AUTORES
Caio Múcio Barbosa Pimenta, Eugênio Miguel Mancini Scheleder, José Fantine, Manfredo Rosa
CAPÍTULO I – AS PEDRAS NA HISTÓRIA
Contam que Noel Rosa venceu uma querela com outro compositor, compondo joias do cancioneiro nacional. Uma delas enfatiza:
“Quem é você que não sabe o que diz,
Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!”
Na política e nas comunicações alguns mantras intensamente levados à sociedade e ao debate resultam da acolhida (por alguns políticos, analistas e experts) de alegorias, frases, dizeres que parecem fazer muito sentido e, por isto são aceitas. Contudo, algumas vezes, trata-se de artifícios para enganar o interlocutor, o ouvinte ou mesmo a sociedade. Alguns deles são reedições de antigas metáforas, porém fora do contexto e das motivações de suas criações. Neste caso, para alcançar objetivos não republicanos, ou por desconhecimento do contexto original, seus divulgadores repetem indefinidamente o que se torna um palpite muito infeliz, prejudicial à formação de um bom consenso sobre assuntos de interesse nacional.
Lamentavelmente falta um plantão “anti-palpites-infelizes”, ou autores como Noel Rosa de prontidão, para desnudar para a nação, com maestria, esses mantras falaciosos.
O palpite infeliz
Tem sido atualmente objeto de interesse de alguns o seguinte palpite infeliz (pelo uso enviesado de informação sofismada, e sem se reportar ao contexto de sua criação): “A Idade da Pedra não acabou por falta de pedras, e a Idade do Petróleo terminará antes que os combustíveis fósseis estejam exauridos”.
A primeira parte do bordão acima é uma metáfora clássica atribuída ao Sheik Ahmed Zaki Yamani, ministro do petróleo da Arábia Saudita de 1962 a 1986, e liderança capital nos idos das Crises do Petróleo na década de 70/80 de século passado. Foi uma das personalidades mais destacadas no contexto da geopolítica do Oriente Médio em suas disputas para se livrar da exploração estrangeira, predatória e colonialista dos recursos petrolíferos e gaseíferos da região. Sabia o que falava.
Na época, os países do Oriente haviam nacionalizado todas as indústrias petrolíferas e ganharam autonomia na definição de preços, multiplicando extraordinariamente suas rendas, reavendo todos os direitos antes concedidos a preços irrisórios para o capital estrangeiro. Entre 1973 e o momento atual, os preços do petróleo e do gás oscilaram, porém os ganhos de todos os países exportadores apresentaram-se muito elevados dado o baixo custo unitário de produção local destas formas de energia (grandes volumes e investimentos muito reduzidos para extrair óleo e gás).
A intenção do Yamani era despertar os países da sua região para a possibilidade de que os elevados preços do petróleo e novas tecnologias poderiam viabilizar o uso de alternativas nas nações grandes consumidoras (nações mais ricas), desejosas de se livrarem das pesadas contas de importação do produto e da dependência do instável Oriente Médio. Sobretudo, queria estimular que estes países se preparassem para uma situação de independência progressiva dos recursos do petróleo para sobreviverem. Aconselhava, para tanto, fazerem uso de suas fabulosas receitas. Alguns governos seguiram (ou seguem) com sucesso tais ensinamentos (Por exemplo, o Catar, os Emirados Árabes Unidos e agora a Arábia Saudita, principalmente).
Ainda que bem-intencionada e motivadora, aquela figura de retórica continha um perigo crucial, pois misturava um conceito de História Universal com outro, o econômico/tecnológico, como se verá. No entanto, se considerada a perspectiva de longo prazo para a efetivação de sua teoria, o mantra estaria correto ao considerar não os usos, mas a importância das pedras, do petróleo e do gás para a humanidade.
No Brasil, esta comparação tem sido utilizada por analistas defensores da abertura total das Bacias nacionais de grande potencialidade (em petróleo e gás) para a iniciativa privada (que, no caso, é majoritariamente representada por multinacionais estrangeiras). Ou seja, enquanto a ideia do Yamani era alertar os Estados do Oriente Médio para que aproveitassem a riqueza sob comando estatal (duramente reconquistada) para promover o desenvolvimento local, a ideia no Brasil é justamente a contrária: de repassar as reservas nacionais para outros interesses, principalmente estrangeiros, ignorando que entre as economias subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, este tipo de orientação nunca resultou em progresso real [1].
Assim, a difusão, por aqui, da frase do Yamani tem servido para um fim oposto ao da época de sua formulação. De fato, naquela época, ninguém ousaria fazer propaganda para que os países do Oriente Médio entregassem novamente suas reservas para o capital estrangeiro ou privatizassem suas estatais.
