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“Com a faca e o queijo na mão”, estão as cidades da Trilha para sustentarem avanços no progresso econômico e social com base na nossa inimitável iguaria


Capítulo IX – Parte 2
Quanto menos queijo menos cultura.

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Desenho preto e branco

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“Se num mal pregunto”

Em uma guinada no campo de averiguação e análise de traços, vejamos agora um canto interessante da manifestação cultural.

Das entrevistas (e de textos consultados), surgiu uma boa coleção de ditados, refrões e expressões comumente utilizados envolvendo alusão ao queijo, vários deles bem amineirados por costume.

“Pão, pão, queijo, queijo” é convocado quando se deseja estabelecer separação entre coisas, ou estabelecer isonomia, ou, ainda, identificar necessidade de justiça, em partição. Não deixa de caracterizar impropriedade, desfazendo uma das combinações mais apreciadas em toda parte, não somente em Minas, frio ou quente. Bem diziam os romanos: “Caseus et panis sunt optima fercula sanis”. Ou, na língua pátria, “Queijo e pão, ótima comida para o são”.

“Fazenda que não produz queijo até os cachorros são magros”. O sentido é mais na sugestão escondida de mensagem oposta, prestigiando o ofício e indicando a fartura trazida pelo trabalho.

“Descuidei do queijo, o rato comeu”, “Com a faca e o queijo na mão”, “Doce sem queijo, abraço sem beijo”, “Um abraço, um beijo e um pedaço de queijo”, “Tendo queijo nada mais quero”, “Pão e queijo, mesa posta é” e “Quem mexeu no meu queijo?”, todos eles envolvem conotação de superioridade, de vantagem, de coisa principal, de objeto desejado. Pressupõem igualmente poder ou prevalência.

Por sua vez, o refrão “Falta um queijo e uma rapadura” identifica empírica e subjetivamente um mundo de chão a ser vencido, uma longa empreitada a cumprir, um tempo longo a ser contado até completar uma tarefa.

Na contagem da idade, referida a coisa antiga, costumam se valer da expressão “Mais velho que a Serra da Canastra”. Pode ter o sentido da obsolescência, “démodé”.

Ainda referido ao deus Cronos, temos “O tempo cura até queijo”, que pode ser entendido como uma evasiva, um “que seja”, paciência, com intenção consoladora. Às vezes, pode ser utilizado beirando a pilhéria, feito se diz “na vida tudo é passageiro, exceto motorista e cobrador”.

Uma imagem contendo comida, no interior, mesa, cheio

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Pilhas de “queijo PVC” no Mercado Central de Belo Horizonte.
Boa qualidade, mas tome tempo para curar.

“Mais furado que queijo suíço”, coisa mal-arranjada, de pouca valia. Não deixa de conter xenofobia, depreciando concorrente estrangeiro.

O ditado “Avançar na lua pensando que é queijo”, bastante invocado, vale como metáfora advertindo contra a pressa, a sofreguidão. Ou presunção.

“Não se pode derreter o queijo duas vezes” recomenda cumprimento da empreitada de uma investida só, ou não ser mais possível numa segunda tentativa conseguir o bom termo alcançável na primeira chance. Algo equivalente à “o que deve ser feito deve ser bem-feito”.

Um entrevistado citou, sem receios, o seguinte mote indagativo: “Onde vamos comer o redondo?” — honni soit qui mal y pense.

“Mineiro descasca, carioca raspa e paulista come com a casca”, pendenga antiga adaptada aos prazeres da mesa. A diferença vai justificada no embate entre os mais altos preços cobrados nas capitais distantes e o conhecimento da contagem dos microscópios, segundo o qual a casca abriga a incrível população de 10 bilhões de micro-organismos por grama, dez vezes mais que na massa interna.

Citaram uma, duas vezes a conhecida historinha do mineiro que encontrou uma lâmpada mágica com direito a três pedidos. Na terceira escolha, teria optado por uma mulher bonita, mas o fez constrangido, receoso de repreensão ou alvo de chacota, caso tivesse persistido no seu único agrado, qual seja, queijo.

Os apaixonados recitam: “O sol já vem saino, redondo qui nem um quêjo, quero ver o meu amor, muitos dia qui eu num vejo” ou “Vô mandá fazê um relógio, de u’a fatia de quêjo, prá contá as hora e os minuto dos dia qui num te vejo”. Bonito demais da conta! Atados aos enlevos do coração.

