Queijo Minas Artesanal, um vencedor.
Garantido sabor e qualidade, uma especiaria das Alterosas


Capítulo IV – Agora eu PVC. Ai de mim!

Clique aqui para ver o sumário com todos os capítulos disponíveis

Inseto com asas em fundo branco

Descrição gerada automaticamente

O século XX

É antigo o meu apego pessoal ao nosso queijo. Desde a mais tenra infância desfrutei da sua presença bonita e benfazeja, tão cheiroso, ingrediente de receitas, polvilhado sobre a macarronada domingueira, ou em parceria com os doces caseiros de vários tipos. Cresci junto envolto em nutrição e cultura, além dos restritos limites desta aspirante contribuição sociológica.

Tais laços, bem atados, ensejaram vantagens no desenvolvimento deste livro e, também, convidaram à autossocioanálise citada por Bourdieu, da própria relação histórica com o objeto de estudo, cobrando atenção redobrada forcejando exorcizar os vieses, tanto quanto possível.

Esses vínculos remontam ao meu avô paterno, Ernesto Rosa, etrusco. No início de suas muitas atividades empresariais, foi queijeiro, nos 1920 e lá vai fumaça. Escoava o produto de forma aparentemente inviável, de se admirar mesmo como conseguia fazer chegar a bom termo aquela peripécia toda. Eis um resumo, contado aqui e ali pelos descendentes e um pouquinho conforme narrado por ele mesmo.

Percorria a cavalo a região, principalmente a Buraca, com maior concentração de produtores, à época. Comprava, levava até Araxá, juntava em carro de bois com outras coletas e transportava rumo à Estação de Conquista, um terminal avançado da Mogiana, da banda de cá do Rio Grande. Ali, valendo-se dos serviços do chefe ferroviário, embarcava a carga com destino à capital paulista, onde alguém contratado desembaraçava e se encarregava da distribuição.

Foto preta e branca de uma árvore

Descrição gerada automaticamente
Foto preta e branca de pessoas sentadas

Descrição gerada automaticamente

Década de 1920. Ernesto Rosa, queijeiro e a etapa final de escoamento, através de ferrovia, que naquele tempo existia.

Observa-se na foto: os queijos estão mais do que curados, duros, depois de dezenas de pernoites nas fazendas antes de conseguir vender. Boa resistência ao sacolejar da longa romaria até o destino.

E compensava vencer esse emaranhado. A profissão continua rentável. Crianças e idosos, homens e mulheres, protestantes e católicos, cruzeirenses e atleticanos, não importa, continuam apreciando.

Apegamo-nos ao gostoso e saudável costume de saborear o queijo na mesa, enquanto aprendíamos a diferenciar características. A minha cidade natal era importante centro de distribuição. Ainda na década de 1940, dentro do depósito, um “chapa” jogava habilmente meia dúzia de peças, e o companheiro na carroçaria, pisando em cima, as empilhava em várias camadas até completar a carga. Depois cobriam com lona. A gordura impregnava tudo, botina mateira, coberta e madeirame, pulmões e espírito. E saiam os caminhões carregados daquelas “rodelas”, duras, demandando São Paulo, recendendo estrada afora o cheiro maturado, em olor inconfundível entrando pelas narinas e gravando na lembrança.

Mais pessoas passaram a coletar, armazenar e distribuir. A atividade se intensificou. A logística aparelhou-se, acompanhando o crescimento da rica ocupação. Mais veículos na frota, novos depósitos, demandando mais braços. O site da Emater narra:

“Os funcionários dedicavam-se às funções de receber os queijos, selecioná-los e acondicioná-los nas grades de madeira onde passavam pelo processo de higienização e pesagem. Lavados os queijos, eram colocados de pé, nas grades, ocupando posições conforme a consistência e o grau de maturação apresentados… Antes do transporte, as peças ganhavam um banho de óleo de cozinha visando à conservação do seu teor de gordura. Em frente aos depósitos, secavam ao sol as lonas estendidas sobre o passeio e parte da rua. Os caminhões eram forrados com tecido de algodão cru. Visando melhor conservação, às vezes, os queijos recebiam camadas de sal.”[1]

Este trecho vem a calhar. Percebe-se o cuidado envolvido nesse elo da cadeia. Mais ou menos há cuidado a cumprir, sob pena de perder a carga. Em um depósito de Cruzeiro da Fortaleza, por exemplo, três empregados lavavam as centenas de peças mergulhando-as em um tambor com água.