As Idades no contexto histórico
Os historiadores dividiram didaticamente a História da Humanidade em períodos. O primeiro deles a Pré-História foi subdividido em três eras, considerando, respectivamente, a importância vital, da Pedra, do Bronze e do Ferro para o desenvolvimento humano, através do uso para ferramentas, máquinas rudimentares e armas. Em nenhum momento afirmaram que o uso destes elementos cessara. Com a evolução das forças de produção deu-se, de fato, o fim da Idade da Pedra, da mesma maneira que do Bronze e do Ferro, mas não cessou o uso de nenhum desses elementos. Nem na forma bruta primária, nem no uso indireto pela transformação de rochas na rota da metalurgia. Ao contrário, sempre cresceram em importância econômica.
Este texto procurará mostrar a pobreza histórica do mantra (e que é apresentado como sendo um grande achado), na realidade utilizado fora de seu contexto original, alterando substancialmente a intenção, com outros propósitos. Ao mesmo tempo, as considerações tentarão restabelecer a história do uso, das pedras e do petróleo.
Como sempre, o site conta com as opiniões, contribuições e correções do leitor, objetivando o aprimoramento permanente.
Em um segundo texto procuraremos demonstrar que também os usos, do petróleo e do gás, não cessarão tão cedo a ponto de o Brasil ter de desistir de seu projeto nacional de desenvolvimento com base nas jazidas do pré-sal, exploradas majoritariamente pela Petrobras com competência para fazê-lo.
“As pedras e o petróleo”, ou
um palpite muito infeliz e prejudicial ao Brasil
O que se convencionou chamar de Idade da Pedra delimita a primeira das marcações didáticas do campo da História Universal que compreende a etapa inicial da jornada do Homo Sapiens na Terra, na Pré-História. Ela é assim definida para situar a predominância do elemento “Pedra” na vida dos agrupamentos humanos naqueles primórdios. Caracteriza, também, a singeleza de um período, quando as necessidades básicas dos indivíduos se restringiam praticamente a sobreviver e se alimentar. Esse intervalo de tempo trouxe avanços importantes nos meios de produção e, cumprido o seu tempo, foi substituído por outro. Mas as pedras nunca deixaram de ser intensamente utilizadas pela humanidade. Continuaram existindo, em profusão, e não há quem duvide que elas sempre estiveram por aí, em profusão, por todo canto do planeta Terra, que é, em verdade, um grande conjunto rochoso a circular no espaço.
Ela é sucedida pela Idade dos Metais ou, mais especificamente, pela Idade do Cobre, do Bronze (liga de cobre e estanho) e depois do Ferro, também elementos irmãos das pedras em geral. Houve o surgimento e evolução de metalurgia artesanal e algumas rochas/pedras fundidas geravam metais mais apropriados para a confecção de armas, utensílios e ferramentas necessárias ao processo evolutivo dos agrupamentos humanos. Destacaram-se na fabricação de ferramentas, máquinas rudimentares, utensílios variados e armas, bem como abrigo em rústicas moradias. E as pedras comuns não deixaram de ser utilizadas naqueles períodos subsequentes da Pré-História, e tampouco depois deles.
Resulta daí a esperteza dos formuladores do mantra: ligar esta divisão da História às reservas de petróleo e de gás, de forma enganosa. Por falha no entendimento da História confundiram fim de uma Era Histórica com o término do uso das pedras com um objetivo específico.
Seguiram-se, pela ordem, as idades Antiga, Media, Moderna e Contemporânea, as sociedades requerendo bem mais do que pedras e metais para sua organização, sobrevivência e crescimento. Neste contexto, as pedras e os metais não mais ocuparam o centro da complexa organização da vida das comunidades, mas seus usos se disseminaram, e quem não dominasse as técnicas da metalurgia (sempre avançando) tornava-se presa fácil dos povos mais desenvolvidos nestas tecnologias.
Nas novas Eras seguintes pode-se dizer que os pontos cruciais para sobrevivência foram, cada vez mais, o Conhecimento, a Tecnologia e a Capacidade de Gestão, Organização e Militar possibilitando desenvolver cidades, indústrias e agricultura em maior escala para alimentar a população crescente, bem como sistemas complexos de defesa e de ataque (conquistar novas terras, por exemplo).
Assim, a complexidade dos atendimentos às sempre crescentes demandas dos povos passou a requerer bem mais do que ferramentas, artefatos e armas, de pedras ou de metais, embora todos eles tenham se incorporado aos usos rotineiros em todos os momentos da História Universal.
