Autor: Manfredo Rosa
Nos textos deste Site (Aba “Economia”) que tratam do processo de fatiamento da maior empresa do Brasil, temos alertado para um ponto crucial: ele vem acontecendo sem ampla participação (não bastassem os prejuízos acarretados aos interesses do Brasil por esta venda de ativos da Petrobras). O Brasil investiu no seu desenvolvimento, e, portanto, agora, deveria estar acompanhado de amplo debate. Infelizmente, não é o que estamos assistindo.
Podem ser listados alguns fatores que desenham essa realidade, sempre complexa. Trataremos aqui de um desses vetores: o da aceitação pacífica das motivações e dos argumentos apresentados pelo atual governo resulta também da nossa credulidade tão presente. Consideramos ainda que esse misticismo, essa crendice, ocupa o espaço do estudo e do conhecimento, dos quais somos tão carentes. O acesso às ciências em geral, ao contrário, propicia a dúvida, a dúvida prévia, como ponto de partida da análise mais apurada dos fenômenos. Dito de outra maneira, o preparo intelectual dificulta que a opinião pessoal se apoie em uma tradição, ou seja, resultado de alguma emoção, ou abraçada por uma ideologia qualquer que nos faz repetir motes e palavras de ordem tal qual papagaios adestrados.
Certamente que não vale a pena gastar tinta e papel para descrever como todo o sistema de formação (e de informação) em geral parece trabalhar a favor da manutenção deste nosso comportamento, de transferir para o plano da magia, da transcendência a explicação (ou solução e aceitação) dos problemas do mundo real. Importa para a dominação essa insuficiência crítica, essa superficialidade. Ceticismo e dúvida não vendem jornais. Ao contrário, horóscopos, “fake news”, declarações retumbantes, prestidigitação, mantras atraentes de todos os tipos e libidinosidade são mais profícuos comercialmente, rendem muito mais, precisamente porque nossa índole é mais afeita a esses valores e essas crenças.
À dominação importa a permanência do elenco de percepções vigentes. Tudo fazem para que não aprendamos a ser um pouco céticos. Deus os livre do poder libertador do conhecimento, da ciência. Não é bom para eles colocar a dúvida como exercício permanente de observação e compreensão do mundo.
Uma ressalva central é oportuna aqui: o aprimoramento da espiritualidade, o cultivo das virtudes, o fortalecimento do amor ao próximo, a prática da solidariedade e a visão clara do que é justiça, são referências milenares, inarredáveis, indiscutíveis (a não ser por uma meia dúzia de malucos que já passaram pela face do planeta). Portanto, tudo o que consideramos no correr deste arrazoado, em hipótese alguma pode ir contra a esses fundamentos, ser entendido como negação desses pontos básicos, ou oposição a esse dado pronto e acabado, “grid” de largada para vida.
Misticismo quase sempre leva à credulidade, à crendice.
Um fantasma paira sobre o Brasil[1]. É o fantasma da superstição, da ignorância, da crença cega na transcendência de forma exacerbada, de coração fechado. Essa credulidade proverbial nos torna vítimas fáceis, das fantasias e dos engodos.
“Somos feitos de estrelas” dizem com gosto, para levar a crer somos alguma coisa especial no universo ou compostos de algo misterioso. Em absoluto, nem uma coisa, nem outra. Na realidade, nós, as estrelas, enfim, tudo que há por aí, universos afora, são feitos da mesma “coisa”.
Embora não com ímpeto dos tempos da guerra fria, continuamos vendo UFOs pelos céus. As narrativas se repetem, várias em novas versões de tradições seculares, encontros sobrenaturais, raptos etc. Em alguns lugares, os contatos com os “pires” seguem o padrão das aparições de santos. Certo é que a imensa maioria dos milhares de relatos ligados a seres de outros mundos já foi elucidada (uma boa porção delas identificadas como fraude nas mais diversas motivações), restando somente uma meia dúzia de casos para os quais não se conseguiu explicação viável, incluindo a de que tenha sido resultante de visita extraterrestre.