A fama do queijo foi se consolidando e o século das duas guerras mundiais viu sua demanda crescer continuamente. Os novos meios de transporte operaram uma mudança, uma evolução. Se “em antes” era coisa de três dias em carro de bois, agora a viagem se cumpria em poucas horas, com caminhões em percurso melhorado, facilitando a distribuição, atendendo e fomentando o comércio. O pequeno fazendeiro ouve o chamado e procura aumentar a produção, sentindo-se mais seguro nos contratos de compra garantida, informais, não importa.

Nesse tempo distante o telefone era a novidade. Funcionava através de uma central onde, manualmente, eram feitas as conexões de fios, conforme o destino solicitado. O usuário girava a manivela do seu aparelho indicando para a mesa que alguém deseja fazer uma ligação:

  • É o Borges, respondia o “telefonisto”, com voz arrastada.
  • Ô Borges, liga lá no Valter, quero comprar manteiga.
  • Compra no João de Senna, está mais barato.

Luta desigual contra o capital.

Tudo seguia bem, mas… “Na década de trinta, eu não sei em qual desses anos a recessão foi mais acentuada. As notícias de mudanças das famílias retratavam a desolação daqueles tempos difíceis. A tristeza, a desesperança e a dificuldade de alimentação, com o passar do tempo, provocaram o êxodo, de maneira vagarosa, silenciosa, até ruir o último rancho, abandonado, e nada mais sobrou além das recordações das vidas sofridas de cada família, do vazio e da solidão” lamenta Joãozinho Leite. “A cidade morria devagar” [2]. O mundo ensaiava mais globalização, no encontro mais estreito das economias. Os Estados Unidos contraem gripe forte, nós aqui baixamos hospital com pneumonia dupla.

Em 1952, um importante fato se deu. Quem sabe diante da pressão, convencido pelo lobby dos poderosos, o governo brasileiro, através do Ministério da Agricultura, edita a primeira lei de qualificação do queijo, emulando aqui a lógica ianque de favorecimento da produção em alta escala, industrializada. As chaminés da pasteurização venceram uma grande batalha. A partir de então o queijo artesanal tornou-se um proscrito, um cruzamento de Pancho Villa com Robin Hood, opondo-se às ditaduras e tirando dos ricos em favor dos pobres.

O capital, munido de argumentos defensáveis, alcançou o objetivo de retirar queijos artesanais das prateleiras de todos os empórios. Os interesses políticos e econômicos normalmente selecionam uma faceta parcial da realidade: queijo industrializado é mais limpo, mais seguro, dizem. Em sociologia, costuma-se chamar essa versão, a que é apresentada, de “parecer social”. O importante, o crucial da decisão, está por trás da aparência, na outra face da moeda, escondida, onde se estampa a explicação completa: é o “ser social” (no caso em questão, a pressão exercida pelos produtores em massa, das grandes corporações, do lucro). Na lógica monopolista, importa eliminar os concorrentes, de olho na apropriação de mais fatias do mercado. No parecer social nos incutem a ideia de higiene, da necessidade de uma vida saudável e eliminação de tudo que pudesse representar perigo à saúde das pessoas. No ser social escancara-se o interesse das indústrias.