“Quer ver um mineiro correndo? Joga um queijo ladeira abaixo” ou “Mineiro quando vê um queijo rolando pula em cima” são motes desaforados, insinuando única motivação para o caipira se movimentar.

O vocábulo serve ainda como unidade de medida de volume de produção de leite: uma vaca de dois queijos significa que de seus úberes se colhe diariamente vinte litros do precioso líquido.

Presença na internet

Mudando um pouco a abordagem. Outra pesquisa (no conforto de casa, via internet, sem sol e sem chuva, mas cansativa) foram lidos os trinta primeiros links após digitar o nome de cada cidade. O objetivo foi verificar existência de qualquer tipo de referência ao queijo de leite cru nesses espaços etéreos. Não deixa de ser uma via indireta de medir qual a interação entre a cidade e o referido produto, pois ela estaria retratada na importância dada a ele por aqueles que tiveram o cuidado de lançar na rede seus escritos sobre cada lugar, independente da motivação (sites oficiais de prefeituras, câmaras municipais etc., de festivais e feiras, marketing de todos os tipos, em especial aqueles sobre o excursionismo, portais noticiosos, trabalhos sobre cada localidade). A investigação foi feita durante o mês de dezembro de 2010, correspondendo, portanto, à situação naquela época (podem ter ocorrido mudanças, mas não devem ser sensíveis).[1] Vejamos quais foram os resultados.

De Araxá citam cremes, sabonetes, mineração (muita mineração), artesanato, doces, café do Cerrado, turismo, batata inglesa, moderna estufa hidropônica, feijão, mandioca, voo livre, maracujá, folias e baladas. Em meio a tão incrível diversificação, apenas dois sites citam o queijo, mas em frases modestas, uma delas em ufanismo exagerado, considerando-o o melhor de Minas. Entre essas trinta primeiras páginas selecionadas se apresentam o Clube da Cozinha e o Festival Internacional da Cultura e Gastronomia. Embora se dediquem ao tema alimentação, especificamente, não citam nosso queijo (uma ofensa, perdoem-me os meus amigos que participam da iniciativa). Nos sites desses eventos, tampouco consegui encontrar receitas com queijo entre os ingredientes. Pode-se assistir a um vídeo no qual o maître, com batata na boca em acento francês, esnobando pressuposta superioridade, apresenta seu cardápio sofisticado, Terrine de foie gras, robalo no vapor com caviar e cassoulet a provençal, tudo estranho à nossa cultura. Ao final, sobremesa, parecia goiabada, sem queijo… nada… Outros três links registram a presença da seleção brasileira, concentração da Copa do Mundo de 1958, falam de Dona Beja banhando-se nas águas, utilizadas depois por Getúlio Vargas na cura de gastrite, e contam vantagem do famoso Grande Hotel recebendo todos os presidentes da República desde sua inauguração. Essa regra incorporou exceções.

Os três dáblius bambuienses falam de café, arroz, milho e soja, usina de etanol e açúcar, Carnaval (tome Carnaval), Axé, Congado, expo e algo sobre pecuária e produção de leite. Passou perto, mas nada diz sobre o queijo. Um site enciclopédico diz ser “reconhecida internacionalmente pelo fato de terem se desenvolvido na cidade estudos aprofundando o conhecimento científico da moléstia tripanossomíase, vulgarmente conhecida como Doença de Chagas”. Uma formidável contribuição histórica. Encontrou-se ainda: um estudo feito ali, concluindo pelo maior índice de mortalidade entre os idosos que dormiam mais e uma avaliação dos serviços odontológicos prestados aos moradores. Desta maneira, pelo menos por esta amostragem, Bambuí aparece em variegados temas de saúde. Será por que lá comem menos queijo?

Dos trinta sites consultados sobre Carmo, apenas dois registram a importância do queijo, e um é papel-carbono do outro. É pouco. Na navegação pelos mares plasmados sobre Carmo, encontram-se notas interessantes, distinguindo a cidade. Conta com três times de futebol de melhor porte (de se admirar). Uma notícia exalta o impulso econômico experimentado com as cooperativas. Confirma a importância desse tipo de associação. No mais, café, Festa do Peão e prisão de falso médico.

