Diagrama

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa
Hoje, final da Jornada pela Trilha. Muitos achados a sugerir o progresso da região. E o Sol?
Tanto nos acompanhou que mais parece um saboroso queijo

Capítulo XI – “A expectativa de quem espera”

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Inseto com asas em fundo branco

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A teoria e a prática: uma cutucando a outra.

Cumprido todo esse esforço de viagens, visitas e entrevistas, pelo menos três ganhos foram auferidos: um furo a menos no cinto, cessão de espaço ocupado pela minha ignorância, e maior aproximação, do queijo, do turismo e da vida nas cidades. Um tanto desalentado, sinto que várias coisas ficaram para trás — podia ter empreendido mais estudos. Seria este o destino fatal de todo trabalho?

Identifiquei proposituras de sociólogos modernos, captando alguma “visão coerente e estável” das pessoas. Eventualmente o pesquisador pode tender a olhar mais o “eu” individualmente, e menos os papéis desempenhados pelos indivíduos na sociedade. Uma perda, pois somente das interações entre os membros do grupo se consegue extrair a principal matéria-prima para os estudos sociológicos. Ou, quem sabe, os atores, na carência de prática, não souberam romper a distância entre o self e a sua posição como agente, dificuldade, talvez, aumentada pelas rápidas mudanças desfilando em torno de si. A célere mutação dos valores, sem tempo para “digerir”, dificulta a percepção completa, a tempo, sobre os significados. Paradoxalmente, a decomposição da cultura para Touraine, a sexualidade explícita para Jameson etc. nada mais surpreende tanto. Nenhum fato social, por mais estapafúrdio, atiça a indignação. Os desmandos de todos os tipos já são considerados normais, banalizados, tornaram-se o ar a respirar. É a “esquizofrenia” denunciada por vários autores, esta vivida por nós, consumidores contumazes, “levados correnteza abaixo por um caudaloso rio de símbolos”, aponta Leff.

A esse respeito, Jameson também notou que não estamos conseguindo “organizar passado e futuro em uma experiência coerente e, portanto, seria difícil esperar que conseguíssemos algo além de colecionar fragmentos e praticar fortuitamente o heterogêneo, o aleatório”.

Talvez por todas essas razões, não tenha sido alcançada a compreensão do “repertório sociológico” na profundidade desejada. Possivelmente, somente elaborei esboços dos “esquemas recorrentes e onipresentes de ideias, de crenças e de comportamentos” citados por Lloyd. Felizmente os espaços continuam abertos para novas pesquisas e análises. As muitas incógnitas permanecem à disposição de interpretações e avaliações.

E valida-se o alerta apresentado no início do livro sobre as ciências sociais. Elas não oferecem solução de problemas. A sociologia em particular exibe algum treino na interpretação da vida, mas não consegue arrematar propostas, muito menos aquelas envolvendo transformação.

Sendo assim, talvez mais na condição de filho da terra, apresento a seguir considerações, quem sabe de proveito nos projetos em favor do desenvolvimento social local. Vamos lá.

Campo verde com árvores ao fundo

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…. na folha do ipê-verde, no ventre da ariranha,
na bruma que se eleva do rio…

A participação.

Figura entre as “nossas mais belas utopias”, citadas por Pedro Demo. Ela é referida aqui como presença efetiva do cidadão nos destinos da sua cidade. Traduz-se em autogestão, desenvolvimento e qualidade de vida. É a participação “ampla, geral e irrestrita”, de todos os segmentos da sociedade, no vigor da democracia, básica, principalmente enquanto “forma alternativa de poder”. Somente através dela é possível montar, legitimamente, perspectivas correspondentes aos reais interesses da população, num processo permanente, 24 horas de cada dia, encadeados, sem falha, na conquista de si mesma e de um fim que não tem fim. Estrategicamente, pressupõe a preocupação em identificar o que deve ser feito para virar do avesso a realidade apresentada como dada, impingida, como se não pudesse ser transformada. Principalmente no Brasil, há décadas e décadas de pernas para o ar, em cambalhotas, significa voltar a colocar os pés no seu chão. Por essa razão, durante todas as etapas de desenvolvimento de qualquer projeto de interesse social deve prevalecer um princípio básico: a única atuação válida de cima para baixo é a de fomentar a atuação de baixo para cima. Curto e grosso: a “administração pública é coisa muito séria para ficar na mão do governo”. O controle social está previsto na nossa Carta Magna, delineando a participação popular na gestão, em caráter democrático e descentralizado. Se as iniciativas não forem conduzidas através dela, da vontade da base, o recurso segue em direção bem diferente. Abandonado à sua “natureza”, o dinheiro escorre rumo aos bolsos dos ricos.

