Todas as ações devem se revestir desse princípio da defesa da memória, tornar um vício, no bom sentido, mantendo preocupação permanente, e atando-se mesmo a uma mania com seu passado, de forma a garantir a sua efetiva presença e manifestação em todas as interações sociais. Por exemplo, montagem e enriquecimento de museus (em especial o do homem local), de fundações voltadas para a perpetuação do conhecimento e da vida, de academias diversas e de cooperativas funcionando também como ponto de apoio e até mesmo repositório do padrão cultural e dos feitos do passado, e tantas iniciativas mais de muito bom proveito. A população e as instituições devem emprestar prestígio constante em favor de tudo que tocar a cultura, a tradição, o queijo, as festas, as personalidades, as lendas, tudo, enfim, através de divulgação, pela mídia em todas as suas formas, nos eventos, nos espaços públicos e fomentar a consulta às referências históricas em toda a discussão de interesse da sociedade. O bom cidadão nesse caso deve ser, com perdão da má palavra, um “inconveniente”, “só pensa naquilo”, emprestando também seu apoio e seu aplauso a todas as iniciativas de escrita sobre a história do lugar e sua gente, à preservação da fé e de suas imagens e dos equipamentos.

Também é ponto de sustentação o beruf, a vocação, no desenvolvimento e na consolidação do jeito local de atuar. Em função de condições econômicas históricas, cada cidade monta ao longo do tempo um conhecimento específico de sobrevivência. Ele envolve basicamente o saber lidar com o modo e os meios de produção apropriados no processo de assentamento, no desenrolar o cotidiano, na interação entre teoria e prática. Nossas cidades desenvolveram a lida com a pecuária, nos seus primórdios, aprenderam o manejo do gado e a trabalhar a terra para o seu sustento, uma ocupação envolvendo o aprendizado de técnicas, instrumentos, ciclos da natureza e coisas assim. Esse quadro manteve-se assim, sem grandes alterações, por quase duzentos anos, com aportes de “faiscagem”. A partir da segunda metade do século passado, pelo menos duas importantes mudanças foram introduzidas. A diversificação do plantio com os avanços da genética (deu a partida com o tal de milho híbrido), e a chegada da indústria (mineração e turismo), nesse caso, começando em Araxá, em especial depois da espetacular metamorfose “da maloca ao palácio”, das banheiras rústicas ao Grande Hotel, dos urros e chifradas do gado para a frequência em noitadas na boate, abrilhantadas por cantores de renome nacional. Estes dois entrantes, mormente o segundo, trouxeram com eles desdobramentos cruciais, nas novas necessidades de conhecimento, estabelecendo, pelo menos, mais um talento comunitário em todas as suas manifestações diretas, do receber, e indiretas, onde se destaca o artesanato. Na virada para o Terceiro Milênio, começa a despontar nova componente, a agroenergia. Certamente, demandará mais conhecimentos e novas relações entre os indivíduos, aumentando tanto a complexidade quanto as exigências.

Decorre daí uma dúvida. Muita saliva, tinta e papel já se gastou sem se conseguir chegar a um finalmente, bem assentado. Qual é preferível? A especialização, concentrando conhecimento e esforço em uma atividade, em um pendor, ou a generalização, atuando em vários campos de saber. A demanda é a principal mola propulsora da escolha. Se para o mundo Medeiros deve se concentrar na produção de queijo, assim deverá ser. Mas este talvez seja o início da conversa. A resposta influencia o destino, por exemplo, no caso do turismo. Se um lugar não corresponde às necessidades, haverá uma tendência ao amortecimento ou mesmo o encerramento da atividade. Ou, dito de maneira diferente, tanto mais promissora será a ocupação quanto melhor resposta se conseguir dar às demandas dos forasteiros. Por certo, pelo menos teoricamente, quanto maior a cidade mais pessoas poderão assimilar a competência necessária. Cada lugar deve resolver se opta pela dedicação em uma especialidade, de um nicho exclusivo, ou na generalidade da ocupação diversificada. Eis o dilema: aprofundar e atuar profissionalmente num determinado tema, em reconhecida competência, em aclamada excelência naquele setor, ou abraçar de forma algo improvisada três ou quatro misteres, alcançando, na soma final, um bolo igualmente favorável, em realização pessoal e em contribuição para o desenvolvimento. Certo é, convenhamos, que fica mais difícil ser “vidrado” com um rincão sem um ponto de apoio mais distinguido. Por que você gosta e fala tanto da sua terra? Ah, porque lá não tem nada de especial!…

Cidades como São Roque, querendo ou não, deverão conviver com a invasão das digitais. A resposta será determinante para a montagem histórica do processo.