Divulgando as vantagens do alimento industrializado, convencem quanto à necessidade de se atender a demandas orgânicas e ocultam a forma de produção e seu conteúdo de tantos aditivos. Rotulam o tradicional, nosso, de antiquado, superado ou mesmo nocivo. Buzinam a crença na ineficiência da produção doméstica, não confiável. Contado um tempo, o falso se torna “verdade”. Pressionaram constantemente suprimindo pouco a pouco a alimentação qualitativa, nos moldes antigos do fogão da vovó Maricota, repondo no seu lugar as fórmulas mágicas de calorias e vitaminas, com pitadas bem dosadas de produtos importados de transnacionais, no pressuposto do seu monopólio de seriedade. É a ideologia do nutricionismo, apurado, sem estética, esterilizado.

No mundo globalizado, a industrialização vai impondo um cardápio universal, diversificado é verdade, na gama de produtos e serviços oferecidos, mas todos eles equalizados na artificialidade dos compostos químicos. O saboroso de fórmula envenenada. O aromático sintético sufocante. Forçam crescente tendência rumo à oferta de alimentos de maior concentração energética, promovida através da abundante produção de “delícias”, de alta densidade nutriente e menor custo.

Convencem as pessoas ser normal e até moderno comer fast food com cheiro horrível de coisa deteriorada, estragada, perceptível a metros de distância, e pagando bem caro pelo acesso à etiqueta. Um queijo passa a valer tanto ou menos que um sanduíche com refrigerante e fritas. Incluem a falta de tempo nos temperos da comensalidade atual. Os “refris” vendem mais que leite, café e água. Nos restaurantes, beber um desses gasosos durante as refeições tornou-se obrigação. Contra a saúde. E você pode escolher qualquer um, desde que entre Coca-Cola e filhos da Coca-Cola. O saudável costume de não ingerir líquido na alimentação virou mania de “ET”. Os garçons não se conformam e, às vezes, insistem: “O senhor vai beber alguma coisa?”. No Caixa, estranhando a falta do item no romaneio, o gerente pergunta se o atendente não se esqueceu de anotar a bebida.

Se os remédios oferecidos pelas multinacionais são tão bons, por que tanta propaganda? O marketing é um amplo projeto de socialização. O cidadão abraça uma vontade externa, apreendida graças à mídia, a comunicação global. Em invejável sucesso, conseguem formar uma mentalidade compradora sojigada sob o interesse do sistema, tanto mais cristalizada (e devotada) quanto mais televisão se assiste.[3]

E o Canastra sofreu sérios ataques. Argumentavam que era produzido sem obedecer aos preceitos de sanitização e homogeneização. O Food and Drug Administration dos EUA adverte: queijos de leite cru podem causar “graves doenças infecciosas, incluindo a listeriose, a brucelose, a salmonelose e a tuberculose”. Parecer social. Será mesmo? Vejamos.

O queijo visto “por dentro”.

Usemos o microscópio. Tal como o vinho, o queijo é um ser vivo. Sua massa é uma Xangai de bactérias, imperando a diversidade da microflora, no privilégio do seu sabor. Porém, nem tudo são flores. “A vida é luta renhida, que aos fracos abate e aos fortes só faz exaltar”, a poesia nos ensina, e se aplica ao mundo dos pequeninos.

No Coliseu do micro ecossistema superpovoado, há que digladiar na arena da sobrevivência, matando-se e devorando-se entre si. Eureka! Quanto mais longa a maturação maior o tempo de embate e, consequentemente, mais chacina e mais mortos. Ao final, obedecendo à antiquíssima regra do mundo, sobrevivem as mais resistentes, sorte nossa, pois são as mais salubres. Segundo estudos, esses vencedores, aos poucos fixam residência na casca. A bibliografia acrescenta mais um capítulo: tal como nós, com a idade, essas campeãs enfraquecem, perdem a virulência e, ao serem ingeridas, funcionam mais como vacina, fabricando anticorpos. Só vantagem. E mais: esses bichinhos adoram água. No queijo fresco, o ambiente é mais propício. Na peça maturada, em umidade nordestina, a segurança aumenta. Tudo de bom!