Ibiá tem feira livre, fanfarras (isso é bom), festival de dança (isso é ótimo), Nestlé e estação ferroviária. Plantam café, cana, abacaxi e soja. Um lavrador foi morto por javali e prenderam três ladrões de reses (far west). Tem gado (prá valer), quase 6 cabeças por habitante. Foi o maior produtor de leite do país em 2005, segundo uma única notícia, isolada, perdida. Condição importante. Deveria ser mais festejada, exaltada. Muitas fotos da cidade e da linda Cachoeira da Argenita. Queijo não é citado uma única vez. Tem base?

Cachoeira com pedras e água ao fundo

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Cachoeira da Argenita

Lagoa Formosa exibe Carnaval, Festa do Feijão, Festival de Pratos Finos e concursos públicos. Queijo… nada. Coisa inesperada apareceu foi num site descrevendo o distrito de Monjolinho de Minas, de autoria de Maria Santana, cientista social. Impressionante. Uma povoação ocupando singelos doze quarteirões é objeto de uma completa descrição, segundo texto cuidadoso, de várias páginas, não encontrável em nenhuma das descrições internautas sobre as cidades. Parabéns, competente escritora.

Depois, embarcando novamente no imenso navio virtual, e aportando em Medeiros, encontra-se o site da Prefeitura Municipal, bem elaborado, bonito. No item história, discorre sobre a configuração da cidade, aspectos culturais e tantas coisas mais. Um trecho narra: “A primeira loja da cidade era de propriedade do Sr. Zé Turco, vendia-se Óleo de Rícino, Sonrisal (sic), azeite caseiro, aspirina, sal de gado…”. Um site vagueia mais detidamente sobre sua história, sua cultura, as muitas festas na roça, com diversos tipos de comida, destacando o arroz doce e o doce de leite. Não cita o queijo. Passando por outra porta, foi encontrado um item específico sobre o “redondo”, sua fabricação e o compromisso com os resultados. Ainda bem, mas é bem pouco, somente um em trinta.

Continuando o passeio na transcendência “www”, agora em Piumhi, três sites pelo menos dizem que além de pecuária, comércio e serviços, a economia apoia-se na produção agrícola do café, milho e feijão. Um portal mostra estabelecimentos comerciais de diversos setores, os “peg-pags” com “variedades de mercadorias, inclusive o saboroso queijo da Canastra”. Melhor se não tivesse dito, tão pouca coisa, acessória — Pôncio Pilatos no Credo —, a cidade auferindo tanta vantagem econômica com a comercialização, hoje é um dos principais entrepostos. As descrições não guardam correspondência entre a presença na economia e o divulgado, via internet. Ah! Tem Expo Piumhi.

De Rio Paranaíba dizem ser forte mesmo é a agricultura. Existem no município 180 pivôs! As referências tratam de batata, cebola, alho, cenoura, café, milho e soja. Nem ao menos citam o leite. Igualmente importantes: o campus da UFV e o Carnaval. Entre vários filmes no YouTube, um deles mostra paisagens maravilhosas da região. Existem pontos turísticos de interesse, incluindo o belvedere dividindo as duas águas, do Paranaíba e do São Francisco. O queijo não comparece em nenhuma das 30 apresentações consultadas. Lamentável.

São Roque cita o produto em minguados dois portais, repetindo o mesmo texto: “A vida econômica do município se baseia na produção do queijo Canastra há mais de um século. Uma economia semiclandestina, pois a produção é artesanal e ninguém paga imposto. Noventa por cento do queijo viaja rumo à região metropolitana de São Paulo e é distribuído através de pequenos comerciantes”. Olhada a proporcionalidade com sua importância, é insuficiente. É quase nada para o berço que acalentou o famoso queijo — ou foi o queijo que embalou São Roque? Visitantes são importantes, contudo, em reverência à sua história e ao nome alçado pelo queijo, este deveria ocupar lugar de destaque em qualquer apresentação dessa cidade. É como descrever o Rio de Janeiro sem incluir o Cristo Redentor, Carnaval e samba. Uma das fontes consultadas, isso lá é verdade, comenta: “Além de todas as belezas naturais que a região do Baú nos reserva, o povo mineiro é um capítulo à parte. Gente da terra, e extremamente hospitaleira. – Vamos entrar, tomar um “cafezim” com “queijim”. Gente extrovertida, conquistando pelo jeito simples e carinhoso de ser”. São Roque é a terra natal do queijo no oeste, e ainda figura como a principal referência da sua produção. Sendo assim, deve ser o centro da recuperação da sua majestade. Importa, pois, ao lado da união de forças na defesa da história artesanal local, desenvolver projetos de marketing. Todo mundo reconhece a importância da divulgação. E a Web, essa imensa malha virtual, é um dos veículos.

