Mapa

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Completamos a jornada pela Trilha, visitando mais cinco paraísos. Beleza tanta, pesquisa da boa, gente do primeiro time e queijos inigualáveis, melhor não há.

Capítulo VIII – Parte 2 – As onze tribos assinaladas

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Desenho de pessoa com a mão no queixo

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Percepções da população e “causos”
(Continuação com mais 5 cidades).

Piumhi

Muitas pessoas apreciam as charadas, uma espécie de exercício de raciocínio, uma “malhação” mental, envolvendo competência em vocabulário, conhecimentos gerais, memória e inteligência. Elas continuam disponíveis nas revistas de recreação. Exemplo:

Número, número, número, que bela cidade mineira (1-1-1)”. Charada antiga, ela compõe uma bem apropriada homenagem. Apresentei-a como desafio a alguns piumhienses, mas ficaram olhando, embaraçados, sem resposta. Parece que não sabem do que trata, ignorando o que seja o vocábulo. [1]

Conhecem é a tradução do vocábulo, trazida da língua indígena: rio com muito mosquito. Talvez Piauí, “rio do peixe”, teria bastante.

Piumhi é movimentada. O campus da UFV junta força no apuro de cada dia. Não foram anotados desarranjos sociais, mas o pequeno tempo de permanência impede afirmações.

As respostas ao questionário [2] não trouxeram novidades, repetindo o comum das questões. Contudo, tal como em Araxá, as pessoas conseguem discorrer um pouco mais sobre cada uma das indagações.

Igreja com torre alta ao fundo

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A bonita igreja de Piumhi.

Diante da primeira pergunta, a faculdade arranca na dianteira com 9 votos (das 30 entrevistas). Agropecuária, em diversos elos da cadeia, vem em segundo lugar (6). As festas (feira, expo) completam o trio de maior presença nas opiniões. As demais alternativas (em número de 9) foram pouco votadas (com 1 ou 2 pontos). O queijo comparece uma vez. Piumhi tem o cognome de “Cidade Carinho”. Gente boa.

No segundo quesito, as respostas se dispersaram: expo e feira, turismo, queijo, tranquilidade e estrutura tiveram 5 ou 6 votos cada uma. Além dessas, cinco escolhas receberam 1 ou 2 votos só. É digno de nota a tranquilidade ser citada por 5 pessoas. Afinal, Piumhi é um pouco maior. Parabéns!

Quanto a alimento, o café (16) e o queijo (15) estão bem à frente, seguidos de feijão (5) gado (3), milho (2), doces (2) e arroz (1). Esse maior destaque dado ao queijo é uma exceção de toda a presente pesquisa.

A maioria conhece o queijo das suas fazendas, considera-o bom ou mais. Apenas um piumhiense não “apreceia”. Preferem o frescal, mas o total de pessoas que aprecia peça mais curada é um dos maiores. O pessoal daqui entende melhor de queijo. Comem-no a qualquer hora, ou no café da manhã e 2/3 das pessoas, na companhia de doce. As combinações com pão, café, puro, arroz, omelete, rapadura e, é claro, a “birra” foram votadas uma ou duas vezes somente.

A maioria diz que existem queijos diferentes e, seguindo a regra, confundem qualidade com tipo. Novamente, a famosa apresentadora foi a mais votada entre as seis pessoas que citaram nomes de pessoas famosas que gostam de queijo. Todos conhecem receita, graças à popularidade do nosso pão de queijo.

Quanto à origem controlada, dezessete disseram saber do que se trata, mas somente seis explicaram de forma convincente.

Gado em pasto verde com árvores ao fundo

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Foto da região: “o gado mansa pastamente”.