Esta máxima da vigência da participação dos indivíduos como atores de seu futuro serve para todos os estratos de poder existentes em qualquer sistema que se isole em nossa sociedade, grassada por tão vergonhosa desigualdade social. Em uma unidade federativa, por exemplo, a única atuação válida do Governador é abandonar o gabinete e sair a campo, fomentando a atuação de baixo para cima. Em uma cidade, o Prefeito estará muito bem se conseguir disseminar por todo o seu secretariado essa vontade de ver o povo à frente de todos os negócios públicos municipais. E assim por diante — uma epidemia geral, mas benfazeja.

Tomando duas cidades, se uma conta com da presença, o apoio e o esforço de seus cidadãos (participando das discussões, entregues às ações de seu interesse e cobrando resultados junto aos seus representantes, pela manhã, à tarde e à noite, sem cessar) e a outra se prende às benesses do poder (esperando, enquanto este se lambuza nas mesuras palacianas, infla-se de vaidade da bajulação sem fim e se corrompe na locupletação sem limites, indiferente às necessidades do povo), então, decorrido um tempo, a primeira, progressista, democrática, terá se distanciado tanto que dificilmente será alcançada por aquela, arcaica, aprisionada, submetida à ditadura de qualquer tipo, “coroada ou popular, civil ou militar”, autorizada ou não pelo voto.

Essa presença, efetiva e indispensável, dos indivíduos nos processos de interesse deve se dar pelos vários caminhos possíveis de atuação inclusive aqueles além da área econômica. É bom olhar assim, pelo menos para efeito de desdobramentos e apuro da criatividade. “O espaço social é composto por uma pluralidade de campos autônomos”. Muito embora eles possam estar vinculados às estruturas, muitos podem não envolver obrigatoriamente interesses financeiros, abrindo, assim, outros horizontes de atuação. Nessa ótica cai muito bem a expressão “capital social”, tão utilizada hoje em dia. Ela se refere a competências diversas a serem potencializadas em proveito do grupo, sem significar, necessariamente, relação próxima com poderes econômicos. Pelo menos, em princípio.

Resulta daí uma outra seara, esta então bem mais presente. Nela o cidadão toma para si a incumbência de fazer alguma coisa pela sua terra. Por vontade própria, anonimamente, no impulso que anima as mentes arejadas, desprendidas.

Um conterrâneo era apaixonado por xadrez. Por iniciativa própria, sem esperar, arregaçou as mangas, conseguiu espaço, adquiriu as mesas, cadeiras e tabuleiros, e começou a ensinar o inteligente e curioso esporte a alunos da rede municipal de ensino. Hoje a cidade abocanha expressiva parte dos troféus dos torneios regionais e estaduais. Cada um daqueles meninos e meninas, motivado pelas intrincadas estratégias, se aprumou em diferente disposição para os estudos, aspirou novo alento para a convivência, festejou outras percepções para a vida. Cada peão movimentado sobre o tabuleiro ajudou a construir trincheira contra as ardilosas investidas deletérias da vida moderna.

Uma senhora estuda francês faz tempo. Recentemente, movida apenas pelo seu permanente e inalienável espírito humanitário, inquieta na sua preocupação com os menos favorecidos, instada na sua invejável disposição para tomar iniciativas e tocar avante projetos quando o objetivo envolve possíveis ganhos para crianças e adolescentes de comunidades de risco, pois bem, essa alma gentil e benfazeja um belo dia arranjou uma sala na empresa onde se sacrifica diariamente e no breve período da hora do almoço começou a passar o “je suis, tu es, il est” para moços e moças da população do entorno da usina. Mas … francês? — perguntavam. É o que eu sei… respondia. Estas aulas podem não ter sido a única razão dos bons resultados auferidos, o fato é que vários daqueles meninos depois cursaram faculdade. Um deles levou bem mais avante o gosto e chegou a trabalhar como intérprete. Duas alunas embarcaram para a França e para o Canadá, conseguiram bolsas para aprimoramento de curso superior. Onde estariam hoje sem essas aulas?