Os famosos doces artesanais de Araxá se deram muito bem. De onde veio essa saborosa tendência? Como se deu o processo de sua instalação? Além de incutida nos valores e tradições, a atividade é reforçada pelo turismo, e talvez até tenha caminhado com pernas próprias por um bom tempo ou mesmo motivado a ida de pessoas até lá. Atualmente, as ameaças pairam sobre o sucesso. Uma bem- sucedida empresa de fora, industrializa e vende doce em todo o Estado no proveito do nome da cidade. Enquanto isso, a Vigilância Sanitária determina a substituição dos tradicionais tachos de cobre, colheres e tampos das mesas de madeira por equivalentes em inox (mesma coisa, alegação da melhor higiene, parecer social). Resultado: as autoclaves vomitam produção aditivada, padronizada, ionizada e os artesãos, da fabricação no quintal caseiro, de fixação de empregos no lugar, vão encerrando suas atividades. Sou testemunha dessa história, com estudo de caso dentro da família. O estrondoso sucesso do doce de Araxá pode ter sido também o dobre dos sinos da sua extinção. Dialética, “trouxe no germe do berço o verme do túmulo”.

A agroenergia, nova atividade no campo, vem atropelando, passando por cima de tudo, qual rolo compressor. Como conciliar com demais necessidades e interesses? Cabe à sociedade estudar, avaliar, decidir. A fixação do homem no campo, uma intenção tão anunciada, prometida e presente nos programas despencados, serve bem de indicador do alcance dos efeitos desejados. Se providências adequadas não forem tomadas, a atividade vai repetir a mesma ladainha socioeconômica de tantas investidas anteriores: a concentração da riqueza gerada, o enfraquecimento da pequena propriedade, o subemprego, a ocupação sazonal e a retração na produção de alimentos, a desigualdade social. Diante da miséria que se abate sobre o Estado do Rio de Janeiro, das desgraças resultantes das enchentes e deslizamentos de sempre, primeira dança macabra de cada ano, mesmo nadando em petróleo, as pessoas perguntam: e agora, o Pré-sal vai resolver? Esquecem a história. Essa indagação já foi feita várias vezes. No século XVII: a cana-de-açúcar nos retirará deste sufoco? E o ouro, no século XVIII? E o café no século XIX? E as indústrias, a soja e o petróleo no século XX? O que diremos no século XXII, remontando aos dias de hoje, sobre a reentrada da cana, mais soja, macaúba, girassol, pinhão manso etc., para produção de biocombustível? Quais frutos teremos colhido? Desenvolvimento efetivo, no proveito do homem do lugar, ou mais apropriação por poucos da riqueza gerada? Previmos e discutimos a destinação dos resultados do esforço, se ficou a justa paga para a terra e os seus habitantes?

(foto de chaminé poluindo)

Uma indústria no nosso campo. E o céu azul já não era.

A agropecuária, a agroenergia e o turismo serão os três principais atores econômicos presentes em cada uma das cidades da região durante, pelo menos, a primeira metade deste século de abertura deste Terceiro Milênio da era cristã. De que forma cada uma delas destacará sua vocação?

Desenvolvimento também é palavra-chave. Vamos entendê-la como “produção para solidificar o processo de autopromoção, de democratização e de autogestão”, interna, da sociedade. “Significa colocar o bem-estar da maioria como ponto principal de referência, porque o crescimento que não satisfizer pelo menos as necessidades básicas de todos, no fundo não é defensável, pois é um processo de acirramento dos conflitos sociais”. E é bom ter bem claro: as próprias pessoas são as responsáveis pela definição dessas necessidades básicas. Não pode ser doação, na base do “tome aí”, você precisa é disto e aquilo, vontade controlada.