Os perigos contidos nos derivados do leite existem em variegados padrões e escalas. Entre eles destaca-se a tal de Listéria monocytogenes, a quem, dizem, a mãe natureza não somou melhores equipamentos de sobrevivência — é pouco dotada em resistência, bucha de canhão. No queijo curado é soldado desconhecido, não figura nos memoriais. Feitas todas as contas, subtraídas todas as parcelas, a diferença é quase nula, nada vai de trágico, podemos baixar a “neura”: se um indivíduo normal consome diariamente uma porção de 50 g de queijo contaminado na razão plausível de cem bactérias por grama, ele corre o risco de contrair patologia uma vez a cada… 4 milhões de anos!

Na produção em massa, o tratamento térmico destrói os microrganismos presentes e o processo inocula novos, selecionados, padronizados. E os queijos adquirem a “característica típica” desejada. Pouco a pouco, sob a pressão da globalização, no futuro veremos tudo centralizado em uma única fábrica, um só sorvedouro, insaciável das entranhas de uma única e imensa autoclave, de todo o leite, de cada vaca, homogeneizando e pasteurizando um suave mar inerte, sem vida, apartada a manteiga que venderá por fora. Do outro lado saem as peças, todas com absolutamente as mesmas dimensões e a mesma densidade, atestadas na amostra encaminhada ao laboratório de controle de qualidade.

São duas as principais destinações do leite — ou fazer queijo ou vender in natura. [4] O todo-poderoso mercado dita a “vontade” dos produtores rurais, impõe querer. A partir de certo valor pago pela indústria, precisando de dinheiro, acabam entregando o leite, diminuindo, ou interrompendo seu artesanato, parte de sua vida.

Lendo o Relatório Anual de 2010 da Sociedade Cooperativa Piumhiense de Laticínios (Cooperlat) percebe-se que o fazendeiro não consegue prever o dia de amanhã. O gráfico do histórico de preço pago ao produtor parece um eletroencefalograma de um esquizofrênico. Somente Deus sabe quanto vai valer o litro amanhã! Depende de humores estranhos. [5]

Um intermezzo. A vida na visão da roça.

Vem bem a este propósito a consideração encontrada em um dos portos da navegação virtual (perdida a referência, que nos perdoe o autor, possivelmente um cientista social): “Os modos de fazer e as técnicas e tecnologias que envolvem o processo produtivo dos alimentos a partir do mundo natural distinguem identidades e formatam patrimônios regionais e grupais. Essa é uma essencial questão: não dissociar o alimento do homem que o produz, que o consome e que o transforma, dando significados especiais ao seu fazer”. Acrescente-se, homem e queijo se transformando, se reproduzindo, em relação dialética. Após cada peça feita, nenhum dos dois é mais o mesmo. Um pouco adiante, referindo-se aos fabricados, complementa: “Produtos perfeitos e sem alma estão disponíveis a preços cada vez menores. Aqueles produtos que trazem casos, história, aventura, que a natureza levou milhões de anos construindo, estes sim, são valores fortes à medida que o mundo se globaliza”. Abordagem feliz.

O queijo artesanal é, econômica, ambiental e socialmente mais sustentável, fixa o homem no campo, contém mais valor agregado e pode representar melhor fonte de renda cotejado com a venda do leite, in natura, direto. Interesses estranhos o pressionam de alguma forma, diminuindo seu lucro e abocanhando sua minguada fatia. Ser social.

Copiando Davidson, no queijo processado prova-se, industrialização, o resultado de uma série de concessões baseadas no custo e na disponibilidade de matérias-primas, a química de alimentos, as exigências de quantidade e a criação de uma cadeia de abastecimento. Um Canastra artesanal traz consigo a manifestação física da busca apaixonada de um homem durante toda a sua vida. Dificilmente alguém encontrará centralidade espiritual na intenção de produzir mais Sprite. [6]

Servida toda esta salada, não nos comportemos então como inocentes quaisquer, imaginando vigilâncias sanitárias, regulamentos dos blocos econômicos, portarias etc., enquanto preocupados com nossa saúde. Se assim fosse, proibiriam cigarros, bebida alcoólica, refrigerantes, frangos clonados tratados com hormônios, galinhas pondo ovo sem casca, vacas que não veem pasto (menos ainda um touro), rações químicas de engorda, alimentos geneticamente modificados, coloquemos mais etc. porque a fila dobra esquinas.