Nos “ambientes www” tapirenses a conversa flui sobre sua pecuária, mineração (bota mineração nisso), a boa produção de leite e o rico fosfato. Uma referência, de triste memória, trata da operação Passárgada, nas irregularidades na gestão municipal. Tem Expotap, rodeio, cantoria, dança, mas queijo não. O espaço cultural do site da Prefeitura Municipal cita o produto, acompanhado de linda foto de peças marcando excelência (quem vai ao site em fevereiro de 2022 não encontra mais essa foto. Tem Covid). O texto alusivo é adequado: “A produção do queijo artesanal serve bem para ilustrar a agroindústria, o que o tapirense é especialista em produzir. Tudo isso vem desde a colonização, e a tecnologia acrescentou novidades. Mas o essencial permaneceu: o amor e o carinho com que cada peça é produzida”. Uma das mais modestas entre as cidades irmãs é exemplo. Mostra caminhos. Congratulações ao prefeito.

Nos “reflexos” de Vargem Bonita sobre a tela há um diagnóstico municipal bem-feito, o mais completo entre os encontrados nessa navegação de longo curso. Segundo o referido estudo, o município se destaca na criação de gado, de corte e de leite. Em seguida, diz: “Muitos pecuaristas têm mostrado empenho em relação à produção de queijos, em particular do tipo Canastra, feito com leite cru, tradicional na região e com longa presença no mercado. No entanto, tantos são os desafios a enfrentar, uma vez que tal atividade é praticada fora dos adequados padrões de controle sanitário do rebanho e microbiológicos, exigidos durante a produção. Essa situação não impede a comercialização do citado queijo, mas inibe sua expansão e mantém baixos os preços. Existe a ideia de buscar a certificação do produto da região, com a obtenção do devido selo do SIF. A Cooperativa de Crédito de São Roque de Minas – Saromcredi vem subsidiando um estudo piloto, em convênio com a Epamig”.[2] O diagnóstico cita ainda “potencial de incremento e melhor aproveitamento da produção artesanal, inclusive do famoso queijo” como uma das vantagens competitivas do lugar. Ao final, na lista de recomendações, sugere “apoiar a criação de uma associação ou cooperativa de produtores de queijo Canastra, com o objetivo de união e fortalecimento da atividade, bem como de reforço da marca, conhecida tradicionalmente no mercado, melhorando as condições de fabricação e, em consequência, a qualidade do produto”. Uns sites citam os esportes radicais, o processo contra um ex-prefeito acusado de crime ambiental e o potencial do turismo, o novo filão da cidade, depois de extinto o garimpo. Resumindo, somente uma citação do queijo. É pouco. Outro “3W”, igualmente bem elaborado, indica 71 ações em favor do desenvolvimento sustentável. Entre estas, duas se referem à promoção do queijo. Trata-se de excelente análise sobre implantação de Agenda 21 local em São Roque de Minas e Vargem Bonita.

Resumo: os 330 sites sobre a região não somam os dedos das mãos em alusão ao queijo. Três por cento, menos que pouco. Quase nada. Por esta constatação, o produto está longe de ocupar representatividade mínima. Prefeitos, secretários, empresários e instituições desses municípios precisam corrigir essa lacuna. Não deixem por menos, cada prefeitura crie um site com o título “O queijo da minha terra”. Ele conteria os dados principais sobre a história, as características, a produção e a distribuição, lista dos artesãos, receitas, presença da cooperativa, aspectos técnicos, recomendações, cuidados, “causos”, curiosidades e demais elementos de interesse.

Os brasões

Foram levantados os brasões com o mesmo objetivo: verificar a existência de referências ao “redondo” neste símbolo oficial de cada lugar.