Rio Paranaíba

Poucos lugares podem contar uma história tão rica e tão… conturbada. De início, escreveu as mesmas páginas compartilhadas pelas formações populacionais da região, compondo o longo primeiro capítulo com os mesmos sacrifícios de índios e negros. “Miséria pouca é bobagem”, não bastassem tantas agonias, continuou agitada. Durante longos 75 anos, de 1848 a 1923, lutou nada menos que seis vezes pela sua independência. Por cinco investidas, após conseguir a restauração, voltou à condição de distrito. A história dos funerais de um feto mostra bem que o pessoal por ali respirava articulação “am-pm”, vinte e quatro horas. Esta e muitas coisas mais estão contadas na exaustiva análise de José Resende Vargas, “Rio Paranaíba: 250 anos de história”, riquíssimo repositório da saga da terra, do tabuleiro de interesses e dos intrincados caminhos da ação citadina.[3]

Em grata surpresa, este livro narra sobre a família Borja. Explico. Cursando o colegial em Belo Horizonte, consegui ocupação na Companhia Borja Pacheco em bem-vinda meia-sola no furado orçamento estudantil. Lá aprendi vários ofícios sob a orientação dos irmãos, em especial os Srs. Ciro, Abner e Cedro e, se não me falha a memória, também o Sr. Líbano. Eram pessoas extremamente educadas, corretas, sérias, no rigor dos preceitos da ética protestante weberiana. Conservo grata memória de todos eles. Do Sr. Cedro recordo-me de ter visto sua foto no dicionário junto ao vocábulo “polidez”.

O livro do “Varguinha” conta que o Sr. Abner venceu as eleições para prefeito, mas, no tapetão, alegando fraude, escalaram o adversário derrotado. O autor fornece interpretação diferente, girando a coisa em torno de rixa religiosa, parecer social, ocultando a disputa de poder, ser social. Sou mais essa versão porque conheci o Sr. Abner. Esse lamentável incidente teria provocado a saída de várias pessoas de bem, causando prejuízo econômico e social. O desgosto pode ter sido a gota d’água que fez transbordar o copo das insatisfações e motivado o êxodo dos irmãos.

É possível. Eis que, então, Rio Paranaíba pode bem ser vista como uma encenação sertaneja da Guerra dos Trinta Anos. Mais lutas, mais páginas de desatinos e agruras. A rivalidade entre católicos e protestantes durou várias décadas e, em diversas oportunidades, as refregas transpuseram os limites das armadilhas de gabinete, das artimanhas de corredores e das esgrimas verbais. Morreu gente. Uma loucura. Destarte, a citada família pode ter se mandado furtivamente, numa madrugada qualquer de São Bartolomeu.

Mas há ainda uma outra página da narrativa, mais romântica, ou a melhor, ou a mais querida. Ouvi de gente que não costumava mentir, e estou “vendendo pelo preço de custo”, repassando precisamente o narrado, sem tirar nem pôr. Se a primeira motivação da saída teria sido a política e a segunda religiosa, esta terceira, que se fundamenta mais diretamente na base econômica, conta que a irmandade teria decidido tentar a sorte nas ricas barrancas diamantíferas da região. Tão logo chegaram ao lugar escolhido, desembarcada a tralha, um deles se incumbiu de fincar o esteio da barraca. Logo na segunda ou terceira estocada da cavadeira manual, em meio aos seixos da “ganga impura” saltou uma enorme pedra reluzente. Recolheram as coisas e tomaram o rumo de “Belzonte”. Tinham “embamburrado”. [4] Será este mais um romance montado no fascínio do Eldorado? Ou ocorreu intervenção de cima, compensando as perdas das refregas entre igrejas humanas? Vai saber. Também, não carece inquirir coisas, perturbando tão bela estória. Agora, convenhamos, com certeza é mesmo o ”preço de custo” — não há por onde inflacionar.


Bem, afinal, a mudança pode ter sido resultado de um misto de tudo isso. Desenganos, falta de ar na prática da crença e espaço exíguo para voos mais longos do tino empresarial. Se acaso trouxeram riqueza material na bagagem, o certo então é que seguiram os ensinamentos do evangelho, fazendo duplicar a dádiva, em sério, desdobrado e honesto esforço na capital.

E fica esse revigorante e benfazejo encontro com o passado local. Por ele identifiquei mais um vínculo histórico-afetivo pessoal com o meu sertão. Mais uma ligação fixada. Outras deve haver.

Lago com árvores em volta

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O grande Paranaíba. Na cheia.

Nesse livro citado encontra-se um inusitado repertório de canções, hinos e poesias dedicados à terra pelos seus filhos. Em meio a tanto embate, a sutileza encontra cômodo. Espada e crisântemo.

Provei do queijo produzido em fazenda do município. Guardava mais ou menos as mesmas características encontradas em Carmo, um tanto emborrachado, mas, quem sabe, um pouco melhor em sabor provado um pedaço de cada um.