Sobre a produção de queijo, cito a oportuna recomendação do Prof. José Menezes:55 “É importante sinalizar, entretanto, que o desenvolvimento de políticas que garantam a sustentabilidade da produção do queijo artesanal de Minas deve atentar para o fato de que como se trata de um modo de fazer rural, de comunidades rurais e de pequenos aglomerados urbanos, (…) e incorporar novas perspectivas de desenvolvimento que não tratem o objeto em questão segundo parâmetros quantitativistas e uniformizadores de políticas de desenvolvimento urbano-industrial. O mito do crescimento econômico como via única de promover o desenvolvimento social não se aplica aqui. Espaços rurais dispõem de lógica diferente exigindo tratamento diferenciado.” Não se coaduna totalmente porque o modo artesanal nos fala de condicionamentos não incluídos na ótica industrial, na conta capitalista. Devemos até reforçar que, em certas circunstâncias, a produção artesanal talvez encontre sua razão de ser mais na perenização da história, na preservação de valores e maneira de ser, na fixação do homem no campo, porque do ponto de vista de logística, capacidade de divulgação, luta com armas desiguais diante de outras atividades, embora chegue ao consumidor pela metade do preço de um queijo mozarela, por exemplo. Sua vida se desenvolve em plano distinto, segundo processo mais vivo, mais ético, mais humano.

A cultura de projeto está intimamente conectada às indicações acima, ou mesmo funcionando como um cobertor de todas elas. Todos os esforços devem ensinar, reciclar e aprimorar localmente o trato com as ações organizadas, sistematizadas, apresentando rumos, prazos e formas de verificar se foram obtidos os proveitos esperados. Importa que esteja inarredavelmente ligado à ideia do poiesis, de algo lançado com um objetivo único e bem definido, avaliável, decorrido um tempo previamente fixado. Pressupõe visualizar um futuro desejado, construir o mundo segundo aspirações próprias, internas, legítimas, de dar sentido à participação, de perceber de vista limpa que “não há destino sem projeto”, ensina-nos Argan, e vice versa. Funtowicz e De Marchi falam de conhecimento público naquele que emana da comunidade e persegue o bem comum. Renunciar a esta prerrogativa, desvestir deste direito é entregar a interesses alienígenas a propriedade do conhecimento local, é delegar para estranhos a tomada de decisões sobre questões internas, é abrir mão da condução do carro socioeconômico rumo ao próprio futuro. E, ainda, talvez o mais importante, todo projeto deve ser concebido e levado ao fim, de modo a se tornar histórico, ou seja, de tal maneira que, durante o seu andamento e alcançado o seu final, deve ter proporcionado algo muito valioso para a sociedade, terá marcado seu tempo, trouxe em si a sua justificativa, se fez presente através de contribuição relevante. Será rememorado para sempre, festejado, por ter renovado as pessoas, para as pessoas, conseguido proporcionar um olhar para além da

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55 MENESES, José N. C. Dossiê interpretativo sobre queijo artesanal. Belo Horizonte: Iphan, 2006.

construção do mundo, ter “representado alguma ruptura com o presente e uma esperança para o futuro”, bem assim lucubrou Gondotti.

Operacionalmente, os projetos devem incluir a discussão científica e o consenso democrático sobre complexidade ambiental e sustentabilidade. Seus passos devem se lastrear em pormenorizada análise sobre aspectos institucionais, tecnológicos e expressivos. É a sociedade organizada tocando a discussão sobre as estruturas vigentes, sua utilidade, modificando relações básicas dos organismos sociais, reinventando-se socialmente. É o aprimoramento da tecnologia via conhecimento científico, sem rezas ou consultas aos oráculos, no caminho de competência específica, construindo um pendor próprio. É a expressão referida à dimensão humana, tratando do fortalecimento dos valores apreçados, em especial aqueles mais voltados para a cultura de participação.

Vejamos agora algumas propostas correlatas, aplicáveis de uma maneira geral a todas as cidades do circuito objeto do estudo.

No decorrer do livro apresentei para discussão diversas sugestões em favor da produção do queijo e do desenvolvimento do turismo, ou ambos. Listei somente as possíveis, as viáveis. Não incluí planejamento familiar, reforma agrária, controle de imigração na cidade e assemelhados, difíceis de conseguir, ou mesmo impensáveis. Nem ao menos citei reabertura dos cassinos, no reforço do turismo, alternativa fora de cogitação, pois a atividade encontra-se sob caráter de reserva de mercado. Vejamos algumas outras ideias.

Aprimoramento da prestação de contas. Como é feita a divulgação mensal da contabilidade financeira e do balanço social como um todo do município? Deve ser simples assim: tínhamos tal montante no final do mês passado, foi arrecadado tanto nos seguintes impostos e taxas, gastamos tanto nas seguintes rubricas, restando o saldo tal. Uma folha de papel seria suficiente para ser lida pelo locutor da emissora de rádio, colada nos quadros dos saguões da Prefeitura, da Câmara, das instituições, das indústrias e do comércio, e distribuída em cada sala de aula, etc. Ah! No rodapé do papel o 0800 e o site para maiores consultas, comentários, sugestões, indagações, críticas (crítica: vocábulo sagrado, definindo posição, seja favorável ou contra, aprovando ou discordando, mostrando dados, recorrendo à história, sem favor, sem preconceito, sem intenções além do progresso de todos).