São apenas dois cases. Já narrei em capítulos anteriores mais exemplares presenças da mais legítima cidadania. E milhares outros existem Brasil afora. São exemplos de como decidir, arregaçar as mangas e começar hoje mesmo. Seria então muito bom se tudo virasse um “bolo” só. Limpando seu passeio e sua rua, participando de mutirões de construção, prestando serviços profissionais de sua competência aos conterrâneos, em especial aos mais necessitados, repassando seu conhecimento, participando das reuniões da Câmara Municipal, analisando as contas públicas etc. Desta maneira, se 30% da população adulta de uma cidade pudessem doar quatro horas semanais dedicadas a projetos desse tipo, definidos, assim, é como se ela contasse com cerca de 3% de seus filhos entregando esforço extra na sua construção, sem despender um centavo do erário público. É um poder que se instaura, uma força hercúlea. Por essa via, um município, digamos, de 20 mil habitantes, arregimentaria 600 pessoas para trabalhar para ele, sem necessidade de recorrer aos cofres, habitualmente de possibilidades limitadas. Uma cidade assim alcançaria esfera invejável de qualidade de vida. Focando a educação e a saúde, o IDH-M daria um salto formidável!

Em “São João da Serra Negra: sua história e sua gente”, Geralda Pereira da Silva nos apresenta um personagem incrível, um exemplo ímpar de cidadão, como deve ser, pensando em seus semelhantes, na vida em comunidade, sem exigir nada em troca. Aristófanes da Silveira esbanjou boa vontade e coerência. O “Seu” Tufim, assim chamado, engenheiro prático, por vontade e conta próprias, projetou e construiu: uma ponte sobre o Rio Espírito Santo, um gerador de energia canibalizando peças usadas de veículos, um campo de aviação e uma pinguela pênsil — sim, senhor! — e de boa extensão. Cada feito seu sorve o hálito da poesia, não na frieza da métrica, mas no fôlego do espírito. Um belo dia, olhando a vila crescendo assim, meio desordenadamente, foi até à sede, Patrocínio, levar sua preocupação. O prefeito se sensibilizou e prometeu enviar um agrimensor para estudar o assunto. Dias depois, quando o técnico “lá chegou com o milho”, o Tufim “estava com o fubá pronto”. Em desenho sobre cartolina, apresentou ao emissário uma planta, com as ruas, a praça e tudo mais. A aprovação foi imediata e, ato contínuo, puseram mãos à obra, desapropriando e marcando os logradouros em traçado ordenado, seguido até hoje. O homem pensava e fazia. “Craneava” soluções e as executava. Minha admiração e minha homenagem.

Campo com montanhas ao fundo

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“… de uma landa infinita, de um povo fecundo…”

Melhor ainda para o lugar se tais atitudes favoráveis transitam mão dupla, a saber, com resposta adequada dos poderes instituídos, transparência das ações, honra ao mérito consignada pela própria sociedade, em insuspeita meritocracia, sem os vieses das estruturas de poder.

A população dos estratos de menor poder aquisitivo enfrentam limitações para participar. Tino e competência não lhe faltam, mas a labuta de sol a sol, a distância e as dificuldades materiais que se antolham cerceiam os graus de liberdade, minguam o raio de ação. Nesses casos, são válidos os incentivos seletivos, tais como almoços no bairro, prefeitura ambulante, exibição local de filmes, palestras, cursos, fornecimento de condução e lanche etc. Todos devem emitir a sua opinião. E só há um meio de conseguir tudo isto: fazendo.

O cooperativismo.

As cooperativas traduzem outra aplicação prática da participação. As iniciativas já existentes em diversas cidades resultam da mobilização em torno da união de esforços para conseguir reduzir custos, aumentar a capacidade de barganha, diminuir a intermediação, melhorar o apoio técnico e mais tantas vantagens. Aula inaugural do curso de economia. Um seu parente próximo, o mutirão, é igualmente benfazejo. O cooperativismo é o locus privilegiado da objetivação das pessoas. Deixam de ser indivíduos, subjetivos, para, em associação de esforços, comporem o coletivo, objetivo, fazendo emergir soluções para os interesses comuns. As economias saudáveis foram construídas assim, na participação incansável, dia após dia, lá no chão, na base da reprodução material da vida. Enquanto faz o queijo, a artesã e o artesão, precisam compor a sua família, estudar, exercitar a mente, tornar-se menos escravo da sua propriedade e do seu trabalho, desenvolver política, atuar nos sindicatos, nas cooperativas, toda hora, sem nunca ser, obrigatória e completamente, trabalhadora(or), mãe-pai e política(o). E mais: bem recomenda Pedro Demo, tanto melhor serviço prestarão as associações se elas não se limitarem à função de abrigo onde, de pires na mão, os cooperados se dirigem para buscar benefício pessoal. Ao contrário, são espaços onde se cultiva o confronto de todos os dias, de olho fixo, tanto nos objetivos traçados, quanto nas forças que usurpam a vida comum. [1]