A entrega de leite in natura na porta de casa, ainda resiste em cidades menores, mas é ofício em extinção. Em Araxá antiga, uma imensa carroça percorria as ruas com guizos chocalhados pelo calçamento poliédrico. Uma caneca enfiada dentro do latão despejava o leite na vasilha da casa, trazida até à calçada. Fervido e esfriado, era preciso furar a camada de gordura e assim conseguir servir o precioso alimento.

Texto

Descrição gerada automaticamente
“Delivery” de leite – Em Iguatama
Não se tem notícia que tenha adoecido alguém

Cada sociedade deve se conscientizar quanto às perdas envolvidas em cada entrada de nova componente de identidade importada. Ela deve procurar compreender toda a realidade do tempo de mudança, das trocas de referências, e conseguir se acomodar em novo patamar, com novos valores e novas crenças, preservando, pelo menos, os laços autênticos, não se dissolvendo em completa assimilação pelas novas vontades, abandonando de vez as suas próprias.

Do mesmo modo, o homem do campo, apoiado num modo tradicional de feitura do seu queijo, ao sucumbir sob a pressão de interesses externos, é forçado a tentar se ajeitar em outro canto qualquer da sua consciência, construir uma nova referência, e isso é dificultoso, deveras penoso. Bota angústias e ansiedades até alcançar a superação e estabelecer novas certezas! Amargará um stress psicossociológico diante da desorganização dos seus laços sociais. Sua existência, por um tempo, perderá sentido. Não contará mais com o sextante que o oriente entre tantos icebergs. Não distinguirá em meio à neblina de dúvidas o farol que o guie até o porto onde possa atracar. Por mais que “percure”, não divisará os pontos conspícuos de sua existência, levados que foram pelas ondas e correntes marinhas da concorrência desigual (e desleal). Ao final de cada dia de trabalho, não contará com as amarras que o protegerão das intempéries, agora castigando mais impiedosamente as frágeis embarcações.

O queijo produzido nos entornos da serra no fechamento do segundo milênio difere daquele mascateado pelos “Seus” Habibs. A forragem se alterou, a ordenha é mecânica, a alimentação dos animais é suplementada por ração, a composição do coalho deve ter mudado, o gado “dimudou”, até Jersey há. A duração do período de produção de queijo vem aumentando, seis, depois sete meses, cada vez, vai avançando por todo o ano, minguando entressafra. Hoje em dia as queijeiras das fazendas trabalham de janeiro a janeiro. Isso é do bem ou do mal? Se a regra é a mudança, por que insistir nessa ideia de manutenção da cultura? A resposta, a justificativa se encontra no que se pode conseguir de sobrevida, mesmo com adaptações. Eu sou outro com o passar do tempo, mas sou eu mesmo. Seja bem-vinda se não invalidar todo o elenco de traços culturais. E, melhor ainda, será a glória se as alterações se derem segundo vontade do grupo, autêntica, própria, orientada pelo seu destino. E mais aplaudida na continuidade da feitura manual de um queijo diferente dos demais, constituindo no meio de sustento de muita gente, repetindo referências praticadas por seus ancestrais.

Talvez se possa correr uma analogia com o futebol. Ele foi importado da Inglaterra no início do século passado. Apareceu, estranho aos nossos traços culturais, e se incorporou até tornar-se uma das mais autênticas manifestações na nossa consciência. Hoje, os estádios, as regras, os uniformes, tudo, enfim, é diferente dos primórdios, mas a relação nacional com o esporte bretão continua única, própria. Ou seja, embora tantas coisas tenham mudado à sua volta, está mantida essa tradição, esse atavismo, vendo e interagindo com esse jeito exclusivo nosso.

