Diagrama

Descrição gerada automaticamente com confiança média
Uma panorâmica sobre 11 cidades da Trilha, base para estudos e melhorias com vistas ao turismo e desenvolvimento sustentável

Capítulo VIII – Parte 1 – As onze tribos assinaladas

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Desenho de pessoa com a mão no queixo

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Este capítulo apresenta os principais aportes do levantamento efetuado junto às populações de onze municípios da tetralogia “Canastra, Araxá, Salitre e Cerrado”: Araxá, Bambuí, Carmo do Paranaíba, Ibiá, Lagoa Formosa, Medeiros, Piumhi, Rio Paranaíba, São Roque de Minas, Tapira e Vargem Bonita. Eventualmente, para simplificar, chamaremos de G11. Foi aplicado o formulário com 11 questões encadeadas [1]. As autoridades, as instituições de todos os tipos, a população em geral, pode avaliar o que mudou (ou não), passados dez anos, traçar planos de ação visando aperfeiçoamentos etc.

Complementarmente, ajunta também percepções sobre traçado urbano, estado de conservação e limpeza das vias públicas e dos equipamentos, e tudo o mais julgado de interesse.

Muitas coisas são comuns a todas

Elas estão dispersas por aí. Sejam bens naturais, como é o caso do ar e das águas, paisagens, riqueza, gente boa e, também, vários aspectos da existência da espécie humana. São onipresentes, disponíveis em todo canto. Não são reservas outorgadas por alguma majestade a um lugar determinado por deferência especial.

Uma dessas bênçãos comuns é o atavismo, consciente ou não, no apego às origens, ao chão onde nasceu e viveu a infância. São referências muito gratas a cada um. Tal como um visgo, gruda de vez, bucha nenhuma o desgarra do corpo. A mais sofisticada técnica de lavagem cerebral não consegue passar uma borracha. A ausência, em autoexílio ou diáspora forçada, não importa quão longa seja a distância, de muitas léguas, mesmo ultramarinas, por décadas, o tempo e a distância não contam, não desatam esse vínculo, não diluem essa nostalgia, não desligam esse magnetismo, a nos atrair de volta às origens. Bem difícil de explicar o que seja “essa ânsia, essa estranha nostalgia”.

Percepções da população e “causos”

Araxá

O vocábulo significa um monte de coisas, todas ligadas à altivez. “Terreno elevado e plano, planalto, chapadão”, “vista do mundo”, “coisa que olha o dia”, “lugar onde primeiro se avista o sol”.[2]

Quando Saint-Hilaire passou por aqui em 1818 contou apenas umas quarenta casas na vila, ocupadas “por gente ignorante, sem compostura”. Bem, sendo assim, mudou. A população foi adquirindo lustro, conhecimento, cultura. Faz tempo nada a dever em civilidade, literatura e apuro acadêmico. Tanto assim que, tradicionalmente, o lugar abriga forte tradição musical, comprova-o um longo histórico bem vivido de saraus, encontros, bandas, noitadas líricas, corais, “retretas e procissão”. Músicos e cantores? Uma “porçoeira” deles.

araxa
Vista da parte central

Lugar de gente metida a “sabiduria’. Estar enganado é desaforo que não guardam. Estão sempre com a razão.

Um conterrâneo viajava de avião pela primeira vez na vida. Tão logo se sentou, a aeromoça trouxe a bandeja com os chumaços de algodão que amenizavam o impacto da perda de pressão.

O Teófilo pegou dois e atirou na boca. – Senhor, é para colocar no ouvido. Percebendo a “mancada”, bem treinado, arranjou de pronto a saída – Eu sei. É que uns “gosta” seco outros “moiado”.


Vários dados interessantes, importantes, afloraram da aplicação do questionário junto a 98 moradores “do” Araxá.

De início, um grito de socorro. Na primeira pergunta, sobre quais coisas importantes oferecidas, 12 pessoas (13,2% dos entrevistados) nada indicaram! Um em cada 8 habitantes não gosta da estância hidromineral, assim parece. De longe, esta é a maior rejeição verificada entre todos os lugares analisados. O lugar mais bem dotado em atrativos nada oferece? Verdade que é de 39 anos a média de idade dos entrevistados, não jovens, “aquietados”, mas mesmo assim. O pessoal se sofisticou apesar de cercado de apelos? Ou, enfastiado não sabe onde se agarrar, deseja mais? Mas ainda na primeira questão, embora ocorra boa coerência fazendo figurar as Termas como campeã na importância (cerca de 1/3 das respostas) e as mineradoras em segundo lugar, há uma dispersão girando em torno de diversos destaques. Veem vários interesses no seu rincão. Só resta saber se isso se deve à falta de entendimento e vivência, ou, tanta coisa dispersa dilui o valor, a presença?