As 17 pessoas entrevistadas se prontificaram a atender ao pedido, mas seguiram a regra do elenco das demais cidades amostradas (talvez exceto Araxá e Piumhi): as respostas foram lacônicas, quase monossilábicas.

A Universidade Federal de Viçosa (UFV) e a agropecuária somam a maior parte das referências a coisas importantes. Morro do Pião, cooperativa, igrejas e a nascente do famoso rio também foram citados. O queijo foi lembrado uma única vez, obedecendo, assim, à mesma regra geral: não é referência importante.

As respostas à segunda questão nomearam a UFV como a mais importante segundo os visitantes (41% das pessoas). A hospitalidade e o crescimento receberam dois votos cada. Chama a atenção: 4 pessoas (24%) não sabiam indicar percepções do pessoal de fora sobre destaques locais.

No terceiro quesito, a agricultura se abriu em festa. Encabeçada pelo café (citado por 53% das pessoas), a lista continua com milho (47%), cenoura (41%), seguidos por batata, soja, alho, feijão, cebola e beterraba. O queijo não foi citado. Assim, também Rio Paranaíba não mantém vínculos efetivos com o nosso patrimônio. Exibiram, isso sim, certo orgulho sobre a fartura do campo, esnobando produção de todo o necessário, mas não sem certo rancor diante do fato de São Gotardo usurpar autoria. Aconteceu algo parecido no passado, já comentamos, em processo semelhante, no qual Araxá surrupiou de São Roque os louros do queijo Canastra.

A quarta pergunta ajuntou total unanimidade quanto ao conhecimento do queijo local e exaltaram sua qualidade. Gostam mais do tipo frescal e 70% do pessoal apreciam-no a qualquer hora. A 53% agrada mais como acompanhamento de doce. Puro, aperitivo ou com “lourinha” foram pouco votados. A imensa maioria percebe diferença nos queijos, mas confundem com variação de tipo (provolone e mozarela).

Metade da população não conhece qualquer ditado alusivo, confirmando a fraca ligação com o produto. Mas surgiu uma frase nova, não catalogada: “dando sopa igual queijo na venda”. Parece ser conhecimento exclusivo. Também quase a metade dos entrevistados não conhece qualquer receita, e os demais preferiram citar o pão de queijo. A maioria não consegue relacionar gente importante, fora Itamar e o prefeito local.

Finalmente, 60% das pessoas não sabem o que é origem controlada. Porém, ao contrário, entre os demais 40% foram dadas explicações consistentes, uma até correta, representando um dos maiores percentuais de conhecimento na região.

São Roque de Minas

Até 1962 chamava-se Guia Lopes, herói do exército brasileiro. Nasceu aqui, mas viveu em Mato Grosso. Na Guerra do Paraguai ajudou os soldados, com gado para alimentação, e indicando caminhos mais vantajosos.

Palmeira em frente a igreja

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São Roque. Praça Central com a Igreja.

“Como pode uma cidadezinha perdida nos confins da Serra da Canastra, com todas as suas deficiências, carência profunda dos benefícios mais elementares de sobrevivência de seus cidadãos, como pode despertar em seus filhos tanto amor, tanta dedicação e tantas raízes afetivas?…”. Assim escreveu Tufy Habib.[5] Do mesmo autor é o texto a seguir, provado na mais pura sensibilidade, entre tantas, é mais uma oração em louvor à sua terra natal:[6]