Funtowicz e De Marchi falam de conhecimento público naquele que emana da comunidade e persegue o bem comum. Renunciar a esta prerrogativa, desvestir deste direito é entregar a interesses alienígenas a propriedade do conhecimento local, é delegar para estranhos a tomada de decisões sobre questões internas, é renunciar à condução do carro socioeconômico rumo ao próprio futuro.

O cooperativismo pode e deve ser ampliado de forma a abranger os vários municípios interessados. Consórcios formais têm sido formados para buscar maiores ganhos eivados na força da união. Avançando mais, vem a criação de zona geo econômica específica para o queijo, no exemplo do esforço conjunto ES, MG e Centro Oeste para criação de eixo de desenvolvimento da região.

As abrangências, de presença geral.

Cultura de Projeto. Este conceito está intimamente conectado às indicações acima, ou mesmo funcionando como um cobertor sobre elas. Todos os esforços devem ensinar, reciclar e aprimorar localmente o trato com as ações organizadas, sistematizadas, apresentando rumos, prazos e formas de verificar se foram obtidos os proveitos previstos. E, bem se vê, deve estar inarredavelmente ligado ao melhor significado do vocábulo, poiesis, de algo lançado rumo a um futuro desejado, construindo o mundo segundo aspirações próprias, internas, legítimas, de dar sentido à participação, de perceber de vista limpa que “não há destino sem projeto”, ensina-nos Argan, e vice-versa. Assim, todo projeto concebido e levado ao fim sob essas premissas, ele se torna histórico, ou seja, marcou sua presença. Será rememorado para sempre, festejado, por ter renovado as pessoas, para as pessoas, conseguido proporcionar um olhar para além da construção do mundo, ter “representado alguma ruptura com o presente e uma esperança para o futuro”, bem assim lucubrou Gondotti.

Operacionalmente, os projetos devem incluir a discussão científica e o consenso democrático sobre complexidade ambiental e sustentabilidade. Seus passos devem se lastrear em pormenorizada análise sobre aspectos institucionais, tecnológicos e expressivos. É a sociedade organizada tocando a discussão sobre as estruturas vigentes, sua utilidade, modificando relações básicas dos organismos sociais, reinventando-se socialmente. É o aprimoramento da presença dos indivíduos, dispensando consultas aos oráculos, tudo acontecendo em praça pública, sob a luz do dia, dispensando heróis e mitos.

Leitura. É pedra angular. Ela ajuda a integrar teoria e prática. A teoria deixa de ser ocupação específica de filósofo, ou de gente desocupada, coisa que não leva a nada. E a prática deixa a sua mesmice, a sua limitação. Elas passam a ser vistas tal como os dois polos de um mesmo imã, núcleo. Inseparáveis. A existência é de ambos, ou seja, se um desaparece, o outro também se extingue. Não é possível gerar um deles, sem, ao mesmo tempo, parir o oposto. Atar-se exclusivamente à prática é torna-se obsoleto. Dedicar-se somente à teoria é reduzir-se ao diletantismo. Felizmente, muito raramente isto acontece. Luciano, distinguido artesão do queijo em Medeiros, notou que as janelas metálicas de sua queijeira estavam se oxidando sob a ação dos vapores salitrados emanados da cura. “Bolou” a alternativa do uso da madeira e, junto aos órgãos, propôs a alteração das especificações. Montou teoria. Tem lá com ele livros —sabe que precisa ler para se atualizar e, eventualmente, “maquinar” e aproveitar ideias. Isso é prática.