Orçamento participativo. Quanto do bolo arrecadado está sendo discutido pela população? Qual o processo de avaliação da aplicação do dinheiro? Todos os empregos gerados na Prefeitura são entendidos como válidos, necessários, oportunos? A quantidade de secretarias e servidores corresponde à efetiva necessidade de resposta à complexidade de problemas a serem enfrentados ou traduzem simplesmente o esforço de acomodação de todas as forças envolvidas na disputa de poder ou do exercício do nepotismo, corroendo a democracia? De que necessitamos mais? Vereadores ou professores, médicos e enfermeiros?

Incentivo à formação e aprimoramento de manifestações artísticas (corais, sinfônicas, etc.) é, também, bastante alvissareiro. Toda igreja, pelo menos uma vez por mês, deveria acolher apresentação musical. Vargem Bonita apreciando a missa de São Sebastião, de Carlos Gomes, ou a praça central de Medeiros, lotada, deleitando-se com o Stabat Mater, de Rossini, coisas assim. A banda local pode fazê-lo. Não faltam cantores pelas cidades para entoar os solos. Luiz Marchesi, padre conselheiro do Ginásio Dom Bosco, conseguia de nós, pequeninos, um ruidoso, mas afinado Sanctus da missa de Réquiem de Verdi, numa pequena cidade perdida nesse fim de mundo. Por que não agora, com muito mais recursos de comunicação e de deslocamento? O órgão da Igreja de São Francisco de Carmo do Paranaíba está à altura da sua imponência e da fé local?

O 7º Festival Regional do Queijo Canastra, com palco em Medeiros, foi abrilhantado com a apresentação de uma orquestra jovem. Aplauso e incentivo. Para esta e mais uma dezena, se for possível. Abre-se um mundo à frente de cada infante que aprende a tocar um instrumento musical. Não somente para a arte, mas também para história e sensibilidade, geografia e convivência, psicologia e percepção, sutileza, civilidade, cidadania, apuro estético… a lista não tem fim. Sua cidade não conta com um projeto de orquestra jovem, voltada para comunidades carentes? Pois trate de cuidar disso. PJ. Pra já.

Incremento e desenvolvimento da vocação turística, aprimorando a hospitalidade. Colaborar na implantação, manutenção e melhoria dos pontos e equipamentos de atração, assim como da sua divulgação, dentro e fora dos limites da cidade.

Criação de incubadoras de base tecnológica e centros de excelência. Cada lugar deve montar a sua, associada às atividades de interesse. Cidades como Bambuí, Piumhi, Araxá, Rio Paranaíba contam com universidade, Emater, associações, sindicatos, enfim, as instituições necessárias e suficientes para a operacionalização de iniciativas desse tipo, sem falar, é claro, da Prefeitura.

Criação do instituto para estudo, desenvolvimento e criação de uma malha de identificação dos municípios do queijo de leite cru do oeste mineiro, nos moldes da Estrada Real. Uma associação de cooperação com esse empreendimento de sucesso seria oportuna para aprendizagem e apoio nos passos a serem seguidos, analisando também as interações com projetos já implantados como Circuito Tropeiros de Minas, Rota Turística do Rio Paranaíba, Circuito Caminhos do Cerrado e quantos mais houver. Há beleza, cultura e história bastante para alimentar dezenas dessas propostas.

O desenho equivalente para o nosso “Roteiro do Queijo do Oeste Mineiro” ficaria parecido com o de uma “espinha de peixe”, abrangendo os 37 municípios da produção dos três “redondos” de leite cru. O eixo central da rede começaria em Piumhi, passaria por São Roque e depois tomaria o rumo norte unindo as cidades de Medeiros, Bambuí, Tapiraí, Campos Altos, Santa Rosa, São Gotardo, Arapuá, Carmo do Paranaíba, Lagoa Formosa, Patos de Minas, Presidente Olegário, Lagamar e Vazante. Desta linha dorsal, partiriam seis radiais. Quatro delas seguiriam em direção a oeste: a primeira abrangeria Vargem Bonita e Delfinópolis; a segunda alcançaria Tapira, Sacramento e Conquista; a terceira interligaria Pratinha, Ibiá, Araxá, Perdizes, Pedrinópolis e Santa Juliana (e também Uberaba, se esta for incluída no circuito) e a quarta Rio Paranaíba, Serra do Salitre, Cruzeiro da Fortaleza, Guimarânia, Patrocínio, Coromandel e Abadia dos Dourados. Dois pequenos braços para leste alcançariam duas cidades cada um, Matutina e Tiros, Varjão de Minas e São Gonçalo do Abaeté.