“Como acontecia todas as tardes, estávamos jogando a nossa pelada de futebol em frente à igreja de Nossa Senhora do Rosário. Naquela tarde, o tempo mudou repentinamente, com o céu cobrindo-se de nuvens escuras, com relâmpagos sucessivos e trovões que produziam um barulhão. Apesar da transformação brusca do tempo e da tempestade iminente que ameaçava desabar, eu e meus colegas continuávamos a correr atrás da bola e a comemorar os gols que fazíamos. De repente, a natureza proporcionou-nos um espetáculo. Mas só eu parei a admirá-lo e observá-lo com todos os seus detalhes. Faltavam ainda algumas horas até o sol se esconder no horizonte, mas toda a terra estava escura por causa das nuvens que impediam que os raios solares a iluminassem. Subitamente, num único pedaço do céu, as nuvens se abriram como se fosse uma janela, na direção do poente, e os raios solares começaram a iluminar um grande espaço nas alturas e chegavam até nós. Uma chuva de grossos pingos começou a cair espaçadamente. Eu parei de correr atrás da bola e passei a admirar aquele espetáculo, enquanto meus colegas insistiam em marcar seus gols. Olhava para as alturas e via os grandes pingos iluminados, refletindo os raios solares, que vinham caindo até nós. Do momento exato em que se via o pingo, até ele cair, durava de cinco a seis segundos. O pequeno Titino resolveu juntar-se a mim e eu comecei a fazer encenação para aquele espectador atento. Com uma exclamação eu admirava o tamanho e a beleza daquele pingo que descia bem perto daqueles três enfileirados. Esse grande pingo só estava na minha imaginação. Andamos de volta à casa, mas sempre olhando para o alto a fim de identificar o “pingão” que eu havia mostrado e dizia ao Titino que iria medir o tamanho dele quando sofresse o impacto do choque no solo. Fiquei apontando e olhando o alto, como a controlar onde o pingo ia cair. Já entrando em casa, acompanhado pela mãe, o Titino me viu com um pedaço de ramo medindo o pingo que se esborrachara na calçada cimentada” (HABIB, 1999).[7]


São imagens intensas, lotadas até à tampa de mimoso conteúdo. As mensagens singelas da cena emocionam. Não importa quantas vezes leio este trecho: repito enternecimento. Passado o enlevo, recobrada a racionalidade, percebo que essas experiências não são privilégio deste ou daquele lugar. No mais simples e humilde rincão, no mais singelo e tosco recanto, elas festejam todos os dias e borboleteiam descuidadas. Estão lá. Quem puder e quiser que as alcance. Talvez a pureza e a inocência da alma infantil recebam e marquem melhor essas pegadas íntimas, fixando a aderência com o torrão natal. Tanto mais fortes e indeléveis são vínculos quanto mais legítimos os sentimentos, em construção viva da criatividade, sólida, sobre puros e livres princípios. Somente o coração inocente consegue vivenciar tudo isso com mais intensidade? Por isto teria advertido o Nazareno, se não nos tornarmos crianças não entraremos no reino dos céus?

Bolas de pano, goma da botina para fazer viola de caco de cuia, chupar manga, nadar no riacho, “fabricar” chiclete com leite de figo, “pitar” cigarro de talo de chuchu, soltar balões, empinar papagaio, colocar pedra dentro de saco de papel e esperar transeunte chutar, quebrar vidraças e tantas coisas mais. Pivete no bom sentido… “mininada dos diabo, cambada de iscumungado, se ocêis num tem pai pá ti inducá, eu te induco, capetada dos inferno”. Dizem que anjo da guarda existe.


Campo com montanhas ao fundo

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Entornos de São Roque de Minas

Mas há também o lado amargo a considerar. Quais registros marcarão a mente infantil de uma comunidade de risco? Tiroteio, mãe agredida pelo companheiro de plantão, meganhas enfiando o pé na porta, irmãs violentadas, ex-aluno que entra na escola e trunca a vida de doze. Quais imagens ela invocará, depois, rememorando seus primeiros sonhos? Atualmente, os espíritos custódios estão especializados na prevenção contra terceiros, nas balas perdidas, nos atropelamentos em passeios, no colega que resolve saldar desavença com uma faca e no vendedor da porta da escola incluindo no seu carrinho produtos além de balas e pirulitos.