Fixando no mantra infeliz, a classificação histórica fez desaparecer a Idade da Pedra, mas não cogitou da diminuição do uso das pedras nem da sua importância econômica, industrial e social. Assim como também a Idade do Bronze e depois a idade do Ferro acabaram, não por falta destes elementos ou de seus componentes cobre e estanho ou ferro, mas porque a organização da vida humana se tornava progressivamente mais complexa e novos elementos passavam a caracterizá-la. Também, jamais deixaram de ser utilizados.
Embora óbvios, são listados a seguir alguns usos das pedras para que não restem dúvidas sobre a importância delas em todos os tempos e, muito mais ainda, na Idade Contemporânea:
- Fazem parte intrínseca da história da humanidade o vidro e a cerâmica e, mais recentemente, a filha nobre desta última, a porcelana;
- Desde os antigos impérios, nas esculturas, na decoração e nos pisos, as pedras ganharam valor extraordinário, nos mosaicos, revestimentos etc. em Mármores, Granitos, Ardósia, São Tomé, Arenito, Pedra Portuguesa, e tantas outras mundo afora. Ou seja, rochas com valor comercial e industrial magnífico, presentes na vida de toda a humanidade. E que se tornam cada vez mais valorizadas pelo esgotamento, no caso de algumas delas, de jazidas milenarmente exploradas;
- Para construções em todas as Eras, os blocos de pedra foram utilizados intensamente, brindando a Idade Contemporânea com imponentes muralhas, pontes, castelos, templos, aquedutos, calçamentos de ruas e calçadas, tudo preservado como joias de todos os tempos;
- O uso das pedras se intensificou na idade Contemporânea nas construções, na forma de brita para compor o maior percentual do concreto das edificações, pontes e barragens e para leito das estradas pavimentadas com asfaltos, ou como parcela de maior volume do concreto armado de rodovias, e para uso direto em passeios e calçamento de ruas. Na proteção de praias, na construção de barragens e de quebra-mares as pedras em bruto têm uso insubstituível. Ou seja, no presente para se morar e se deslocar e mesmo para se viver, todos dependem das pedras;
- Desconhecido dos humanos da Pré-História surgiu o uso como adereço pessoal e para pequenos objetos de decoração, movimentando o equivalente a muitos bilhões de dólares anualmente na economia mundial, desde o fim da Idade da Pedra! Ah, as pedras preciosas – Ágata, Ametista, Diamante, Esmeralda, Jade, Opala, Rubi e Safira, Topázio, Turmalina, e dezenas de outras cobiçadas pedras! Fazem a riqueza de alguns países (e a escravidão de outros) e servem para demonstrar o alto padrão de vida de uns ou se prestam ao embelezamento de centenas de milhões de seres e ambientes;
- Mesmo para ataque, as pedras continuaram a ser utilizadas por séculos em lançamentos contra inimigos. Ainda hoje uma pedrada é arma fatal e estilingues pequenos ou gigantes fazem estragos consideráveis, embora não mais tão decisivos em batalhas;
- Como ferramentas e utensílios, nas brocas de diamante para furar poços e ferramentas de corte de vidros, utensílios para cozinha, pedras para afiar facas, quartzo para usos especiais etc.;
Assim, curiosamente, pelo fato de a população mundial ter crescido vertiginosamente em relação à Pré-História, o uso das pedras se multiplicou, continuando como se nada tivesse mudado. E, industrialmente e na economia, como visto, elas jamais perderam sua importância, tendo uso sempre crescente na sociedade moderna;
Demonstrado, assim, que as pedras não deixaram de ser utilizadas, nem mesmo perderam a essencialidade para a sociedade em todos os tempos, perde sustentação a pretendida lógica do mantra falacioso já citado.
Não fosse a má intencionalidade, o mantra poderia ser, então:
Na Pré-História as pedras, in natura ou transformadas em metais, foram essenciais para a sobrevivência humana e dos agrupamentos iniciais da vida na Terra. Em sequência, nos vários períodos em que se divide a História da Humanidade, continuaram sendo intensamente utilizadas, mas sem o caráter de únicos elementos a garantir o desenvolvimento das sociedades. Assim como as pedras, o petróleo e o gás, depois de um século ocupando lugar de destaque como matéria prima, continuarão sendo utilizados ao longo pelo menos desta primeira centúria do terceiro milênio, dividindo com outros elementos a responsabilidade de atender, tanto a escalada da demanda de energia, como garantir a oferta de centenas de substâncias e compostos para as indústrias químicas e petroquímicas, E, também, para usos específicos no caso de asfaltos, siderurgia etc. todos eles essenciais para suprir as necessidades mundiais e apoiar o progresso da humanidade.
