File:Sertão Central - Pirangi - Ibaretama-CE 08.jpg - Wikimedia CommonsFoto: Clicerioneto, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons

Autor: Manfredo Rosa

UMA INCRIVEL HISTÓRIA DE UM SERTÃO PLURAL

Abundante, derramando impetuoso e rico caudal de conhecimento, a composição alcança diversificado interesse. Certamente. O autor apresenta a obra em três partes: A Terra, o Homem, a Luta.

A Terra, primeira parte

Geólogos, ambientalistas, naturalistas, e amantes da natureza encontrarão mesa farta na mais variegada sorte de cuidadosas descrições. Apoiado no sólido conhecimento de engenharia militar, testado na prática das obras e, ainda, suportado por diversificada formação de Ciências Físicas e Matemática, na abrangência de estudos de Geologia, Botânica e Etnologia, o autor combina, com maestria, rigor técnico e poesia. Uma cornucópia mais que generosa de informações sobre a região, dedicada à apresentação e análise das características:

Geológicas e do relevo

  • “Uma fantasia para cartógrafos”, “a infinita tristura das colinas desnudas, ermas, sem árvores. Um rio sem águas, tornejando-se feito uma estrada poenta e longa… as serras igualmente desertas, rebatidas, nitidamente, na imprimadura do horizonte claro, feito o quadro desmedido daquele cenário estranho”;

Do solo e do clima, em maravilhosa exposição

  • “À luz crua dos dias sertanejos aqueles cerros aspérrimos rebrilham estonteadoramente… ofuscantes, num irradiar ardentíssimo”, “os dias claríssimos e cálidos descia, deslumbrante e implacável, dos céus sem nuvens, sem transições apreciáveis, sem auroras e sem crepúsculos, irrompendo de chofre nas manhãs doiradas, apagando-se repentinamente na noite, requeimando a terra”;

Do deserto e da seca descortinando

  • “Cenários em que ressalta predominante, o aspecto atormentado das paisagens”, o nordeste persistindo “intenso, rolante, pelas chapadas, zunindo em prolongações uivada na galhada estrepitante das caatingas e o sol alastra reverberando no firmamento claro, os incêndios inextinguíveis da canícula”, “… atravessando um esboço de deserto, onde agoniza uma flora de gravetos – arbustos nos esgalhos revoltos retratam contorções de espasmos, cardos agarrados a pedras…”;

Do calor intenso, mas também das tempestades, em visão espantosa, contrastando com a bonança que lhe segue

  • … “a passarada irrequieta descanta pelas frondes gotejantes”,

Da botânica

  • “e o dia, incomparável no fulgor, fulmina a natureza silenciosa, em cujo seio se abate, imóvel, na quietude de um longo espasmo, a galhada sem folhas da flora sucumbida.”, ou, referindo-se aos cabeças-de-frade, que “aparecem de modo inexplicável, sobre a pedra nua, dando a imagem singular de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali”, ou ainda, “uma vegetação agonizante e raquítica, esgalhada num baralhamento de ramos retorcidos – reptantes pelo chão, contorcendo-se nos ares num bracejar de torturas” – impossível descrição mais poeticamente perfeita.) Percorre também, é claro,

Da hidrografia,

  • com foco no Vaza-Barris, “o rio sem nascentes”, em detalhado registro, muito especialmente alteado na pujança da escrita, na valorização das nuances. Tudo, enfim, ombreando com Guimarães Rosa ou Graciliano Ramos (Aliás, talvez ao contrário, estes comparados aquele).Em outros trechos, discorrendo sobre todas aquelas agruras da luta do homem contra um ambiente tão hostil o autor ressalta que “o martírio do homem, ali, é o reflexo de tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da vida. Nasce o martírio secular da Terra.”