Vivência e proteção da história local. Todas as ações devem se revestir desse princípio, da defesa da memória, tornar uma mania, no bom sentido, mantendo preocupação permanente com seu passado, de forma a garantir a sua efetiva presença e manifestação em todas as interações sociais. Por exemplo, montagem e enriquecimento de museus (em especial o do homem local), de fundações voltadas para a perpetuação do conhecimento e da vida, de academias diversas e de cooperativas funcionando também como ponto de apoio e até mesmo repositório do padrão cultural e dos feitos do passado, e tantas iniciativas mais de muito bom proveito. A população e as instituições devem emprestar prestígio constante em favor de tudo que tocar a cultura, a tradição, o queijo, as festas, as personalidades, as lendas, tudo, enfim, através de divulgação, pela mídia em todas as suas formas, nos eventos, nos espaços públicos e fomentar a consulta às referências históricas em toda a discussão de interesse da sociedade. O bom cidadão nesse caso deve ser, com perdão da má palavra, um “inconveniente”, “só pensa naquilo”, emprestando também seu apoio e seu aplauso a todas as iniciativas de escrita sobre a história do lugar e sua gente, à preservação da fé e de suas imagens e dos equipamentos.

A vocação. Igualmente, é ponto de sustentação. O desenvolvimento consolidado no jeito local de atuar. Em função de condições econômicas históricas, cada cidade monta ao longo do tempo um conhecimento específico de sobrevivência. Ele envolve basicamente o saber lidar com o modo e os meios de produção apropriados no processo de assentamento, no desenrolar o cotidiano, na interação entre teoria e prática. Nossas cidades desenvolveram a lida com a pecuária, nos seus primórdios, aprenderam o manejo do gado e a trabalhar a terra para o seu sustento, uma ocupação envolvendo o aprendizado de técnicas, instrumentos, ciclos da natureza e coisas assim.

Campo gramado e montanha ao fundo

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“…surgem casas, rebanhos, vilas…”

Esse quadro manteve-se assim, sem grandes alterações, por quase duzentos anos, com aportes de “faiscagem”. A partir da segunda metade do século passado, pelo menos duas importantes mudanças foram introduzidas. A diversificação do plantio com os avanços da genética (deu a partida com o tal de milho híbrido), e a chegada da indústria (mineração e turismo), nesse caso, começando em Araxá, em especial depois da construção do Grande Hotel, dos urros e chifradas do gado passou para a frequência em noitadas na boate, abrilhantadas por cantores de renome nacional. Estes dois entrantes aportaram desdobramentos cruciais, nas novas necessidades de conhecimento, estabelecendo, pelo menos, mais um talento comunitário em todas as suas manifestações diretas, do receber, e indiretas, onde se destaca o artesanato. Na virada para o Terceiro Milênio, começa a despontar nova componente, a agroenergia. Certamente, demandará mais conhecimentos e novas relações entre os indivíduos, aumentando tanto a complexidade quanto as exigências.

Decorre daí uma dúvida. Qual é preferível? A especialização, concentrando conhecimento e esforço em uma atividade, em um pendor, ou a generalização, atuando em vários campos de saber? A demanda é a principal mola propulsora da escolha. Se para o mundo um lugar deve se concentrar na produção de queijo, assim deverá ser. Mas este talvez seja o início da conversa. A resposta influencia o destino, por exemplo, no caso do turismo. Se um lugar não corresponde às necessidades, haverá uma tendência ao amortecimento ou mesmo o encerramento da atividade. Ou, dito de maneira diferente, tanto mais promissora será a ocupação quanto melhor resposta se conseguir dar às demandas dos forasteiros. Por certo, pelo menos teoricamente, quanto maior a cidade mais pessoas poderão assimilar a competência necessária. Cada lugar deve resolver se opta pela dedicação em uma especialidade, um nicho exclusivo, ou generalidade, da ocupação diversificada. Eis o dilema: atuar profissionalmente num determinado tema, em reconhecida competência, em aclamada excelência naquele setor, ou abraçar de forma algo improvisada três ou quatro misteres, alcançando, na soma final, um bolo igualmente favorável para o desenvolvimento. Certo é, convenhamos, que fica mais difícil o chamamento para um destino que não exibe algo de especial.

Novas atividades no campo avançam. Como conciliar com as demais necessidades e interesses? Cabe à sociedade estudar, avaliar, decidir. A fixação do homem no campo, uma intenção tão anunciada, prometida e presente nos programas despencados, serve bem de indicador do alcance dos efeitos desejados. Se providências adequadas não forem tomadas, esses novos entrantes vão repetir a mesma cartilha socioeconômica de tantas investidas anteriores: a concentração da riqueza gerada, o enfraquecimento da pequena propriedade, o subemprego, a ocupação sazonal e a retração na produção de alimentos, a desigualdade social.