O Sr. Habib percorre o terreno fértil da vida local. Do primo, artista errante, pintava e bebia, é dele a Santa Ceia junto ao altar-mor da igreja. Dos quinze dias de chuva sem parar, o correio interrompia as entregas, coisa normal, de rotina, depois lia vinte números de jornais de uma vez, molhados. Do cavalo mergulhando até a barriga na lama. Do evento no grupo escolar no qual foi destacado para recitar a poesia “A árvore”. Das touradas, incrível, em São Roque havia apresentações desse triste espetáculo. Da cruz no meio da mata onde se ajoelhava para rezar nas noites de breu. Da história do parque de diversões e as latas de cozinha “esparrodadas”, de fazer rir até quando se acordava de noite (felicidade no máximo possível do seu limite). O bumbo da “furiosa”, em som forte entrando pelos ouvidos, “se dirigia para o peito e parecia desintegrar o coração da gente”. Não necessitava ter estudado música para saber quando o dobrado se encaminhava para o seu final. Do footing sem preconceitos, os moços também faziam o giro, no sentido contrário. Dos móveis caprichados, com entalhes, feitos pelo pai. Do viçoso aboboral arribando escada acima. Do Russo, apareceu por ali, desembuchava uma embrulhada de palavras estranhas, a ignorância do povo confirmava a versão da sua origem na terra dos czares, fama consolidada no apego à vodca. Do Chimite, teria salvado uma criança das mãos de um “serial killer” que assassinou dois membros da mesma família, pai e mãe grávida. Escapou com ela do facínora e escondeu-se no mato por um dia. Ao prestar testemunho depois, na polícia, na dificuldade de se expressar conseguia dizer somente “bam bam bam”. Da pedinte, manteiga frita prá “jantainda”, recolhia doações de alimentos e em recipiente próprio guardava a banha conseguida das almas generosas. Boa conversa, sem pressa, costumava se esquecer do tempo, ocupando em demasia as pessoas que acudiam suas súplicas. Para se desfazerem dela pegavam uma vassoura insinuando convidá-la para varrer a casa.


Cônego Ivo também descreveu detalhadamente memórias sobre a Mumbuca, carinhosamente assim chamava sua terra, quando aquilo ainda nem vila era.[8] São copiosos registros sobre o seu chão.

Depois da festa da Senhora da Boa Morte, o tempo ia “dimudando”. Seca brava. Ar parado. A poeira, de palmo, formava o tapete das ruas do arraialzinho. Os redemoinhos se erguiam em canudos. O sol estanhava-se. O calor parecia tremeluzir por cima dos telhados. As galinhas de asas suspensas, os passarinhos de bico aberto. O gado emagrecia, comia até folhas de árvores, caía pelas grotas, e morria de fome(MATOS, s.d.t.).[9]

A poeira de palmo eu vi.

Na sala, os homens conversavam, num vozeirão. Chegaram os camaradas da fazenda, o assunto variou. Todo mundo fez pito de fumo que o Jesuíno trouxe. O Niquito velho, depois de lamber a palha de fora a fora, enrolou o cigarrão, tirou a binga de níquel, quebrou o cantinho da pedra, meteu o fuzil que soltava faísca longe. Enfiou ali o pito, deu chupadas de murchar a boca, até subir a fumaça. Tirou, bateu a unha, caiu faísca na camisa, deu muito tapa na barriga e falou mesmo que nunca tinha pitado um fumo tão bão” (MATOS, s.d.t.).


Montanha com grama

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Entornos de São Roque de Minas: outra vista.

Onze pessoas colaboraram respondendo ao questionário. O Parque da Canastra desponta como a principal atração (55%), mas a tranquilidade e o estilo de vida local também se fizeram presentes em 45% das opiniões. Confirma-se a regra: lugar menor.

Na segunda pergunta, 91% dos sanroquenses entendem que o pessoal de fora vê o conjunto, Serra e Parque, como mais importante. Um entrevistado insistiu na tranquilidade do lugar como ponto diferenciado também na percepção de quem chega.

Nessas duas primeiras perguntas, notem bem, não foi citado o queijo. Incrível. Nas duas oportunidades mais legítimas, espontâneas, o principal produto da terra, tão célebre, não teve vez. O turismo, mais charmoso, vai destronando o rei?

O terceiro quesito, sobre qual alimento é mais característico, apareceu a principal diferença, colocando São Roque à frente quando a disputa se refere à identidade com o queijo. “Menos mal”. Ele foi citado por 82% dos entrevistados. Feijão, arroz, milho, café, mandioca e frango caipira apareceram apenas como figurantes. E tem mais, todos conhecem o queijo, consideram-no bem bom, parecem orgulhosos em destacar a sua fama e o capricho da feitura artesanal. Todos gostam (a maioria o prefere fresco) e o saboreiam a qualquer tempo (uma pessoa usou uma expressão interessante: “a hora que chegar nele é essa”). Alguns preferem na hora no almoço.

A parceria com o doce é a mais citada (55%), seguida da combinação com arroz (36%). Algumas poucas alternativas foram lembradas.