Devemos notar ainda nas respostas à primeira pergunta que a pujante atividade industrial não é citada entre as importâncias locais. Sendo assim, a riqueza gerada não trouxe receptividade equivalente.

Opiniões isoladas não cabem bem no método sociológico. Mas (regra tem exceção) vai uma, digna de nota: entre as centenas de pessoas consultadas por este sertão afora, coube justamente a um filho desta terra exaltar a sua própria casa como a coisa mais importante do lugar. Vai gostar do seu cantinho assim lá longe.

Um desses tipos de rua, comuns no interior, deficiente mental, fazia entregas, levava recados, mas em meio a muita conversa com citadinos. Era bastante conhecido de todos.

– Como é Mané Apolinário. Ouvi dizer que você vai ser soldado…

– Quer dizer, vou sim, vou ser soldado, vou ser soldado (iniciava com o mesmo aparte, e repetia o final de frase)

– Que profissão besta, você vai prá guerra, o inimigo te mata…

– Quer dizer, eu vou ser o inimigo, vou ser o inimigo…



Na segunda pergunta, destacam somente as Termas como a principal referência ao olhar do forasteiro (2/3 dos moradores entendem assim). A limpeza e os museus apareceram com indicação, mas fraca. Segue-se uma numerosa lista de achados, coerentemente com a questão anterior. Um deles é a vida noturna, com dois votos. Também a terra da Dona Beja foi o único lugar onde consideram noitada como “vantagem”. Alerta.

Quanto à terceira questão, sobre alimentos característicos do lugar, os doces dão uma “lavada” (citados por 2/3 dos entrevistados), perdem de vista os demais. O queijo vem em segundo lugar, com pífios 20%. Chama bem a atenção: 14 dos consultados (15%) não sabiam apontar destaques em termos de alimentação. Trata-se de um número expressivo. Com o crescimento, o lugar vai perdendo características? Ou o pessoal anda é meio desinteressado?

Nas respostas à quarta indagação, mais surpresas. Cerca de 28% não conhecem o queijo de Araxá. É o maior índice de “ingnorância” entre todas as pesquisadas. Nem mesmo sabem do que se trata ou associam a existência do produto a outros lugares, principalmente São Roque. Alguns disseram conhecer e consideram o produto, gostoso. Enquanto boa parte de Minas Gerais liga o nome local ao queijo, quase um terço dos seus habitantes não tem conhecimento.

No quinto quesito, 82% gostam de queijo, mas somente a 4 pessoas agrada o produto maturado. Também 4 citaram o Canastra. A maioria vai é de frescal mesmo, pingando soro.

Metade dos “araxanos” come queijo a qualquer hora e 33% o apreciam também no desjejum. Não costumam aproveitá-lo como tira-gosto, nas confraternizações. Cerca de 40% apreciam com doce, “Romeu e Julieta” é o predileto. Mas aproveitam também a famosa parceria com pão, derretido na chapa e valendo-se de diversas alternativas, até criativas, somando 40% das opiniões.

Talvez o posicionamento mais insólito seja quanto à qualidade. Quase 85% das pessoas não sabem discorrer ou a confundem com tipo de queijo. Há uma possível relação entre esse desconhecimento e o tamanho da população. Araxá, ao amontoar quase 95 mil habitantes [3], vê se perderem noções angulares. Confirma-o a nona pergunta.

Também quase esse mesmo percentual de pessoas não conhece ditado alusivo ao produto. Só faltava perguntar se eram mineiros. Bem diverso é o conhecimento sobre pessoas famosas amantes de queijo. Quase 70% souberam citar nome, inclusive estrangeiros. Também é alto o percentual de entrevistados que conhecem receitas apresentando queijo na lista dos ingredientes (quase 95%).

Por fim, a décima segunda pergunta confirma o fraco conhecimento sobre origem controlada. Somente (18%) souberam dizer algo.

Bambuí

Não é mais um “lugarzinho” do interior. Passaram por aqui os ventos dissolvendo o provincianismo mineiro. Praça central movimentada, as pessoas demandando as agências bancárias.