Uma das peças de divulgação seria um guia turístico, com mesma formatação e proposta já existentes, apresentando, para cada cidade e caminho, as igrejas, os museus, artesanato (com destaque para o queijo), rotas de degustação, cultura, festas civis (juninas, rodeios) e religiosas (Semana Santa, Corpus Christi, dia do santo padroeiro, Festa de Reis, romarias, congados, cavalhadas, catupés), sítios ecológicos, atrações naturais (cachoeiras, rios, serras, etc.), além das informações sobre hotéis, pousadas e restaurantes. Na Serra da Canastra já existem anúncios dessa perspectiva. Já foram instalados diversos “totens” nas estradas, indicando posição e direções. Não falam em queijo.

A comunicação é pilar de sustentação. Não adianta fazer se não alardear, deitar propaganda, vender. Envidar todos os esforços, nas mais diversas oportunidades, no sentido de incrementar a divulgação do queijo de leite cru, artesanal, legítimo. Esta proposta é comum a todos os escritos sobre o tema. Sem propaganda, tudo fica muito difícil. O que eu posso trazer de contribuição é sugerir uma expansão deste conceito, com a própria população devendo participar ativamente da divulgação. Meus levantamentos mostraram um “indivíduo-queijo” acanhado, raquítico, esquálido, de presença bem abaixo do esperado ou imaginado, comparativamente. Deveria ser maior. Quando viajo para “Sumpaulo” ou Rio, os parentes e amigos, antes mesmo de cumprimentar, perguntam se eu trouxe queijo. Os patrícios de outras plagas, pelo menos parece, guardam de forma límpida esta relação “Minas-Queijo”. Por que será? Talvez querendo exibir conhecimento, ou mostrarem-se simpáticos, ou sem preocupações com a lida, com os problemas de produção, as aperturas financeiras, para eles fica como referência somente a presença final do bom queijo. Pelo menos perante o forasteiro devíamos “badalar” mais este nosso patrimônio cultural. Como fazer isso? Não sei bem qual o melhor caminho. Sei, porém, tratar-se de cuidado para cada dia, um processo, incessante, aproveitando todas as oportunidades. Sei também que demanda tempo, é demorado, mas não custa muito.

Melhor parar por aqui. Ideias para puxar forças de atração não faltam. O problema é conseguir formas e verba para a sua materialização. A participação das instituições, das empresas e da população em geral amplia as possibilidades para se conseguir erguer monumentos, ajardinar e conservar praças, reformar a igreja, construir o centro de atendimento e treinar pessoas para receber o turista, colocar bancos artístico-temáticos nos jardins, maquetes, painéis, relógios, fontes luminosas, banheiros públicos. Alguns movimentos não custam tanto: fomento e revigoração das festas e certames anuais, congressos e convenções; incentivo à participação de todos nos grêmios, corporações, sociedades corais; divulgação junto aos grandes centros; institucionalização da responsabilidade de cada um pela limpeza das ruas; melhoria constante dos sites das prefeituras municipais e medidas similares. Existem milhares de instituições, no Brasil e no exterior, muito sensíveis, receptivas a um bom projeto, bem elaborado. As propostas voltadas para meio ambiente, desenvolvimento cultural e sustentabilidade encontram lugares de boa aceitação e aprovação. A maioria das ideias aqui apresentadas envolve esses três elementos básicos.

As prefeituras municipais contam com pessoal qualificado e estão empreendendo ações no sentido do desenvolvimento social, mas o poder público deve avaliar a necessidade da criação de uma secretaria executiva independente, vinculada diretamente ao prefeito, para cuidar da coordenação de todos os esforços. Ela cumpriria esse papel de cadastramento de possibilidades e coordenar a elaboração multidisciplinar de projetos sociais. Funcionaria como escritório de um canteiro de obras, centralizando as informações e cuidando da sinergia de todos os trabalhos, principalmente pela minimização da duplicação de esforços. Esse núcleo, uma agência de desenvolvimento socioeconômico, não teria poder executivo funcional, de competência específica das secretarias respectivas.