Fica assim uma grande interrogação aguardando melhores explicações. Se, depois de estimulados, os cidadãos da terra do Canastra o exaltam, por que não ocorreram manifestações espontâneas sobre ele? Estaria ele, seu filho dileto, presente somente em alguns atos? O pessoal não vincula história?

As respostas à oitava pergunta, quanto à existência de diferenças de produtos, revelou um dado interessante. “Variam” e “tudo igual” dividem meio a meio as opiniões. Isso pode confirmar a superioridade do capricho artesanal na boa terra, tantas vezes mencionado, mantendo a sua fama em grandes revoadas. Seria uma notícia alvissareira. A base está defendida. Faltam condições ao artesão para se adequar, maturar seu queijo e, colocado o selo, vendê-lo por preço melhor, requintado.

Somente um em cada onze sanroquenses conhece ditado com a palavra queijo. Boa dica: as escolas do ensino fundamental procurariam corrigir essa insuficiência. A professora passaria um “para casa”, pedindo a cada um que traga na aula seguinte pelo menos três desses motes populares. Na lida com o turista, o morador saberia contar casos, histórias, refrões e conhecer de perto as riquezas, coisas assim.

Praticamente todos conhecem receitas — pão de queijo à frente. Um entrevistado apresentou um mexido de composição própria (o queijo vai picado na panela com óleo, açúcar e farinha de milho. Tá alimentado. Pode pegar tarefa). Somente uma entre onze pessoas sabe o que é origem controlada. Esse conhecimento precisa ser divulgado entre os filhos da “terra mater” do nosso bom queijo.

Não vi delinquência nas ruas ou indícios de prostituição. Não encontrei crianças perambulando e nem mendicância. Em uma das tardes duas moças mostravam sinais evidentes de excessos alcoólicos. A amostragem é pequena.

Tapira

Passei ainda cedo e só demorei por ali uma parte de uma radiosa manhã de azul anil. As pessoas iam tranquilamente, demandando os postos de trabalho, a vida seguindo com calma, silenciosa, percebia-se somente as vozes de algumas pessoas.

O plano e o relevo não facilitam uma melhor apresentação urbana. Não obstante, Tapira melhorou desde a última vez que lá estive, há quase três décadas. E isso apesar de Araxá, relativamente perto, acenar com melhores condições de moradia e lazer, devendo atrair trabalhadores mais qualificados e, ainda, abocanhar boa parte do bolo de contratação de bens e serviços da principal empresa existente no município.

Provei do queijo local. É de feitura bem cuidada, de sabor destacado e mais encorpado, esnobando personalidade. A proximidade de São Roque e Medeiros, compartilha as boas origens.

Um entrevistado, exaltando as excelências da produção autóctone, exibiu conhecimento ao dizer que cerca de 50% das pastagens do município ainda eram naturais. Mais tarde, em casa, consultei o IBGE virtual e confirmei a informação. Segundo os dados de 2006, elas somam 48,5% da área. As culturas abrangem somente 26,5%. As autoridades locais devem manter em conta essa qualidade diferencial do produto e a herança dos pastos nativos, verificar a conveniência de estabelecer uma política pública, caso não exista, com percentuais significativos de áreas sob conservação e preservação. E, ao mesmo tempo, não perder a chance, alardear essa superioridade do queijo tapirense [10]. Após não poucos cotejos sinto-me autorizado a sugerir a inclusão de Tapira na Origem Controlada da Canastra, ajuntando-se ao seleto grupo dessa denominação.

Campo verde com árvores ao fundo

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Vista da região

Nas respostas à primeira pergunta o minério se destaca como a principal referência local. Quanto ao que o forasteiro vê de bom, as opiniões se dispersam um pouco, constituindo-se a tranquilidade e o clima (3 votos cada uma) nos principais chamamentos.

Os alimentos são batata (6 votos) e feijão (4), seguidos de queijo e soja com dois votos cada. Assim, em termos percentuais, Tapira figura como uma das que mais prestigiam a artesania do leite cru. Todos gostam de queijo, e comem a qualquer hora, sem preferência de acompanhamento. Vai com doce, pão, café, feijão (!), pinga e sozinho. A maioria sabe receita com queijo na lista de ingredientes.