Banco lembra história passada em Dia de Finados, sol escaldante. Uma senhora, visivelmente desolada, achava-se sentada na escada de acesso de um estabelecimento destes, a quatro quadras do cemitério. Passando por ali uma viúva, luto recente, solícita, ofereceu parte da sombrinha, animando a companheira de infelicidade a continuar o caminho até ao campo santo.

— Agradeço, vá em paz. O seu falecido marido está lá, Deus o tenha… E apontando o interior do recinto, completou:

— …mas o meu está enterrado aqui.

A Igreja Matriz de Santana está plantada sobre o alto do espigão que margeia o centro. Sobressaindo-se por todo o entorno, ela guarda dimensões proporcionais ao número de almas. Porém, com todo o respeito, a apresentação é modesta, desgastada. O arranjo encimando a torre, com apresentação vazada, parece ainda por acabar, sem composição, empobrecido.

Mais tarde, andando pela zona rural do município, não pude deixar de notar uma semelhança assaz interessante. Em uma instalação de agronegócio, a tubulação sobre os silos desenha a mesma geometria piramidal tubular. Interessante essa associação. Em movimento contrário ao desejado, de elevação espiritual, o céu desceu à terra —inverteu-se a oração que o Pai nos ensinou.

Eia, boa gente de Bambuí, vamos modernizar toda aquela praça, ajardinar, enriquecer a igreja e seus anexos, melhorar o jardim, colocar iluminação! Tornar aquilo tudo uma beleza, lá em cima, a se admirar orgulhosamente de qualquer ponto, enaltecendo os espaços de contrição e reforçando o convite à oração, de sobra, na composição com o turismo, o lazer, o repouso, a leitura.

O questionário aplicado junto à população expôs as transformações trazidas pelos novos entrantes na atividade econômica bambuiense.

Nas respostas espontâneas à pergunta sobre o que ali se dispõe de mais importante, o Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) é a principal referência, alcançando mais da metade da população. Vem seguido da indústria de açúcar e álcool, identificada como “Usina”, presente em 25% das respostas. O queijo é citado apenas uma vez, jogado na vala comum de características sem expressão.

A explicação dessa preferência parece óbvia. Na busca do sustento, o emprego é o principal anseio em qualquer lugar. Deve-se perceber a importância de uma instituição do porte do IFMG, gerando salários e conhecimento em alto nível. Eu visitei o campus. As instalações, a capacitação dos funcionários e a qualificação do corpo docente rumam a excelência. A “Usina”, do mesmo modo, é importante fonte de “holerites” e abastece os cofres públicos com os impostos. Funciona também como um portal de entrada da agroenergia, acenando com tudo de positivo e negativo em sua essência. Faltou tempo para investigar quais medidas mitigadoras, planos de controle ambiental e respectivas ações compensadoras estão sendo colocados em prática na minimização dos impactos.

Campo com grama

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Paisagem rural em Bambuí. Antropomorfização presente.

Na segunda pergunta (percepções das pessoas de fora sobre coisas importantes), o IFMG confirma a principal referência (quase 60% dos moradores). A “Usina” mantém a segunda posição, com 30%. O queijo, estranho, recebeu duas indicações. Contudo, nota-se, em representativo número, as pessoas não sabem o que os estrangeiros veem no local. Enquanto em outras plagas quase todos conseguem apontar algo, 20% dos bambuienses não identificam atrações relevantes ou não têm conhecimento da percepção do pessoal de fora. Também um tanto desses citadinos não identifica alimento característico local. Esses dois achados, se representativos, podem indicar necessidade de melhoria de contribuição do ensino fundamental, ou esforço de marketing no sentido de aumentar a ligação do cidadão com o seu lugar.

Por sua vez, diante da pergunta sobre alimentos característicos, em 52% dos casos o queijo é o principal elemento identificador, um dos maiores percentuais encontrados. Mas nas respostas à pergunta seguinte chamam a atenção os 10% que dizem não conhecer o queijo local. Apesar disso, a quase totalidade se vale dele como alimento — 60% qualquer hora do dia e o restante no café da manhã. As ocorrências são parceria com os doces (53%), no pão (30%) e com café (20%). O leite e seus derivados ocupam o segundo lugar na identidade alimentar. Café e milho receberam pequena pontuação e mais seis alternativas são menos presentes ainda. Ao contrário das demais pesquisadas, nenhuma resposta à terceira pergunta invoca o doce como símbolo de alimentação. A turma aprecia-o bastante acompanhando o queijo, mas, de uma maneira geral, a doçaria não seria o forte em Bambuí. Falta maior detença na busca e na análise da razão. Se confirmada pode ser um interessante veio a ser explorado economicamente.