Sim, descrito desta maneira, através de uma redação mais rebuscada, pois que complexa é a realidade, o suficiente para não ser referida por meio de motes simples com jeitão de brincadeira.
Uma nova divisão didática da História, ou apenas uma interessante analogia?
Curiosamente, a era das Pedras e do Petróleo em termos de uso, são únicas, pois o petróleo nada mais é do que um integrante da estrutura rochosa existente nas profundezas da Terra. Não existem mares de petróleo, mas sim formações rochosas impregnadas com óleo nos seus poros. Complexas tecnologias possibilitaram que lá se chegasse e conectassem as rochas à superfície da terra ou do mar. Por conta da elevada temperatura reinante, então o óleo flui pelos poros da rocha que o contem e escoa pelos tubos de produção, graças à pressão do gás também ali existente ou às injeções de vapor ou gás nos reservatórios em produção.
Um “óleo de pedra” eis como os antigos sabiamente nomeavam aquele líquido muito útil e viscoso que encontravam em exsudações naturais (em latim Petroleum, de petrus – pedra e oleum – óleo). Era importante, mas não essencial. Somente depois de milhares de anos de usos primários [2] desde as mais antigas civilizações, o homem desenvolveu e foi aperfeiçoando tecnologias para ir mais fundo e artificialmente retirá-lo das pedras no interior do Planeta. Sua existência farta e comercial direcionou todo o progresso da civilização desde então. Levando em conta tantas guerras travadas pela sua posse, e a dependência mundial desta forma de energia (há quase cento e cinquenta anos) fica-se tentado a nomear este último período pelo menos como uma nova versão da “Idade da Pedra”, pois Era do Petróleo já muito se fala.
Próximo texto
No próximo texto será estudada a trajetória do petróleo e do gás nas próximas décadas, procurando demonstrar que as reservas brasileiras encontrarão mercado garantido no período projetado e previsto de sua exploração. Vejam a seguir uma amostra da grandeza do problema de substituição dos combustíveis fósseis a ser explorada no próximo capítulo desta série.
A tabela abaixo indica a participação de cada elemento na matriz energética mundial em 2018, mostrando a dimensão do problema somente para substituir os usos atuais da energia fóssil (dominante com 85% da oferta de energia). E dá a magnitude do esforço para ampliar a oferta de alternativas para suprir o crescimento das necessidades mundiais de energia até 2050, que deverá ser 50% maior[3].
Mundo – 2018
BP Statistical Review of World Energy 2019 |
Petróleo | Gás | Carvão | Outras | TOTAL |
Tonelada de óleo equivalente*. | 4.700 | 3.300 | 3.800 | 2.100 | 13.900 |
Percentual da demanda total | 33,8% | 23,8% | 27,3% | 15,1% | 100,0% |
Gasto de petróleo por ano em bilhões de barris | 32, 2 | – | – | – | – |
Em dois a quatro anos o mundo consome um total de petróleo igual às reservas estimadas do pré-sal brasileiro. As reservas globais de petróleo e de gás já delimitadas seriam suficientes para 50 anos de consumo nas taxas atuais, se nada mais fosse descoberto.* Todas demandas são transformadas em toneladas de petróleo para facilitar a comparação entre fontes de energia. |
E continuamos cumprindo um destino marcado desde 1500 de exportador colonial e, depois, compulsivo de pedras e, agora, do Óleo da Pedra das tão esperadas jazidas petrolíferas nacionais.
Notas
- Todos os países grandes exportadores, exceto Rússia e EUA, foram duramente explorados pelo capital estrangeiro até que tomassem de volta as concessões que fizeram para as grandes multinacionais do ramo (nacionalizações da década de 70 do século passado). A indústria do óleo e do gás é extremamente complexa e as leis que regem tais negócios são também complicadas, além do que estabelecido o primado estrangeiro elas acabam sendo refeitas por pressões para atender aos objetivos de lucros das concessionárias e, paulatinamente, a nação perde o controle da situação. No Brasil, a escalada da entrega do óleo e gás ao capital estrangeiro já contou e conta com leis facilitadoras da ação das multinacionais. Localmente, pode-se verificar facilmente em todos os negócios das grandes multinacionais que suas cadeias de interesses são relacionadas, naturalmente, aos seus propósitos globais, incluindo remessa de lucros, tecnologia própria, desinteresse pela indústria nacional de suporte e intensiva de tecnologias. ↑
- Foi utilizado na pavimentação, para vedar reservatórios, acender fogueiras, embalsamar corpos, impermeabilizar construções, construir embarcações, lubrificar, iluminar, produzir remédios e na guerra em lançamentos incendiários, entre outros. ↑
- https://www.eia.gov/outlooks/ieo/pdf/ieo2019.pdf ↑