No araxaense figura gado, mas queijo não. Nesse caso, cabe uma penitência minha. Na festa do centenário da cidade em 1965, participei dos aprestos do desfile comemorativo montando carro alegórico de uma empresa. Identifiquei na história e na vida da terra: sol, água, Árvores dos Enforcados, gado, caiapós, milho e café. Annibal De Blasiis, profissional de marketing, aquarelista de mão cheia, aposentado, mudara-se para lá fugido do corre-corre da pauliceia. Ele compôs o brasão com esses elementos, pintando-o num painel de madeira. Consegui a insígnia em latim — “Assim todos se lembrem”. Posteriormente, através de lei municipal, a alegoria foi oficializada. Na época, eu não atinava bem sobre a questão, não adquirira ainda a consciência necessária e, então, incluir o queijo no símbolo local. Ou porque não ocupava lugar tão preponderante de divulgação (e continua) .



No selo de Bambuí comparecem seis elementos constitutivos: história de armas e água, literatura, química, gado, cruz de Cristo e a divisa “A união faz a força”. Não faz, portanto, alusão ao queijo. A lei municipal institucionalizando os brasões é a melhor fonte de pesquisa das explicações dos significados de cada uma das chamadas. Tentei na Câmara Municipal de lá, mas não encontrei.



O escudo de Carmo, da terra somente inclui a soja e o café no suporte. Não faz referência à pecuária e, menos ainda, ao leite ou ao queijo. No mais, castelos (são tantos) e flor de Liz. Encontrei uma descrição detalhada, fazendo uso da terminologia da heráldica (blau, jaude, coroa mural), nos trinques, mas sem indicação dos significados. A concha normalmente representa peregrinação ou reporta a Santo Agostinho na limitação da mente humana diante de Deus. Agora, qual a razão das seis dessas vieiras nas armas da cidade isso lá é coisa de se investigar e alcançar melhor explicação.



Ibiá tem, milho, soja, café e arroz (representando a agricultura), educação, indústria, minério e pecuária e, também, mapa do município. Então, da mesma maneira, a referência ao leite é apenas indireta e ao queijo, em segundo nível. Portanto, não comparece.



O de Lagoa Formosa é rebuscado, coroa mural de seis torres, coração flamejante representando o “acendrado amor dos filhos à cidade”, rosas heráldicas evocando a beleza da terra e flores de Liz da padroeira, Nossa Senhora da Piedade. No rodapé, o aguado faz alusão à repousante lagoa local. O escudo inclui hastes de feijão. O lema exalta: “Formosa Terra de Libero Povo”. Não exibe gado, nem queijo.



Melhor sorte se encontra em Medeiros, na simpática atenção do presidente da Câmara, Sr. Pedro Domingos, de quem consegui o texto explicativo oficial. O bonito brasão é composto de torres, em referência à dominação portuguesa, escudo, com a Matriz de São José, a cabeça de gado “representando a riqueza pecuária leiteira e de corte do município” e o coreto da praça. Ramos de café e milho ladeiam o escudo. Por baixo, aparece a faixa com a inscrição “Medeiros” e duas datas — da elevação à condição de vila e de cidade. Não inclui o queijo.



O de Piumhi é composto de igreja sobre a colina (horizonte característico da cidade), gado, milho e mineração. Queijo só indiretamente. O fundo negro do brasão chama a atenção. A primeira impressão é um tanto lúgubre, mas deve ser entendido como referência positiva. A explicação oficial contida na lei talvez explique melhor.



O emblema de Rio Paranaíba talvez seja o mais enfeitado. As referências são o rio, o sol e a montanha, a irrigação, destacando a importância da agricultura, o gado e muitas frutas e legumes — uma cornucópia em profusão sugerindo terra prometida. Duas ramas vistosas e carregadas de café emolduram o escudo. O queijo não é convocado diretamente.



São Roque não deixou por menos no capricho. Tem torreão, cocar indígena, cruz de Cristo, estrela e espada (maçons?), triângulo vermelho da bandeira mineira, e, no centro do símbolo, uma cachoeira. Em cada lado, um mosquete ornado com a cruz lusitana, reverenciando as entradas e bandeiras em 1673 (possivelmente o vovô de toda a turma). Na parte de baixo, figuram rio e montanhas. Não colocaram o queijo.