O bambuiense em geral, mesmo o mais jovem, conhece receita que leva queijo e citaram pessoas importantes apreciadoras do nosso produto. Recitam pelo menos um ditado com o vocábulo. “Avançar na lua pensando que é queijo” foi citado várias vezes, talvez valendo até a pena verificar se embute ansiedade, ou algo assim, e se é traço cultural bambuiense. Quanto à origem controlada, também em Bambuí não é conhecida. Apenas 40% das pessoas responderam sim, mas sem explicar, botando dúvidas sobre o efetivo conhecimento.

Mais um dado interessante foi encontrado nas respostas sobre a qualidade do produto local. Cerca de 70% consideram-no bom ou excelente. Esse achado não corresponde aos resultados da minha pesquisa gustativa junto aos balcões gelados de lojas especializadas e supermercados visitados durante a estada. A maioria das peças apresentava-se esborrachada, e aparência disforme, esquálida. As partes fatiadas exibiam buracos e trincas. No restaurante, provei do queijo disponível no self-service de frios: da população de elementos que empresta sabor, a maioria escafedeu-se. Uma consideração complementar: o bambuiense, parece, não dispõe de meios de comparação com outros produtos, fabricados alhures. Claro que a amostragem pode ser insuficiente. De qualquer maneira os caros cidadãos locais devem complementar a observação e, confirmada essa realidade, empreender esforços para melhoria da qualidade.

Observa-se carência de espaços de lazer, recreação ou atividades artístico-culturais. Mas existem várias lan houses.

Foram registradas duas ocorrências de excessos no álcool e duas de mendicância, pela manhã e à noitinha.

Carmo do Paranaíba

Eram 10 horas da manhã e um grupo de moços “curtia” rodada de cervejas no bar de um posto de combustíveis (início ou saideira?).


O ambiente me trouxe à memória o caso de um cidadão, visivelmente chegado a uma “birita”, que se acercou enquanto eu tomava um café e pediu um trocado para tomar uma pinga. Gostei da sua sinceridade, elogiei, e repassei-lhe trocados.



À primeira vista parece movimentada. As entrevistas, porém, mostraram citadinos “bronqueados” com o “paradeiro”. Apreensivos, os carmelitanos estavam de olho na vizinha e fervilhante Rio Paranaíba, com muitas obras, construções e instalação de campus.

De uma vantagem se orgulham: o frontispício da Igreja de São Francisco é o maior numa volta de muitas léguas ao redor. Ela é bonita, atesta-o a foto. As portas, fechadas.

Igreja com cruz no topo

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Igreja Matriz

Os simpáticos (não é palavra solta, chama a atenção) habitantes de “Carrrmo”, “boa tarrrde”, puxam um pouco o “r”, fazem uso frequente do “uai”, entre vários vocábulos tradicionais do “mineirês”. No coloquial sem compromisso, costumam afrouxar o cinto abandonando a concordância, “nóis vai”.

Repetindo o mesmo ritual, provei vários pedaços da produção local. A textura é diferente, parecendo menos prensada, mas o sabor era bom. Não encontrei peça contando tempo de cura.

Foram entrevistados 28 carmenses (esnobam dois gentílicos). O mais importante ali é o povo (11 votos). Interessante, pois não é tão pequena assim. Segue-se a economia (6 votos). Café e clima encabeçam uma lista de dez alternativas dispersas. Duas pessoas apreçaram suas famílias. Coisa rara. Um cidadão disse não ver nada de especial, mas completou se penitenciando: confessou estar um pouco “discabriado” com sua terra. Não achei esse vocábulo no Aurélio que tenho em casa. No ”Pipocas”, do João Victor, encontrei, indicando o sentido de desconfiado. O entrevistado talvez tenha pensado em dizer “disacorçoado” ou seria descoroçoados, desanimados. Desalentados estamos todos nós com a corrupção, IDH, índice Gini mas isto não é conversa a nos ocupar aqui e agora.

Repetem no geral as mesmas referências sobre a percepção do pessoal de fora: o povo, a economia e o clima são os principais. Um deles acrescentou: as moças bonitas. Foi a única localidade que fez referência à beleza feminina nativa. Ora, que bom, então não falta motivação para os solteiros conhecerem o lugar.