Sobre origem controlada, somente uma pessoa soube dizer o significado e um único tapirense citou gente famosa que aprecia o queijo. Mas um relato chamou a atenção. Um cidadão contou de um tio, em idade provecta, gabando-se do seu gosto pelo saudável produto da terra, que costuma dizer: “Se eu falhei de comer queijo na vida, não deu dez dias”. Legal! A água e o ar puros, o clima ameno, comida boa, os escalda-pés e, também possivelmente, a vida tranquila garantiram-lhe a longevidade. Ah! É claro, e as bactérias!

Vargem Bonita

Diante da beleza das construções, postadas no alto do promontório, um soldado de um destacamento, teria exclamado: “Que viso eu”? Essa lenda fixada em Viseu, Portugal, montou versão por aqui, no nosso sertão. Junto às margens do infante rio São Francisco, um dos desbravadores teria também externado sua admiração diante dos esplendores do lugar: “Mas que vargem bonita!”. De fato, é graciosa. E faz boa dupla com Medeiros no privilégio do sossego, da tranquilidade.

A semelhança com a metrópole talvez possa ir um pouco mais além, ou é só vontade minha. Fiquei imaginando a Prefeitura estimulando que todas as casas e prédios fossem pintados de branco. Além de similaridade urbana, sob o sol brilhante que mora por ali, a referência ao Alentejo, assim montada, seria mais uma atração turística.

Anteriormente, comparei duas fotos distanciadas 100 anos na cronologia mostrando as diferenças operadas pelo tempo. Pois o livro “Um lugar chamado Canastra” mostra também duas poses vargeanas aproximadamente equivalentes.[11] O amontoado de casas humildes, metamorfoseou-se em um conjunto bem arranjado de construções melhores e logradouros largos e limpos. Se expurgarmos a legenda identificadora, bem poderia se fazer passar como pose de uma pequena vila da Borgonha.

Rosa “Cheirinho” é uma simpatia. Recebeu-nos na agradável varanda interna de sua casa, contou muitas histórias, irmandade numerosa, nomes de família alternados, revezando, tudo “pareiado”. Narrou vicissitudes, emprego difícil, poucas oportunidades aos moços, duro enfrentamento da vida como ela é, uma luta, mas perder a vontade de seguir em frente, jamais.

Como seria de se esperar, não consegui fazer anotação sobre desorganização social. Poucas pessoas iam e vinham, em suave e letárgica bonomia, sem qualquer tropicão, nem uma “pisadinha” em falso. A estrutura social dos padrões compartilhados parece bem estável, consolidada, segura, sem sustos.

“ – “Seu” pilantra, caloteiro desaforado, espertalhão safado …”, exclamava o André, em alto em bom som, para quem quisesse ouvir, enquanto sacudia o indicador rumo ao nariz do Hélio Cohen, emérito não pagador de contas, não enxergando quitação cheirando mal de tão vencida, signatário de promissórias sem fundo algum. Todos o conheciam muito bem.

“ – Deveria se dignar, um homem casado, pai de família, dando exemplo tão danoso…” continuava metralhando o credor, postado na beirada do passeio, enquanto muitos conhecidos da pequena cidade e os curiosos de sempre se aproximavam formando uma roda em torno dos dois. Junto à parede do cinema da rua principal, pé direito suspenso apoiado sobre o mármore polido, o Hélio postava-se impassível, em imensa beatitude, ouvindo com serenidade as diatribes do oponente.

“ – Salamandra, bandalho, fogo-fátuo, broto de mandrágora… “ baixando agora o nível, na esperança de que a ênfase literária chamasse o desafeto aos brios.

Nesse ponto, aproveitando uma pausa para a respiração ofegante do credor, o Hélio, coçando a orelha direita, muito serenamente desferiu:

“- E aí o que que ele falou?”


Enquanto o manto claro de um céu sem nuvens cobria todo o lugar no comecinho de uma aprazível manhã, abordei sete sonolentos vargeanos, talvez prejudicando o levantamento. As respostas foram monossilábicas, mais além da costumeira dificuldade de expressão encontrada nas pesquisas.

A população não sabe dizer sobre a característica mais importante (primeira pergunta), dispersando opiniões. Mas percebem que o visitante vai até ali pela natureza local, cachoeiras e passeios. É o turismo dizendo “presente”.