As pessoas perguntam: e agora, a soja vai trazer riqueza? Esquecem a história. Essa indagação já foi feita várias vezes. No século XVII: a cana-de-açúcar nos retirará deste sufoco? E o ouro, no século XVIII? E o café no século XIX? E as indústrias e o petróleo no século XX? Quais frutos a população tem colhido? Desenvolvimento efetivo, no proveito do homem do lugar, ou mais apropriação por poucos da riqueza gerada? Previmos e discutimos a destinação dos resultados do esforço, se ficou a justa paga para a terra e os seus habitantes?

Gramado com fumaça no céu

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Uma indústria junto à rodovia. E o céu azul já não era…

A agropecuária, a agroenergia e o turismo serão os três principais atores econômicos presentes em cada uma das cidades da região durante, pelo menos, a metade do corrente século. De que forma cada uma delas destacará sua vocação?

Desenvolvimento também é palavra-chave, entendida como “produção para solidificar o processo de autopromoção, de democratização e de autogestão”, interna, da sociedade. “Significa colocar o bem-estar da maioria como referência principal, porque o crescimento que não suprir as necessidades básicas de todos, no fundo não é defensável, pois é um processo de acirramento dos conflitos sociais”. E é bom ter bem claro: as próprias pessoas são as responsáveis pela definição de quais sejam as necessidades básicas. Não pode ser doação, do tipo “tome aí, você precisa é disto”, em vontade controlada.

Sobre a produção de queijo, vale a recomendação do Prof. José Menezes:[2] “É importante sinalizar que o desenvolvimento de políticas que garantam a sustentabilidade da produção do queijo artesanal de Minas deve atentar para o fato de que como se trata de um modo de fazer rural, de comunidades rurais e de pequenos aglomerados urbanos, (…) e incorporar novas perspectivas de desenvolvimento que não tratem o objeto em questão segundo parâmetros quantitativos e uniformizadores de políticas de desenvolvimento urbano-industrial. O mito do crescimento econômico como via única de promover o desenvolvimento social não se aplica aqui. Espaços rurais dispõem de lógica diferente exigindo tratamento diferenciado.” Não se coaduna totalmente porque o modo artesanal nos fala de condicionamentos não incluídos na ótica industrial, na conta capitalista. Mais ainda, em certas circunstâncias a produção artesanal encontra sua razão de ser na perenização da história, na preservação de valores e maneira de ser, na fixação do homem no campo. Sua vida se desenvolve em plano distinto, segundo processo mais vivo, mais ético, mais humano… e mais natural

Lago com árvores em volta

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Outras frentes de ação.

A partir do acima exposto, vejamos agora algumas propostas correlatas, mais operacionais, aplicáveis de uma maneira geral a todas as cidades do circuito objeto do estudo.

No decorrer do livro apresentei para discussão diversas sugestões em favor da produção do queijo e do desenvolvimento do turismo, ou ambos. Listei somente as possíveis, as viáveis. Por razões óbvias, não incluí planejamento familiar, reforma agrária, controle de imigração na cidade e assemelhados. Tampouco citei reabertura dos cassinos, no reforço do turismo, alternativa fora de cogitação, pois, tal como o uso da força, a jogatina é monopólio do Estado. Vejamos algumas outras ideias.

Aprimoramento da prestação de contas. Como é feita a divulgação mensal da contabilidade financeira e do balanço social como um todo do município? Deve ser simples assim: tínhamos tal montante no final do mês passado, foi arrecadado tanto nos seguintes impostos e taxas, gastamos tanto nas seguintes rubricas, restando o saldo tal. Uma folha de papel seria suficiente para ser lida pelo locutor da emissora de rádio, colada nos quadros dos saguões da Prefeitura, da Câmara, das instituições, das indústrias e do comércio, e distribuída em cada sala de aula etc. Ah! No rodapé do papel seriam facilmente encontráveis o 0800 e o site para consultas, comentários, sugestões, indagações, críticas (crítica: no verdadeiro sentido, da análise tão isenta quanto possível, apontando limites e avanços, ganhos e perdas).