Quanto ao alimento mais característico (terceira pergunta), ocorreu a mesma falta de acordo em torno de alguma referência. O café (9 votos) foi o mais citado, e entre as demais 10 alternativas figura o queijo, com 3 votos. Todos o conhecem, “acham bom”, gostam de comer a qualquer hora, principalmente com doce, no pão ou sozinho. Conhecem receitas. Sabem que a qualidade varia, mas somente duas pessoas conseguiram detalhar explicação a respeito.

Grande número de pessoas (16) sabe de gente famosa apreciadora de queijo. E, mais inusitado ainda, praticamente cada uma citou um nome diferente: de cantor a escritor, passando por um monte de políticos. A respeitar a amostragem, somente uma famosa apresentadora pode ser citada, com garantia, como apreciadora. É a única que figura também no rol de vários outros lugares. Pode ser um indicador do poder de difusão das redes de televisão.

Nesse nosso sertão as pessoas em geral não contavam com muita instrução(atualmente “dimudou”). Assim é que, na procissão, a prece “pelos méritos de vossas Santas Chagas”, se transformava em “pelos médicos de nossa Santa Casa”.

Também é alto o percentual (46%) de respostas positivas sobre origem controlada, mas não explicaram. Finalmente, somente seis sabem ditados com o vocábulo. Bem pouco. Na rápida passagem, incluído um pernoite, registrei uma ocorrência de mendicância, e só.

Ibiá

Decorridos vão lá uns sessenta anos desde o último baile no clube, encontrei o lugar bem arrumado, limpo, com avenidas largas e interessante crescimento. Diferente de antigamente, quando ainda não tinha feito toalete.


Naquele tempo existia rivalidade com Araxá, talvez nutrida na grama das canchas de futebol, criando indisposição entre os habitantes das duas localidades vizinhas, não obstante tantos laços familiares existentes. As provocações e os atiçamentos estavam na ordem do dia. Minha irmã estudava piano com a professora Maria Ângela Bittar, aplaudida artista do teclado. Certo dia, durante o almoço em casa, noticiou que no sábado seguinte a turma de alunas iria até Ibiá dar um concerto. O meu irmão mais novo, de uns 10 anos à época, emendou logo:

— Ué, mas aquilo lá tem conserto?

Pois consertou. Tem base? Está bem arranjada a querida Ibiá. E há mulher nua desfilando pelas ruas, toda noite de 20 de maio. Mas não precisam correr até lá, é ficção. Segundo a lenda, é aparição de alma penada, uma bela e infeliz noiva que teria posto fim à própria vida após a frustração no altar, o noivo desistindo na hora do “sim”. Isto é o que se lê na internet. Não lembro de ter ouvido antes a respeito.


Esta minha visita se deu no domingo anterior ao Natal de 2010. O comércio estava aberto. Incomodou-me o barulho ensurdecedor dos potentes alto-falantes, das lojas e de carros estacionados junto a um bar, da moçada iniciando bem cedo a incursão. Bem diferente era o ambiente em volta da Matriz, à saída da missa. A festa é a da serenidade de interior, ouvindo-se somente as pessoas conversando, educadamente, sem sobressaltos.

A amostragem aqui foi menor, relativamente. A manhã de chuvisco, indisposição e cansaço prejudicaram o levantamento.

A levar em conta as respostas ao questionário aplicado junto à população, pode-se entregar à Ibiá o troféu de maior dispersão sobre as percepções levantadas. Está bem dispersa a percepção quanto o que os forasteiros percebem ou apontam de importante no lugar. O entendimento do cidadão varia, nada se destaca em especial (agricultura, pecuária, hospital, bom de morar, segurança, comércio, crescimento, clima, tudo é bonito, tranquilidade, o povo). Com porte sem tanta diversificação assim, seria de se supor que os habitantes guardassem relação de identidade semelhante à dos demais lugares. Ou o domingo não é um dia bom de conversa sobre esses assuntos?

Vista de cima de campo e montanhas ao fundo

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Maravilha nas proximidades de Ibiá. Tem base? [4]

Na mesma toada, falta melhor o consenso sobre o alimento mais característico. A batata e o leite foram os mais citados, em 1/3 das opiniões. O queijo foi nomeado duas vezes. Feijão, arroz, carne, verdura, galinhada e torresmo completaram a longa lista.

Todos por lá gostam do produto, saboreando-o a qualquer hora, mas fresco. A maior incidência de associação é com o doce. Conhecem receitas, percebem variação na feitura e no sabor, e 1/4 das entrevistas mostrou conhecimento sobre origem controlada.