Tapira desenhou um arranjo um tanto inusitado. Destaca a mineração, um jarro cheio de um líquido e um copo (levando a crer tratar-se de água) e o gado. Dois galhos da rubiácea contornando as laterais e duas pequenas canoilas de milho simetricamente dispostas, em composição, heterodoxa, fora do padrão normal (somente dois ramos, um de cada lado). Estariam representando proporcionalidade no produto interno? O emblema chama a atenção por não trazer o jeito tradicional de escudo, preferindo colocar as referências dentro de uma espécie de gota invertida. O queijo não é explicitado.



O brasão vargeano é emoldurado pelo ramo do café e pela vara de milho. O desenho principal engloba o diamante, o boi, o arroz e o São Francisco, com a Canastra ao fundo. Sem queijo.


 

Então. Em nenhum brasão ou bandeira dos onze é encontrada referência direta ao queijo. O gado aparece em sete escudos e o leite em apenas um, e nosso produto tradicional não ganha espaço. Fica confirmada a distância que existe entre a sua presença na atividade econômica da região e o reconhecimento oficial da sua importância.

Sonhando: quando o Sertão da Farinha Podre for um Estado, independente, não deixaremos por menos: a bandeira terá três queijos sobre fundo azul, o feriado principal será o Dia do Queijo, a bola de futebol, queijo, nossas minas serão de queijo, as novelas terão como enredo principal o queijo, bem como, também, o hino. Em vez de bala teremos queijo perdido, e, sem dúvida, políticos transitando com mala cheia de queijo pegará xilindró mesmo, inafiançável.

A literatura

Vejamos agora qual a assiduidade do queijo na literatura regional. Em ingente esforço de leitura (ver referências bibliográficas no final), através da produção contemporânea dos filhos deste nosso rincão. Lendo tudo com atenção, e percorrendo detidamente as entrelinhas, dois objetivos principais foram fixados: apreender traços culturais da nossa gente e verificar qual a proximidade dos escritos com o meio rural e o nosso queijo. Foi uma prazerosa campanha, mas, infelizmente, ao final, ela autorizou se levantasse a suspeita, ou quase certeza, de que o nosso queijo não é bom coadjuvante dos enredos de ficção, ou dos registros sobre as histórias das cidades do Sertão da Farinha Podre, diferentemente de outras regiões onde a pena se ocupa da descrição de produtos conterrâneos. Vejamos, vamos lá.

Discorrendo com competência e em boa conta sobre nossos lugares e nossa gente, Mário Palmério, nascido em meio ao sertão, não se preocupou em estabelecer vínculos com o queijo. “Vila dos Confins” e “Chapadão do Bugre”, as magistrais e consagradas obras do laureado uberabense, regionais até ao pescoço, descrevem paisagens, costumes e nosso povo. Suas páginas estão respingadas de aguardente, à vontade, abrideira e saideira, mas não citam o ofício de produção ou o uso do queijo. Gado tem um “mucado”, mas leite, quase nada. Num fundo de página aparece uma tal coalhada de queijo.

Autran Dourado, escritor de alto coturno, nasceu em Patos de Minas, portanto, filho do Cerrado. “Tempo de amar”, “Uma vida em segredo”, “Ópera dos mortos”, “Sinos da agonia” e “Lucas Procópio”, todos com um pé no curral, Mamotes, Fundão, Pedra Menina, Ribeirinha e Encantado. Os personagens comem melado com farinha e manga (no paiol é mais gostoso), catam gabiroba, encostam-se às porteiras, fabricam marmelada, emocionam-se junto aos caixões com anjinhos e trilham destinos marcados. O mundo de Biela é a cozinha, na profusão de doces, biscoitos, feijão e torresmo. Mas nadinha de queijo. Em “Sinos da agonia” principalmente, a “branquinha” encharca várias páginas, uma delas em inversão de preconceito, interessante. Mas … sem queijo.

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Vista geral da imponente e pujante Patos de Minas
Terra natal do grande escritor Autran Dourado (1926-2012)

O bonito livro de Lucy Costa e Fernando Pinto, “Bambuí… Nossa Terra, Nossa Gente”, contém 253 páginas de texto e quase outro tanto ocupado por fotos. Nele são encontradas duas minúsculas referências: somente o vocábulo solto, perdido em meio a um leilão e um registro esmaecido de uma fábrica antiga, desativada, portanto, não artesanal. O livro se concentra mais nas pessoas, é verdade, mas não impede de se estranhar que não tenha apresentado relação com o produto. Perfilam advogados, padres, médicos, tanta gente, sem qualquer relação com o queijo. Nem ao menos a citação de uma receita, a chamada de uma tradição, um mote, qualquer coisa. Estão estampadas fotos de gado, sadio, mas nada fala sobre o destino dado ao leite produzido.