Finalmente, insistindo, a instauração da plena participação coincide com a derrocada do reino das farsas. Quanto mais mérito se encontrar na solidariedade do homem comum, mais democracia se constrói. Quanto maior for a presença de todos os cidadãos, maior será a vigência da justiça.

Muito recentemente, encontrei em banca do Mercado Central um novo queijo especial, semicurado, de nome “Patrimônio Mineiro”, produzido em Cruzeiro da Fortaleza. Um Cerrado picante, pra lá de muito bom! Ao mesmo tempo, assisti ao brilhante filme documentário “O mineiro e o queijo”, produzido por Helvécio Ratton. São duas referências importantes. Mesmo que em velocidade aquém da desejada, as coisas estão acontecendo. Novas entrantes na retomada da produção do legítimo queijo do oeste mineiro e esforços de divulgação do nosso patrimônio. Espero que este livro contribua para esse fim.

Quando este livro ficou pronto, parti para a elaboração de projeto para ter sua edição sustentada pela Lei Rouanet. Consegui. Um ponto a mais para o governo, que viu no trabalho alguma importância.

 

Agora, ao apagar das luzes do ano da graça de 2011, os bons ventos sopraram duas auspiciosas notícias sobre a saga do queijo de leite cru do oeste mineiro, em especial o Canastra.

A primeira veio do MAPA, que, através da Instrução Normativa nº 57, de 15 de dezembro, liberou a produção e a comercialização do queijo em determinadas condições. Assim, nosso protagonista não mais figurará nas páginas policiais. E melhor: abre perspectivas para entrada no mercado internacional. Ora viva! Em vista disso, revejo o que escrevi sobre aquele ministério. Parabéns!

A outra foi bafejada pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), que estabeleceu indicação geográfica para Piumhi, Vargem Bonita, São Roque de Minas, Medeiros, Bambuí, Tapiraí e Delfinópolis como reserva da produção do legítimo Canastra. Ora viva, ora viva! De agora para frente, apertando o cerco e fazendo o trabalho de conscientização, vamos ver os rótulos CANASTRA, ARAXÁ e SALITRE independentes, orgulhosos, identificando cada um a sua origem, cada um com seu sabor e sua história, cada um com a identidade que é sua, mas todos com qualidade!

Galeria de Referências Bibliográficas

Livros

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Textos

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Resumo legislativo

    1. Constituição Federal – Art. 216 – “Os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I. As formas de expressão; II. Os modos de criar, fazer e viver; III. As criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV. As obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V. Os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
    2. Decreto nº 70.355, de 03/04/72. Cria o Parque Nacional da Serra da Canastra, no Estado de Minas Gerais, com os limites que especifica e dá outras providências.
    3. Lei nº 14.185, de 31/01/02. Dispõe sobre o processo de produção do queijo Minas artesanal.
    4. Lei nº 14.581, de 17/01/03. Cria o programa estadual de incentivo à produção do leite – Pró-leite. Define seus objetivos, estabelece competências e origem dos recursos financeiros.
    5. Decreto nº 42.645, de 5/06/02. Aprova o regulamento da Lei nº 14.185 citada. Define o que seja queijo Minas artesanal. Estabelece características microbiológicas. Define as fases de fabricação. Estabelece preceitos de higiene, regras de cadastramento no IMA, condições da água a ser utilizada e das instalações da queijaria, rotulação e transporte.
    6. Portaria IMA nº 517, de 14/06/02. Estabelece normas de defesa sanitária para rebanhos fornecedores de leite para produção do queijo Minas artesanal.
    7. Portaria IMA nº 518, de 14/06/02. Dispõe sobre requisitos básicos para instalações, materiais e equipamentos na fabricação do queijo Minas artesanal.
    8. Portaria IMA nº 523, de 03/07/2002. Dispõe sobre as condições higiênico-sanitárias e boas práticas na manipulação e fabricação do queijo Minas artesanal.
    9. Portaria IMA nº 818, de 12/12/2006. Baixa o regulamento técnico de produção do queijo Minas artesanal e dá outras providências.
    10. Parecer nº 006/06. Ministério da Cultura. Iphan. Departamento do Patrimônio Imaterial – Gerência de Registro. Ana Lúcia de Abreu Gomes.

Outros

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Posted by brasil2049

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