As respostas não mostram bom conhecimento de ditados com o vocábulo “queijo”. Somente uma pessoa soube citar um refrão. Talvez seja bom incentivar a preservação dos valores tradicionais.

Lagoa Formosa

De onde vem a água que abastece o pequeno lago? O bonito espelho, bem como os quarteirões à sua volta, fica na parte mais alta da elevação local. As ruas de acesso são subidas, uma delas até um tanto inclinada. Não há morros próximos de onde possa escoar a linfa. Fiquei “encucado” com aquilo. Uma vez em casa, com apoio do fantástico Google Earth, o aparente mistério encontrou uma possível explicação. Exceto na sua parte sudoeste, por onde a lagoa esgota o excedente, todos os quarteirões circundantes são dois, três ou cinco metros mais elevados. Quer dizer: ela se assenta em uma depressão e, portanto, toda a água em volta percola rumo a áreas do espelho. Os entendidos corroborem essa conclusão. [5]

Lago com árvores em volta

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O pequeno lago no centro.

Era chamada “Lagoa das éguas”, uma inclusive morreu em pé. Depois o pessoal achou depreciativo e abandonou. Depende de quem ouve. Ao contrário, vejo uma conjunção dos meios físico e biótico, privilegiando a natureza e, portanto, está bem, sonoro, bonito. Deveriam ter preservado esse nome.

Graciosa e meio “exibida”: conta com biblioteca em prédio bem ajeitado, os principais quarteirões do comércio são organizados (a concentração e a apresentação das lojas vão além do porte local) e tem até banheiro público, bem montado, limpo. Vi também uma “venda” no velho estilo antigo, que o proprietário faz questão de preservar com feição interiorana de cem anos atrás —legal, uma loja de departamentos à moda antiga, tem de tudo.

Loja com portas de vidro

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A “Vendinha”


Foi neste estabelecimento que certo dia um dos bons fregueses apareceu querendo saldar a conta. Um médico local, benquisto, mas frequentemente visto trôpego, de tão embriagado.

– Não doutor, hoje não, deixa prá outra hora (acudiu o bom comerciante, receoso de que pudessem pensar que estaria aproveitando da situação e cobrar acerto. Lugar menor, todos tomam conhecimento de tudo).

– Faço questão, quero pagar agora, soou mal e mal a voz pastosa. Um bom pacote de notas dançava entre os dedos.

– Ora doutor, não carece, quer saber, o senhor não deve nada.

– Então me dá isto por escrito.

Nem tão “baqueado” assim. O mercador recebeu.



A igreja é bonita, mas segue a mesma sina de todos os nossos templos. Precisa vestir roupa melhor, de “ver Deus” (raras vezes cabe tão bem a expressão), outro revestimento, quem sabe erguer um campanário, espaço não falta na ampla e arborizada praça.

Em um sítio próximo, visitei uma queijeira local, não certificada, mas indicada como um dos melhores produtores da vizinhança. O artesão estava lá, de botas brancas, espremendo a massa nas fôrmas. Muita lama no acanhado espaço (chovera bastante na noite anterior). As prateleiras estavam vazias. Um comerciante local tinha passado e levado a produção do dia anterior. Mais tarde, em um armazém, experimentei um pedaço de outra artesania. É bom.

O questionário foi respondido por onze lagoenses. Lidei com a maior rapidez ao falar e com um impertinente carro de som obrigando a interrupção momentânea de uma das entrevistas.

A primeira pergunta, mais uma vez, mostrou: conseguem ver na calma e na tranquilidade o mais importante. Metade dos entrevistados citou essa característica como principal. Demais referências (a praça, o comércio e a área de saúde) estão dispersas com um ou dois votos. Foram citados também o caráter e a simplicidade das pessoas, a convivência e amizade, vantagens somente destacáveis em meio a menor número de habitantes, onde a interação social e os vínculos de família ainda se fazem relativamente mais presentes.

Na segunda pergunta, novamente foram destacados a calma, a praça, a limpeza, hospitalidade, Carnaval, mas bem mais dispersos, sem maior acordo sobre uma característica mais relevante aos olhos dos visitantes. O queijo, repetindo a reação à primeira pergunta, não foi citado. E pior: nem na terceira tentativa, perguntados sobre os alimentos mais característicos, ele também comparece. O feijão assume a liderança, bem isolada. Há quase unanimidade em torno dele. Leite e milho foram menos citados. Outros, tais como mandioca, café, tomate e verduras receberam um voto somente.