Orçamento participativo. Quanto do montante arrecadado tem sua destinação discutida pela população? Qual o processo de avaliação da aplicação do dinheiro? Todos os empregos gerados na Prefeitura são entendidos como válidos, necessários, oportunos? A quantidade de secretarias e servidores corresponde à efetiva necessidade de resposta aos problemas ou traduzem simplesmente, ou o esforço de acomodação de todas as forças envolvidas na disputa de poder ou do exercício do nepotismo, corroendo a democracia? De que necessitamos mais? Vereadores ou Professores? Assessores ou Enfermeiros?

Incentivo às manifestações artísticas (corais, sinfônicas etc.) na formação e no aprimoramento. Toda igreja, pelo menos uma vez por mês, deveria acolher apresentação musical. Vargem Bonita apreciando a missa de São Sebastião, de Carlos Gomes, ou a praça central de Tapiraí, lotada, deleitando-se com o Stabat Mater, de Rossini, coisas assim. A banda local pode fazê-lo. Não faltam cantores pelas cidades para entoar os solos. Luiz Marchesi, padre conselheiro do Ginásio Dom Bosco, conseguia de nós, pequeninos, um ruidoso, mas afinado Sanctus da missa de Réquiem de Verdi, numa pequena cidade perdida nesse fim de mundo. Por que não agora, com muito mais recursos de comunicação e de deslocamento? O órgão da Igreja de São Francisco de Carmo do Paranaíba tem utilidade à altura da sua imponência? Corresponde à fé local?

O 7º Festival Regional do Queijo Canastra, com palco em Medeiros, foi abrilhantado com a apresentação de uma orquestra jovem. Aplausos. Para esta e mais uma dezena, se for possível. Abre-se um mundo à frente de cada infante que aprende a tocar um instrumento musical. Não somente para a arte, mas também para história e sensibilidade, geografia e convivência, psicologia e percepção, sutileza, civilidade, cidadania, apuro estético… a lista não tem fim. Sua cidade não conta com um projeto de orquestra jovem, voltada para comunidades carentes? Pois trate de cuidar disso. PS. Prá ontem.

Desenvolvimento da vocação turística. Aprimorar a hospitalidade. Colaborar na implantação, manutenção e melhoria dos pontos e equipamentos de atração, assim como da sua divulgação, dentro e fora dos limites da cidade.

Criação de incubadoras de base tecnológica e centros de excelência, atadas à vocação local. Cada lugar deve montar a sua, associada às atividades de interesse. Cidades como Bambuí, Piumhi, Araxá, Rio Paranaíba contam com Universidade, Emater, Associações, Sindicatos, enfim, as instituições necessárias e suficientes para a operacionalização de iniciativas desse tipo.

Formação de instituto para estudo, desenvolvimento e criação de uma malha de identificação dos municípios do queijo de leite cru do oeste mineiro, nos moldes da Estrada Real. Uma associação de cooperação com esse empreendimento de sucesso seria oportuna para aprendizagem e apoio nos passos a serem seguidos, analisando também as interações com projetos já implantados como Circuito Tropeiros de Minas, Rota Turística do Rio Paranaíba, Circuito Caminhos do Cerrado e quantos mais houver. Há beleza, cultura e história em tanto suficiente para alimentar dezenas dessas propostas.

Montar desenho equivalente para um “Roteiro do QMA do Oeste Mineiro” ficaria parecido com o de uma “espinha de peixe”, abrangendo os 37 municípios da produção. Sugestão: o eixo central da rede começaria em Piumhi, passaria por São Roque e depois tomaria o rumo norte unindo as cidades de Medeiros, Bambuí, Tapiraí, Campos Altos, Santa Rosa, São Gotardo, Arapuá, Carmo do Paranaíba, Lagoa Formosa, Patos de Minas, Presidente Olegário, Lagamar e Vazante. Desta linha dorsal, partiriam seis radiais. Quatro delas seguiriam em direção a oeste: Vargem Bonita e Delfinópolis; Tapira, Sacramento e Conquista; Pratinha, Ibiá, Araxá, Perdizes, Pedrinópolis e Santa Juliana (e Uberaba, se esta for incluída no circuito) e a quarta Rio Paranaíba, Serra do Salitre, Cruzeiro da Fortaleza, Guimarânia, Patrocínio, Coromandel e Abadia dos Dourados. Dois pequenos braços para leste alcançariam duas cidades cada um, Matutina e Tiros, Varjão de Minas e São Gonçalo do Abaeté.