“Vai com Deus”, “fica com Deus”, “Deus o acompanhe”. Enquanto os evangelhos nos exortam a elevar o espírito até aos céus, no dia a dia aplicamos de forma inversa o ensinamento. Trazemos Deus para a terra. Rezamos o Padre Nosso ao contrário.
No seu livro, Carl Sagan propõe uma alegoria, bem humorada, e que pode ser aplicada a grande parte de todos os comportamentos que envolvam crendices inocentes, pressupostos enganosos, percepções infundadas e “fenômenos” similares, todos eles frutos da já indicada carência de racionalidade e de incredulidade:
“Tem um dragão na minha garagem”. “Que legal! Eu gostaria de ver. Vamos até lá?” “Não é possível vê-lo, ele é invisível”. “Ora, que pena. Ah, Já sei! Vamos jogar talco no chão e marcar as pegadas.” “Não aparecerá. Ele flutua no ar.” “Humm, que coisa hein!? Então vamos aspergir tinta micro pulverizada para traçar a silhueta.” “Também não vai funcionar, ele é incorpóreo.” “Ah, ele joga fogo pelas narinas, não é? Então vamos usar óculos infravermelhos.” “Tampouco dará certo, a chama é fria, atérmica.”
Em grande número de casos é esta a nossa “visão” das coisas, o nosso entendimento dos fatos: um dragão invisível, que flutua, incorpóreo e que emite chama atérmica. Fica a pergunta: Qual a diferença então entre este dragão e um que não existe?
Nesse nosso ambiente de abatimento intelectual, de credulidade, brotam e vicejam as maquinações de todos os tipos. As frases de efeito, enganadoras, fervilham faz tempo. “Vamos repartir quando o bolo crescer”, “Brasil, país do futuro”, “Vamos nos desfazer do petróleo, vai valer nada, graxa” e outras maldades semelhantes. É nesse “habitat” de aceitação prévia que surgem tantos testemunhos fantásticos de espertalhões sobre justiça que praticamente não existe. Enfim, todas essas fantasiosas manipulações são aceitas e muitas vezes levadas a sério por grande parte da população. A mais recente mentira se propaga agora ao listar as razões pelas quais se quer entregar o rico negócio do petróleo como sendo de interesse da nação.
Essa nossa característica, da crendice, capenga de crítica, o suficiente para nos tornar facilmente influenciáveis de uma maneira geral, permite essa facilidade de se enganar o povo, especialmente quando ele anseia por algo em que acreditar. Conhecemos muito bem histórias desse tipo, reprisada em várias oportunidades, com diversas roupagens. E nessa repetição sem fim acabamos sendo aprisionados, vitimados no logro que volta a se repetir. A penumbra da aceitação parece ser o meio que nos envolve. Thomas Paine, famoso político e intelectual, alerta: acostumarmos com mentiras cria o fundamento para muitos outros males. Esta proposta se torna mais adequada ainda porque toma o cuidado de não excluir as pessoas que querem acreditar nas falsidades porque isto lhes convém de alguma forma. Essa nossa ligação com o etéreo, esse visgo do imponderável, confirma-se no sucesso dos livros sobre deuses e astronautas, códigos, romances fantásticos com narrativas envoltas de brumas e ninfas, magos de todos os tipos, dragões e assemelhados.
As nações perecem, também, por falta de conhecimento. Estudar é atividade que bate de frente com o misticismo, opõe-se à credulidade. Aprofundar em determinado assunto não se afina muito bem com o tal do bom senso. Saber tem pouco a ver com a “experiência” muitas vezes invocada na insuficiência de argumento. Conhecimento pode ser irmão siamês da democracia, por não pressupor autoridade, ao admitir no máximo especialistas e limitados ao seu espaço e, com tempo de duração.
Os dogmas da fé são objeto de experiências no plano espiritual. Em oposição (preservado o que foi dito no início), podemos dizer que boa dose de “heresia” é muito bem vinda quando se trata de questões terrenas. As opiniões arraigadas, cristalizadas, muito comumente significam, ou submissão a interesses pessoais ou, pior, perda da capacidade de pensar. No mundo do conhecimento material, atado ao real, não existem verdades eternas. O espaço é ocupado apenas por percepções e hipóteses provisórias, muitas vezes com duração relativamente curta. O campo da ciência de fato, é de ponderação, de cuidado e, principalmente de muitas ressalvas e limites.