Apenas uma pessoa não conhece o queijo local. A maioria aprecia e gosta, mas fresco, a qualquer hora, ou no café da manhã, com pão ou no arroz. O lagoense se diferencia totalmente de seus patrícios mineiros consultados por aí. Somente 10% deles gostam de comer queijo com doce. A maioria vê diferenças nos produtos e conhece receita utilizando queijo. Um deles citou uma novidade: uma farofa feita com jiló e ovo. A totalidade não conhece ditado com a palavra queijo ou pessoa famosa que gosta de saboreá-lo. Somente um cidadão sabia o que é origem controlada.

Medeiros

Platão a citaria como exemplo. O famoso sistemático de Academo defendia seu ofício: receava crescimento além do número de pessoas ao alcance da voz de um orador estorvando a difusão de seus ensinamentos, à viva voz.

Tudo na singela e pacata Medeiros parece fluir de forma segura e serena, em compasso suave e cadenciado, adágio, vivace ma non troppo, de quem aprecia cada momento da vida, sem pressa, um “xô” nas preocupações — agonia não existe nos dicionários por ali. As residências não dispõem de campainha. Bate-se palma, “ô, de casa”. Somente uma, de construção recente, conta com interfone.

Não percebi riscos à organização social (desnecessário dizer), sem manifestações de alcoolismo, prostituição, mendicância, menos ainda qualquer tipo de delinquência num lugar onde somente se vê a meninada na alegria da saída da escola, subindo a praça-avenida principal rumo às suas casas. Automóveis, raros, aliás, talvez só o meu, poluindo visualmente o ambiente.

No saguão da Prefeitura Municipal presenciei uma cena antiga — não via faz tempo. Com a profusão de mercadorias ansiadas pela cultura de consumo, apresentou-se como figura ímpar aquela senhora, tão viva e empertigada o tanto quanto possível em uma octogenária, bem à vontade… com os pés descalços sobre o piso frio.

Também no mesmo hall de entrada chamou-me a atenção uma foto da então vila de Medeiros. Apesar de algum esforço junto a pessoas depois, na rua e no cartório, não consegui saber qual a data, mas a pose deve ser centenária.

As duas fotos acima comparam a parte central nesses dois tempos distantes um século. A capela antiga, ao fundo, um pouco à direita, foi remodelada e encontra-se atrás das palmeiras mais altas. O lugar se transformou, bem se vê. Como será daqui a cem anos? O crescimento não perturbe a calma que a encanta.

Esse registro antigo é da época dos missionários percorrendo os lugarejos. Rezavam a missa, atendiam às confissões, distribuíam santinhos, enfim, cumpriam todos os ofícios do trato da fé. No encerramento, vinha a hora das bênçãos:

— Agora “benzeção” de água! Garrafas se levantaram.

— Agora terços e medalhas! E levantavam os símbolos de devoção.

— Agora vou benzer as cruzes!

O José Guerra suspendeu a velha Marculina e gritou:

— Benze ela tomém, seu mussunaro!


As respostas ao questionário aplicado junto aos moradores apontaram a natureza, nas suas diferentes possibilidades, como campeã na importância e enquanto ponto de atração local. Essas respostas denotam uma inequívoca identificação com a recente chegada do turismo.

Em segundo lugar, na lista das coisas importantes do lugar, vem o caráter geral dos habitantes, entendido como favorável na união manifesta de todos. Virtudes ou vantagens competitivas como o bom humor e o apego ao serviço também foram considerados traços marcantes. A paz, a tranquilidade e as boas condições de vida, completam os destaques da percepção mais comum.

A sociologia oferece os conceitos de Durkheim em solidariedade como forma de manutenção da ordem e da paz. As crenças e os valores compartilhados de forma mais presente em um grupo social funcionam como um cimento moral que os aglutina. Dito de forma diferente, a existência de um conjunto de padrões de relações vivenciados pelos indivíduos compõe uma referência, garante maior união entre as pessoas e adesão mais visível a um contrato comum.

Olhando esse resultado da pesquisa em Medeiros, não apurado de forma tão destacada nas demais localidades avaliadas, aflora a tentação de pensar que o aumento da população, a entrada de tecnologias e as sofisticações de cada dia funcionam como forças que perturbam essa consciência comum e abalam as bases da estrutura, da organização, dos sistemas e da ordem. É possível tranquilidade em urbe de maior porte, mas as evidências mostram as maiores dificuldades em obtê-la, pelo menos por enquanto, em especial no Brasil. Quanto mais presente o vigor da justiça mais populoso pode ser um lugar preservando a tranquilidade.