Enquanto isto, na capital.

Interessa ao país bem diferente solução: produzir com controle sanitário. Tal como em diversos lugares, Portugal e França (onde 75% dos tipos de queijos derivam do leite in natura), onde essa atividade anda de braços dados com mecanismos de apoio e proteção à produção local. Defendem sua riqueza econômica e cultural. Resguardam seus capitais, o contante e o social. Estão armados de unhas e dentes, eles conhecem o poder do inimigo e experimentam o combate ferrenho, sem tréguas. A Alemanha montou suas barricadas contra essa intenção global. A Europa se fundiu em um bloco autônomo e forte evitando submissão a interesses externos (entre outras razões). Consegue proteger os seus pequenos produtores e o artesanato agroalimentar. Blindou seus interesses com legislação adequada. A tradição por ali anda com colete à prova de balas, garante a permanência do homem no seu lugar e segura empregos. Sem contar importante ganho, correndo por fora: graças a eles o mundo do queijo não se transforma em uma planície sem relevo, formada de uma mesma massa, repetida, inerte, sem gordura.

(Veremos em capítulos seguintes que outro fator comporá a equação. Ele puxará valorização, divulgação, institucionalização. Que venha “selado, carimbado, rotulado”, emendando com Raul Seixas).

Caminho de terra com árvores ao fundo

Descrição gerada automaticamente
Nosso chão: com relevo, e cores

A realidade nos permite pensar: o Estado brasileiro, a rigor, não estabelece posição própria a respeito do queijo de leite cru. É, isto sim, compelido a assumir determinação internacional. E procedendo dessa forma atua “contra um Brasil histórico, saboroso, refinado”, e ainda minguando a comida no prato de milhares de pequenos pecuaristas. A política atual é de favorecimento à expansão dos laticínios e desestímulo à produção do queijo artesanal. Compelido, gera vetores contrários à fixação do homem no campo. Ele sabe que a produção doméstica demanda mais mão de obra e que as vagas abertas na indústria mecanizada da cidade não cobrem as perdas junto ao curral. A conta fecha no vermelho. Ao mesmo tempo, lê-se sobre a existência de ações governamentais, ou ouve-se discurso sobre o interesse público na fixação do homem na roça. São medidas divergentes. No varejo defendem o nosso, mas no atacado o projeto vem de fora. E tem mais: o erário público está de olho também na perda de controle sobre o imposto não recolhido pelo artesão na venda direta, na porteira. Produzindo na indústria fica mais fácil acompanhar.

Retomando o fio da meada da história.

Pelo menos até aos anos 70 o leite ainda era tirado manualmente. O vaqueiro servia-se de um banquinho de três pés, criativamente amarrado no traseiro, otimizando tempos e movimentos. Nele assentado, ordenhava a vaca sem higienizar as mãos com as quais acabara de atar o bezerro às pernas da mãe, usando a corda puxada dos ombros e arrastada sobre o chão de estrume e mijo. Condições de higiene precárias, mas nem por isso se tem conhecimento de problema associado ao consumo do queijo.

Nos anos 80 os queijeiros continuavam recolhendo as peças diretamente dos artesãos. Mas estão diferentes, chegam montados em caminhonetes, com celular, balança e calculadora. E improvisaram uma técnica: com cuidado de quem carrega um recém-nascido, ainda cheirando a leite e curral, acondicionam os queijos em tubos de PVC. Foi a solução atinada evitando que os “bebês” não amassarem a moleira, não se esborracharem. Desse branquelo, frágil, esquálido, quase inodoro, ainda escorre um resto de soro. Infiltra pelas gretas da carroçaria e vai pingando estrada afora. Mais um pouco de ficção, tirada do mundo das microssociedades: olhando com atenção o veículo se afastando, sacolejante, vê-se até vários bichinhos saltando fora, tal o aperto. Ao mesmo tempo, nossos avôs vão se revirando nas tumbas.