Flávio José de Almeida discorre sobre a história de Patrocínio em profícuo levantamento. O queijo aparece acidentalmente, em duas minguadas linhas. É pouco em meio a tantos casos, tratando da economia e do comércio, mesmo se dedicando mais às instituições, legislação e arrecadação do município e se restrinja ao exíguo tempo de uma década. Impressiona bem a riqueza de detalhes compilados pelo autor sobre as interações e a organização da cidade, citando nomes em profusão. Os demais lugares devem tentar dispor de igual contribuição.

O importante estudo de Maria de Fátima Almeida ainda sobre Patrocínio, mais de meio milheiro de páginas, cita somente três vezes o queijo, duas delas en passant e uma em rápidas duas linhas, onde exalta a excelência do produto local. Dessa leitura se infere a fraca presença da pecuária em geral e em especial da feitura do queijo.

Tufy Habib exalta a sua terra. São escritos de belíssima lavratura, volteando no tema central da saudade, com suavidade, inebriados, maviosos madrigais, raramente se vê. O queijo não inspirou sua verve.

Cônego Ivo, também de São Roque, através de suas graciosas linhas focou mais o plano da fé e dos mistérios. Não citou o queijo.

Trezentas e cinquenta páginas lotadas de nomes, histórias e merecidas reverências. Tal é o livro de José Vargas sobre Rio Paranaíba. Um trabalho invejável. Cita três vezes o queijo. Duas rapidamente, nomeando cidadãos que trabalharam no ramo, e no finalzinho, uma grata novidade, em uma poesia de Lino Aguiar. Exalta o “povo desconfiado, como o queijo, nunca quis ser vedete, porém nos alimentou, nos educou” e saudando a certificação, “o Queijo Minas sair do anonimato e aparecer com nome e endereço”, libertando-se da condição anterior, de “ficar calado, a conquistar o nosso pão de cada dia sem fazer alarde … ao invés do queijo suíço éramos o queijo sumiço”. É a mais encorpada alusão sobre o produto encontrada nos livros lidos.

Geralda Pereira da Silva, em sua pequena grande ode a São João da Serra Negra (distrito de Patrocínio), cita três vezes a presença do queijo na vida da comunidade, na maior densidade encontrada. Seus registros detêm, ora pois, o título de principal homenagem à artesania. A capa do livro traz uma foto da vila. Talvez venha ser um destino turístico de fuga.

Vista aérea de uma cidade

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Vista geral da linda e muito culta Patrocínio

Dr. José Pessoa, em “Cruzes da estrada”, nos apresenta inusitados e interessantes relatos, focados nos crimes ocorridos em São Gotardo na primeira metade do século XX. O livro mostra vários costumes vigentes, inclusive o do veredicto de inocente para a maioria dos autores dos crimes (a impunidade não é invenção recente). Estabelece oportuno arrazoado sobre a Folia de Reis e razões da sua extinção, nessa marcha de mudanças e perdas de manifestações culturais. A maioria dos “causos” envolve fazendas, mas somente uma vez foi citado o queijo. Mesma coisa se deu em “São Gotardo, sua gente e sua evolução”, uma longa descrição de sua autoria sobre a história local. Discorre com propriedade sobre as origens do lugar, os costumes, pecuária, café, carne, couro, café, feijão, rapadura, milho, café, toucinho, leite (duas vezes), mas não inclui o queijo. Na condição de profissional da saúde, o autor dedica a segunda metade do livro de 380 páginas à história da medicina lá no Córrego da Confusão (um dos nomes ancestrais do lugar). Apresenta dezenas de casos de atendimento médico à gente do meio rural, mas não diz se pelo menos recebeu um queijo como pagamento pelos serviços prestados.

O Prof. Célio Fonseca, descrevendo Lagoa Dourada, cita apenas duas vezes o nosso produto artesanal, na condição de figurante, como parte da lista de produção local ou na matula de comitiva de carro de boi. Junto ao final do livro detalha a agropecuária da terra, mas não cita o queijo, portanto, ele não está presente no “canto da alma”.