O parentesco contribuiria como força aglutinadora, apoiando a estabilidade. Em lugar menor, nomes são compartilhados na composição familiar, nos registros de nascimento, favorecendo a efetividade de aplicação de sanções, positivas ou negativas sobre os comportamentos. Os tios e as tias, os avôs e as vovós, direta ou indiretamente participam da formação, do processo de socialização. “Eu vou contar pro seu pai”. “Esse é o Chiquinho, filho do Zé da Dinda, menino estudioso, vai ser gente”.

No segundo quesito, indagando sobre qual a percepção dos forasteiros quanto ao que lhes é oferecido de importante, os moradores insistiram na tranquilidade e na hospitalidade (quase a totalidade das pessoas fez referência a uma delas ou às duas).

O queijo não é citado nas respostas espontâneas a essas duas primeiras perguntas sobre “as importâncias” locais. Os filhos do lugar não percebem esse produto como elemento próprio dos autóctones, e nem também como atração. Mais uma descoberta espantosa. Sendo ele um dos esteios da economia local, faz-se água num dos fundamentos do materialismo histórico.

Diante da terceira pergunta, sobre alimentos característicos do lugar, dois terços das respostas apontam o queijo como o principal elemento identificador. Todos são unânimes em afirmar que gostam e fazem uso dele cada dia, “vareiando” somente o jeito. Vai como acompanhamento dos doces, no sanduíche com pão e em parceria com o café. Outras nove formas de uso foram citadas, sem nenhumas delas somar representatividade.

Os doces estão em segundo lugar na identidade alimentar de Medeiros, mas bem atrás, em apenas 25% dos entrevistados. Mais elementos comuns ao quotidiano obtiveram eleição individualizada, sem destacar presença notável de qualquer um.

Perguntados sobre conhecimento ou uso de receitas, a maior incidência de respostas recai sobre o pão de queijo (mais de 60%). Os bolos ocupam a vice-liderança (quase 50%). Seguem, em fila, o pudim de queijo, o biscoito e a queijadinha.

Finalmente, metade dos entrevistados conhece origem controlada, e a outra “facção” dispõe de noção aproximada do processo de acompanhamento da elaboração do queijo e sua qualificação. No resumo, Medeiros é uma das mais identificadas com o “redondo” entre todas as visitadas.


Na segunda Parte deste Capítulo veremos “Complementos e Conclusões”.


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Veja o capítulo VII

Veja o Capítulo VIII Parte 2


Caro(a) leitor(a)

Notícias

“Homem invade fazenda e rouba 36 peças de queijo em Tapira.

Suspeito de 46 anos teria sido flagrado pelo dono da propriedade e contido por populares”. (Radio Itatiaia, 22/2/2022)”.

Neste capítulo descreve-se a excelência do queijo produzido em algumas fazendas de Tapira. Não que queiramos dar razão ao larápio, mas pelo menos ele conhece Queijo Minas Artesanal de primeira.


NOTAS

  1. O referido levantamento foi realizado em Nov-Dez/2011 e Jan/2012. Ele é parte integrante do projeto da primeira edição. A seguir, o formulário aplicado.
    Tabela

Descrição gerada automaticamente
    Tabela

Descrição gerada automaticamente

    Tabela

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

  2. E é mesmo o ponto mais alto em toda a grande região. Altitude maior somente será encontrada em Poços de Caldas, a 260 km ao sul.
  3. População à época do levantamento. Em 2022, é estimada em 108 mil habitantes.
  4. Mote utilizado inclusive pelos próprios cidadãos do lugar. Deve alguma expressão gerada em circunstâncias especiais e acabou compondo apropriação própria de pertencimento do grupo social. Quase uma divisa da querida Ibiá.
  5. Não se consegue facilmente autorização de reprodução de fotos e de matérias. Não respondem. Por isto coloco aqui bem escondida a referência abaixo. Que o oficial de justiça não bata na minha porta.

    Pontos turísticos de Lagoa Formosa são atração para a população – YouTube

    O filme da entrevista é rodado junto ao lago. Nele se pode ver que é quase um plano. E pode-se apreciar o jeito de falar dos ali “nascidos e criados”.

Posted by Brasil 2049

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