“O Homem”, segunda parte

Constitui-se em leitura mais que mandatória do cientista social, no interesse sobre a etnografia de recanto específico de toda uma imensa região, em torno do grande “e vivo infletir” do Rio São Francisco, no norte-nordeste da Bahia. Compreende um pormenorizado retrato do caráter do sertanejo, percorrendo sua gênese (caldeamento “da índole aventureira do colono com a impulsividade do indígena”), alinhando o atavismo, esse “estranho aferro às tradições mais remotas”, o ascetismo e o “seu sentimento religioso levado até ao fanatismo”, alcançado pelas nossas heranças ibéricas de tal sorte que vão “errantes pelas faldas das serras, devotados ao martírio, arrebatando na mesma idealização, na mesma insânia, no mesmo sonho doentio, as multidões crendeiras”. Além do conhecido aforismo, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, outras percepções completam a descrição da índole, tais como “adaptado a uma natureza carinhosa que o encanta”, “fez-se homem, quase sem ter sido criança”, “é um condenado à vida”, talhado pela natureza, tal como ela “bárbaro, impetuoso, abrupto”, sendo que “o círculo estreito da atividade remorou-lhe o aperfeiçoamento psíquico”. Contudo, se a estação lhe é propícia “refina a ociosidade nos braços da preguiça benfazeja”. Inclui, é claro, o misticismo ibérico, messiânico, “arrebatado na mesma idealização, na mesma insânia, no mesmo sonho doentio”, traço cultural de presença central nos capítulos da guerra que travaria. É deslumbrante a página que desenha um episódio de estouro de boiada. Complementarmente destaca a “separação por três séculos” existente entre o habitante do litoral e as populações daquele agreste, os dois Brasis. Então resulta daí, inevitável, a chamada da luta pela secessão. Importa observar que Antônio Conselheiro comparece esparsamente em apenas uma dúzia de páginas específicas e algumas outras poucas citações. Durante a luta ele quase não se apresenta, recolhido em suas divagações voltadas para uma transcendência paranóica. Reduz-se portanto a figurante, coerente com toda a narrativa, onde a presença do indivíduo não se faz importante. Ele teria sido apenas uma convocação, sucinta e adequadamente descrita no trecho intitulado “Como se faz um monstro”.

“A Luta”, terceira parte

Um aporte imperioso do historiador. Vazado em linguagem pujante, ecoando toda a grandeza e a bravura, do lugar e da gente que o habitava, o marcante livro nos coloca dentro da realidade social da época daquele canto escondido do Brasil, enquadrando em vivas cores um importante episódio da nossa história. Ocupa cerca de dois terços do trabalho, onde Euclides exibe impressionante destreza na riqueza de detalhes, resultado da condição de testemunha ocular do episódio sob apurado tino e competência jornalística, a par de seriedade de propósitos, do rigor nas assertivas. Ali estão as batalhas, com suas táticas e também as falhas, o balanço das forças, a fome, a peste, a miséria, a violência e a insanidade. Traços da nossa cultura estão expostos, ou claramente ou velados nas entrelinhas. Ao sociólogo não compete estabelecer juízo de valor, mas o cidadão comum, munido da percepção de obrigações naturais, certamente experimentará indignação. A igreja, na praça, cumpre papel importante na cruenta refrega. Foi “construída informe e brutal, feito testada de um hipogeu desenterrado, como se tentasse objetivar, a pedra e cal, a própria desordem do espírito delirante” (do Conselheiro). Caberia a ela “a forma dúbia de santuário e de antro, de fortaleza e de templo, irmanando no mesmo âmbito, onde ressoariam as ladainhas e as balas, a suprema piedade e os supremos rancores”. Alguma perplexidade nos assalta ao tomar conhecimento da sequência de erros e desvios táticos das forças expedicionárias. “A luta, que só pedia um chefe esforçado e meia dúzia de sargentos atrevidos e espertos, ia iniciar-se enleada em complexa rede hierárquica.” (Contudo, nas contas sobre a formação da última expedição, a maior de todas entre as seis investidas, os oficiais somavam 10% do total, mas também, na lúgubre estatística dos mortos, eles representaram 10,5%). Nos últimos três dias da luta, entre muitas é descrita uma cena pungente das crianças recolhidas na rendição, após pelo menos três meses de penúria, “pequenos, tolhiços, num definhamento absoluto, não andavam mais; tinham voltado a engatinhar.” Aquilo não era mais uma campanha, “era uma charqueada”, “titãs contra moribundos”, para os sertanejos “o combate fez-se-lhes, então, um divertimento lúgubre, uma atenuante a maiores misérias”, comovendo os próprios adversários. Cumpriu-se mais um entre tantos holocaustos perpetrados aqui no nosso Pindorama. Com a diferença que Canudos não se rendeu. “Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo”, a imolação no altar. No último episódio lá estavam “quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.”