Os produtores passaram a vender o queijo com maturação cada vez menor, repetindo. Se o tempo de prateleira não mais cumpria quarentena, agora não contava nem ao menos uma lua, e mais próximo do final, “desensofrido”, não conseguia rezar a novena. A feição original foi desaparecendo aos poucos, perdendo as características, a sua identidade, o seu jeitão. José Mário, pecuarista de São Roque, desabafa: “antes o queijeiro passava uma vez por mês, ainda andava sobre a carga. Hoje, vem três vezes por semana e não é queijo, é massa. Chega ao destino azedando”. Devia estar se referindo à produção em geral porque o do seu sítio é vendido já mais maturado. E mesmo fresco, certamente não se perderia. Digo isso com pleno conhecimento de causa. A produção deste artesão guarda excelência.

Campo com montanhas ao fundo

Descrição gerada automaticamente com confiança média
Uma fazenda da região e várias idades do queijo

Estima-se que cerca de 90% da produção era comercializada com esse acondicionamento, e era irregular, sirenes da polícia no encalço. O Queijo Minas Artesanal debate-se em profunda contradição: é patrimônio da nação, é preferido nas formas menos curadas, mas tem que viajar na clandestinidade até chegar aos principais centros consumidores. Existem cancelas de aduanas protetoras inclusive dentro do próprio Estado. Mesmo em Minas Gerais há fiscalização barrando a entrada do frescal, de olho na proteção da produção local — rimou.

E uma luz se acende.

Ao apagar das luzes do século XX, fiel ao lema da nossa bandeira, tardiamente, produtores e governo de Minas deflagraram um processo de discussão sobre certificação dos nossos queijos. Tiveram início várias reuniões com a participação da Emater, do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) e da Secretaria Estadual da Agricultura.

Em 2000, junto a cenário desfavorável, de êxodo rural e de necessidade de gerar renda no campo, vem à luz o Projeto de Certificação dos Queijos Artesanais de Minas Gerais, gestado no ventre de uma política governamental de apoio à pecuária familiar, na tentativa, mais uma vez, de fixar o homem na terra.

A qualificação do produto significaria entrada formal em comércio legalizado. A revisão da jurássica lei de 1952 seria a pedra de toque, descolando das paredes dos postos policiais de toda a rede rodoviária a foto do queijo de leite bruto sobre o título “Procura-se”. Saber que existiu um desatino desses, difícil deixar de pensar o quanto o nosso Brasil não monta pensamentos próprios. Não estabelece os rumos de seu interesse. Abrindo-se o mapa do mundo, é fácil ver: os países de sucesso são aqueles nos quais o povo, por meio do governo, desempenhou a promoção do seu desenvolvimento, segundo os seus objetivos, de acordo com projetos pensados por ele e não por mentes estranha.


Clique aqui para ver o sumário com todos os capítulos disponíveis


Veja o Capítulo III

Veja o Capítulo V


  1. In: <http:www.emater.mg.gov.br>. Acesso em: 5 fev. 2011.

  2. Título de livro. Ver bibliografia. CARVALHO, André; LEITE, João.

  3. Um excelente “case” se deu agora no início de 2022, durante a pandemia. A indústria farmacêutica precisou ganhar dinheiro vendendo kits de teste e alastrou-se uma “febre”… de compra.

  4. Leite não submetido a tratamento térmico. Natural. Aqui sinônimo de leite cru.

  5. Segundo relatório do CEPEA (da Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz), o preço do leite continua experimentando oscilações. No período de 2016 a 2019 houve variação de preço da ordem de 35%. Em 2020 os preços praticados no segundo semestre foram 50% maiores que a primeira metade no ano. Em 2021 ocorreu uma relativa estabilidade, com variação em torno de 10%.

  6. Ver “Economia da Paixão”, DAVIDSON, Adam. A Economia da Paixão. Rio de Janeiro: Rocco, 2020

Posted by Brasil 2049

Leave a reply

O seu endereço de e-mail não será publicado.