Na resposta à terceira pergunta apareceu destacado índice de ocorrências do queijo. Ele desponta em primeiro lugar absoluto. Demais opiniões são dispersas e não sabem dizer qual o alimento característico do lugar.

Todos conhecem o queijo, consideram-no bom ou ótimo, comem a qualquer hora e a associação predileta é com o doce. Percebem variação na feitura e conhecem receitas, mas, a maioria, não soube citar pessoa importante amante de queijo nem qualquer ditado com o vocábulo. Origem controlada? Ignoram totalmente.

Terminadas as entrevistas avaliei se iria até Casca d’Anta. Acabei optando por percorrer fazendas das cercanias procurando queijeiras. O chamamento do dever.

O ar era abafadiço, um mormaço sufocante, o sol queimando o céu e acendendo reflexos no cascalho da estrada. Não soprava a mais tênue aragem, não “bulia” a mais tenra folha. O minguado regato sob a pontezinha de madeira rolava preguiçosamente, ralentado. Eventualmente um gavião desgarrado cruzava os céus, emitindo o seu lamento em gritos estridentes.

Sob um jatobá à beira do caminho, reuni um tanto bom de gravetos ressequidos, aprontei o fogo e coei o café, trescalando o espaço em envolvente aroma, amplificado pela pureza do ar à volta. Apreciada a rubiácea, “ajeitei cômodo” no tronco da árvore, acendi o “pito” e fiquei ali sentado, tranquilo, em plenitude de bonomia, marasmo gostoso, no estado alfa das despreocupações, afastando qualquer vinculação com o tempo, mister com o qual um bom mineiro sabe lidar tão bem. Os olhos semicerrados, tanto pela fumaça do cigarro quanto pela intensa claridade do sol das duas da tarde, pouco a pouco foram convidando a entrar no mais profundo do mundo de Hipnos, somente aos justos é concedido.



Na primeira Parte deste Capítulo vimos o panorama das seis primeiras cidades


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Ver o capítulo VIII parte 1

Capítulo IX Parte 1 (25/04/2022)


Caro(a) leitor(a)

Notícias

“CNA vai premiar melhor queijo artesanal do Brasil.

O Prêmio CNA Brasil Artesanal 2022 está com as inscrições abertas e irá premiar, neste ano, o melhor queijo artesanal brasileiro. O prêmio é uma parceria da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil com a Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig) e com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). (ConexãoAgro, 24/3/2022)”.

Mais uma promoção de grande envergadura. É o queijo artesanal consolidando posição de destaque no cenário econômico nacional.


Notas

  1. “Pi-um-i”: três números da matemática: “pi”, relação constante entre circunferência e diâmetro; “um”, primeiro natural inteiro positivo; e “i”, unidade dos números irracionais, raiz quadrada de -1 (um negativo). A grafia oficial inclui o “h”, mas essa atividade lúdica absorve concessões.
  2. O questionário é composto das seguintes perguntas 1. O que tem de importante aqui? 2. O que as pessoas veem de importante aqui? 3. Quais são os alimentos característicos daqui? 4. Você conhece o queijo feito aqui? 5. Você gosta de queijo? 6. Você tem hora preferida de comer queijo? 8. Você conhece algum ditado com a palavra queijo? 9. Você sabe de pessoa importantes que gosta de queijo? 10. Existem qualidades diferentes de queijo? 11. O que é Origem Controlada?
  3. VARGAS, José Resende. Rio Paranaíba: 250 anos de história. Uberlândia: Zaardo, 2008.
  4. Bamburrar. Expressão usada no garimpo. Encontrar pedra de grande valor. Ficar rico. Sucesso financeiro.
  5. Cf. HABIB, Tufy. Quintal de memórias. Belo Horizonte: (s.l.), 1999.
  6. Idem, 1999.
  7. Idem, 1999.
  8. MATOS, Ivo Soares de. Arraial da Mumbuca. (s.d.t.)
  9. Idem.
  10. : É oportuno observar que pasto natural resulta em maior percentual da gordura ômega 3, essencial para a vida humana e rara em outros alimentos do interior. E certamente outras coisas boas, tudo sem agrotóxicos ou adubos químicos. Sua presença maior é em peixes, chia, linhaça pouco ou nada consumido no interior, exceto onde rios de porte passavam.
  11. BIZERRIL, 2008.

Posted by Brasil 2049

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