Análise Geral

Aos amantes da literatura em especial abre-se um imenso e maravilhoso triplo arco íris, de retórica, de figuras de linguagem e erudição. Reforça as imagens com bem dosada combinação de competência técnica e neologismos de sua própria lavra. O autor desenvolveu temática de tal forma brilhante que seria duplicada posteriormente na produção literária nacional no correr do século XX e, também ressoando caminhos e possibilidades para o cinema. O crítico literário Alfredo Bosi afirma que há paixão nas palavras de Euclides, o que possibilitou uma representação literária de concretíssimos relevos nas mais áridas descrições da sua engenharia social. Para Dal Bo, a obra inaugura o Pré-Modernismo brasileiro, ultrapassando “os limites da arte literária”.

Observação oportuna. Em alguns pontos, “Os Sertões” deve ser lido com devido encaminhamento quanto à localização no tempo da feitura. Uma ressalva cabível relativa às crenças da época no tocante a raça, enviesadas pela prevalência de pensamento filosófico específico, do positivista “determinismo social”, na passagem para o século XX, atualmente já não mais aceitas. Mas, por outro lado, Euclides parece perceber problemas e toma o cuidado de adjetivar essas considerações como sendo “irritantes”, e, ainda, também sugerindo, em seguida que a postura do sertanejo contraria aquelas mesmas “regras” então vigentes.

Considere-se, também que, o fatiamento da obra em três nacos, A Terra, O homem e A Luta, certamente deve ter sido apenas uma tentativa do autor, nada bem sucedida, de organização didática. Tudo está entrelaçado, dificilmente se consegue distinguir uma das demais.

Complementarmente, encontram-se na brilhante obra as pegadas que nos trouxeram até os dias de hoje. As condições atuais de existência, nossos traços culturais mais arraigados estão lá naquelas páginas. Por outro lado, talvez se encontre dificuldade em explicar o porquê da perda de quase trinta mil almas. A negociação, o acordo teriam sido impossíveis? O autor não se detém objetivamente nesta questão. As consideraçõesa tangenciam, apresentam-se reticentes, sem conclusão efetiva.

Ainda, lendo toda essa narrativa, é inevitável avaliar se e o quanto avançamos relativo à melhoria das condições de vida do brasileiro. Canudos hoje (na sua terceira versão) é uma cidade planejada, (já que foi reassentada para dar lugar ao açude de Cocorobó) e conta até com aeroporto. A jusante se observa uma larga várzea, se estendendo por cerca de 30 km de extensão, verde plantada, vicejante. E não longe dali está a grande Represa de Sobradinho. Assim, de fato, o sertão virou mar para aqueles lados, da mesma maneira como em outros lugares Nordeste afora, com a construção de centenas de reservatórios para armazenamento de água e transposição de rios. Sendo assim, talvez a distância anteriormente citada, de três séculos (entre o litoral e o sertão), tenha diminuído, mas pelo menos não se alteraram: a seca, o sol e o chão duro, inclementes, continuam por lá. Para Euclides da Cunha, não importa tanto “atenuar a última das consequências da seca – a sede. O que há a combater e a debelar nos sertões do norte é o deserto”. O livro “Torto Arado”, de Itamar Vieira Jr, outro trabalho premiado, escrito 116 anos depois e discorrendo sobre a Chapada Diamantina, nos fala sobre práticas escravocratas e outros tipos de opressão no campo, a violência contra as mulheres e outras misérias. Mas isto é assunto para outra hora.

Sobre “Os Sertões”, enfim, não se pode deixar por menos. A exuberância ali contida representa leitura obrigatória de todos os brasileiros. Um colosso. Da descrição do espaço até ao testemunho do desventurado incidente, de maneira tão rica, a não mais poder, o autor compõe afinal uma santa trindade, sob todas as visadas que se possa imbicar. Não é a saga de uma gente só, mas, antes, de três fortes etnias amalgamadas. Não é a história confinada a um século de fugaz ascensão de uma dominação, mas a peleja de três centúrias na busca de espaço próprio. Não é principalmente o enfrentamento do tilintar de espadas, mas alargado ao infinito no trítico envolvimento, da Terra, do Homem e da Luta.

Posted by Brasil 2049

One Comment

  1. Leonardo Peixoto Pacheco de Medeiros 16 de abril de 2021 at 16:11

    M. Rosa, é isso aí. Estou lendo, não tenho esse vigor crítico que você apresenta mas é o que estou percebendo e sentindo. Minha próxima investida será “A Pedra do Reino”.

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