Uma das peças de divulgação seria um guia turístico, com mesma formatação e proposta já existentes, apresentando, para cada cidade e caminho, as igrejas, os museus, artesanato (com destaque para o queijo), rotas de degustação, cultura, festas civis (juninas, rodeios) e religiosas (Semana Santa, Corpus Christi, dia do santo padroeiro, Festa de Reis, Romarias, Congados, Cavalhadas, Catupés), sítios ecológicos, atrações naturais (cachoeiras, rios, grutas, serras etc.), além das informações sobre hotéis, pousadas e restaurantes. Na Serra da Canastra já existem anúncios dessa perspectiva. Já foram instalados diversos “totens” nas estradas, indicando posição e direções. Não citam o queijo.

A comunicação é pilar de sustentação. É recomendação comum. Sem propaganda, tudo fica muito difícil. E a população deve aprender a participar ativamente da divulgação. Os presentes levantamentos mostraram um “indivíduo-queijo” acanhado, com presença bem abaixo do esperado ou imaginado, comparativamente. Deveria ser maior. Quando viajo para a Pauliceia, antes mesmo de cumprimentar os parentes perguntam se eu trouxe queijo. Os patrícios de outras plagas, pelo menos parece, guardam de forma límpida esta relação “Minas-Queijo”. Por que será? Pelo menos perante o forasteiro devíamos “badalar” mais este nosso patrimônio cultural. Como fazer isso? O melhor caminho é cuidar cada dia, um processo, incessante, aproveitando todas as oportunidades. Demanda tempo, mas, em compensação, é barato.

Melhor parar por aqui. Ideias para puxar forças de atração não faltam. O problema é conseguir formas de materialização. A participação das instituições, das empresas e da população em geral amplia as possibilidades para se conseguir erguer monumentos, ajardinar e conservar praças, reformar a igreja, construir o centro de atendimento e treinar pessoas para receber o turista, colocar bancos artístico-temáticos nos jardins, maquetes, painéis, relógios, fontes luminosas, banheiros públicos. Alguns movimentos não custam tanto: fomento e revigoração das festas e certames anuais, congressos e convenções; incentivo à participação de todos os grêmios, corporações, sociedades corais; divulgação junto aos grandes centros; institucionalização da responsabilidade de cada um pela limpeza das ruas; melhoria constante dos sites das prefeituras municipais e medidas similares. Existem milhares de instituições, no Brasil e no exterior, muito sensíveis, receptivas a um bom projeto, bem elaborado. As propostas voltadas para meio ambiente, desenvolvimento cultural e sustentabilidade encontram lugares de boa aceitação e aprovação. A maioria das ideias aqui apresentadas envolve esses três elementos básicos.

As instituições e a população podem constituir um núcleo que coordene a sinergia dos trabalhos, principalmente pela minimização da duplicação de esforços. Esse núcleo, uma espécie de agência de desenvolvimento socioeconômico,

Insistindo, a instauração da plena participação coincide com a derrocada do reino das farsas. Quanto mais mérito se encontrar na solidariedade do homem comum, mais democracia se constrói. Quanto maior for a presença de todos os cidadãos, maior será a vigência da justiça.

O Queijo Minas Artesanal, patrimônio cultural, de elaboração artesanal, ganhou espaços incríveis nos últimos dez anos. Pouco a pouco descobriu-se as vantagens do queijo especial, feito com carinho e cumplicidade, contendo história, maturado. Ele tem sido cada vez mais privilegiado por gente que sabe apreciar a diferença. Os preços melhoraram um pouco, favorecendo a cadeia, até chegar ao homem do campo. Ora viva. Mas as dificuldades continuam. Não chegou até ao campo a compensação, na medida certa, e proporcional a tanto avanço.

Pessoas montadas em cavalos

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Ver o capítulo X

Ver a Ficha Catalográfica


NOTAS

  1. Mais comentários sobre o cooperativismo podem ser encontrados em diversos sites. Por exemplo: https://cienciadoleite.com.br/noticia/4913/ima-registra-entreposto-de-queijo-minas-artesanal

  2. MENESES, José N. C. Dossiê interpretativo sobre queijo artesanal. Belo Horizonte: Iphan, 2006.

Posted by Brasil 2049

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