Uma característica (de tanto apreço) da racionalidade, do ceticismo, da ciência é que trabalham durante o dia, às claras, sob a luz do sol e sem sigilos, estimulando a participação, valendo-se de referências ligadas à honestidade, a humildade e às evidências. Tal como na democracia. Desta maneira, o cético, tanto quanto possível depurando as vaidades e as falsidades, tende a travar uma luta mais limpa no dia a dia. Já o crédulo, mesmo contra a sua vontade, pode se envolver no dolo, na trapaça. Ainda que inconscientemente, pode estar participando da tapeação.
Conservar a mente aberta é uma vantagem, especialmente quanto à possibilidade de se mudar de opinião, de aceitar novos entendimentos quando assim indicarem as evidências. A atitude desimpedida, disponível, aceita aperfeiçoamentos, busca a aproximação. A postura mística questiona a identidade por princípio, ela parte de reservas e impõe premissas para que a pessoa seja admitida. É sistema fechado. “A ciência racional trata as suas notas de crédito como se fossem sempre resgatáveis quando solicitado, enquanto o autoritarismo não racional considera o pedido de resgate de suas notas uma desleal falta de fé”. O conhecimento é prático, funciona, leva a algo útil. O misticismo acredita em Nova Era, na Atlântida, ou em uma doutrina xamanista com poder de curar pessoas, esperando destas entidades algum resultado. São vítimas desarmadas da fraude tão comum no lucrativo negócio da cura pela fé. No tempo dos faraós (e certamente em outros momentos) as pessoas pediam aos deuses para que ele vivesse mil anos. Segundo os dados disponíveis, falharam sempre.
A condição crédula, em ambiente de pouco conhecimento, tende a explicar a existência a partir de sua consciência limitada. Já o estudo, a razão, a ciência, tendem a abrir a porta para ver que a consciência está subordinada à existência. O amadurecimento enxerga a interação entre as duas concepções.
Para concluir, convenhamos! Como é difícil, árduo, desanimador o caminho que deve ser percorrido para se conseguir garantir algum estudo, um pouco que seja de instrução, de conhecimento para ajudar a compor a “incerteza prudente”, na medida certa, conforme o assunto, o lugar e o momento. (Em relação às coisas práticas da vida real, a desconfiança deve estar à frente sempre, incansavelmente. Já no que diz respeito às crenças religiosas, toda a parcimônia e todo o respeito são necessários e indispensáveis). Conseguir eliminar um pouco esse misticismo, essa credulidade, essa docilidade, é esforço muito grande, cansativo, inaudito. Como se não bastasse, o meio social não aplaude, não prestigia o conhecimento. Ou antes, parece atuar na contramão, somando forças para ampliar o atraso. De fato, por exemplo, cultuamos os heróis que se fizeram na vida sem precisar de formação escolar. “Houve um tempo em que os professores gozavam de emprego seguro, bons salários, respeitabilidade. Ensinar era uma profissão admirada, em parte porque se reconhecia que a educação era o caminho para sair da pobreza. Pouco disso é verdade hoje em dia. E assim, o ensino da ciência é muitas vezes ministrado de forma incompetente ou pouco inspirada, pois, espantosamente, seus profissionais têm pouca ou nenhuma formação nas próprias disciplinas”. Neste trecho Sagan se refere aos EUA. “Mutatis mutandis”, aplica-se ao Brasil. As perdas por lá são resultantes da preferência por gastos com armamentos. Por aqui, prestaram desserviço equivalente, a dependência econômica cada vez maior, os lucros dos bancos e a corrupção deslavada. A paisagem resultante é de pobreza, de desesperança esmagando as mentes, cultivando o fracasso de sempre.
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Outros espectros esvoaçam por toda parte, mas não cabe aqui e agora discorrer sobre eles. ↑