Em Araxá, Vilma Duarte, de incontável prole de escritos, privilegiando a poesia, cita duas vezes o saboroso filho da terra, em “Mineirice”, com goiabada cascão e bolo de fubá. Podia ser mais. Sua aplaudida verve literária descreveria na conta devida esse nosso patrimônio. Com os pés no nosso chão, “correndo descalça pisando o verdume da pradaria”, ou atolados em estrume de vaca no curral, discorre sobre doces, e tanto beijo. Seria tão bom ver a sua destreza graciosa fazer rimá-los com queijo.

Glaura Lima nos presenteou com um bem delineado resumo sobre a história da estância hidromineral. A exiguidade das 100 páginas não permitiu maiores aprofundamentos. Por isso, a atividade rural aparece como acessória e o queijo é citado uma única vez em meio à lista de produtos da terra. Volto a insistir na importância econômica representada pela comercialização do queijo na cidade nas primeiras décadas do século passado. Precisamos reconduzir essa interação ao seu merecido lugar.

Maria Santos Teixeira escreveu a “Cantiga do carro”, cujas páginas nos brinda com uma versão enfestada da “Força do Destino” despencada sobre a cabocla Teresa, envolvendo assassinato acidental, mas invertido (o sogro é que mata o genro). Nesse romance se encontra a mais apaixonante presença do queijo. Ele aparece logo nas primeiras cenas do enredo, partilhando os tempos serenos de venturas e esperanças no sítio. Depois, durante todo o meio da trama, enquanto são trilhados todos os desencontros, e são vividos a loucura e o desatino urbanos, ele não participa, como se sua índole não se ajustasse a tantas agruras. Mas, ao final, ele reaparece, no abnegado exercício do perdão e na pujança revitalizadora da renúncia, no retorno ao campo, na recomposição da vida, aplacados todos os sofrimentos, cicatrizadas todas as feridas, coadjuvando final feliz. Agrada ver nesse encadeamento de sentimentos, em roteiro de dois planos, uma parábola em homenagem ao nosso queijo.

Da mesma autora é “O Rouxinol”, traçando biografias da nossa gente. Uma intrincada história das irmãs gêmeas, com fecho em claustro e doação, pode ser desdobrada em um livro à parte. Uma poesia relata as atividades na Fazenda das Amoras e não inclui a fartura do queijo: lá não se davam a esse mister? A cisma nessa dúvida se dissolve no seu “Retalhos que o tempo deixou”. Nele, contando “causos” de várias propriedades no entorno, anota queijeiras e queijos. Infelizmente, de acidentalmente, passageira.

“Araticum”, de Calmon Barreto, é um bem apresentado conjunto de histórias, a maioria delas rurais, e verídicas, segundo o prefácio. O palco é o nosso sertão. Sem detença, comenta a feitura do queijo nas fazendas, ou a presença nos embornais, na munição de boca dos boiadeiros.

O importante trabalho de Mário Lara, “Nos confins do Sertão da Farinha Podre”, em documentada exposição arregimenta copiosas descrições sobre a nossa região e mais especificamente sobre a Fazenda São Mateus, em Ibiá. Parabéns! A menos que eu tenha me distraído e deixado escapar citação, nesse seu livro o queijo comparece apenas uma vez, na página 294, onde a cronologia alcança 1880. Nas páginas 65 e 249, cita vários produtos da época (milho, arroz, cana, mandioca, porco e até 20 barris de aguardente) e o queijo Araxá não comparece, certamente porque só veio se fazer mais presente ao final do Império.

Bons escritores se ocuparam da Dona Beja e se empenharam na exaltação ao famoso Grande Hotel e Termas, hoje uma das sete maravilhas de Minas Gerais, mas não fazem justa alusão às delícias da gostosa iguaria.

E foi essa a caminhada pelas páginas dos nossos escritores regionais. Mário Prata, nascido uberabense, foi criado no interior de São Paulo. Afonso Arinos de Melo Franco, paracatuense, entre várias obras, doou-nos “Pelo sertão” e “Os jagunços”, certamente regionais. Considerei-os fora da área perquirida e, na premência do tempo, não foi desta vez que li esses autores, não obstante as muitas referências louvandeiras.

Talvez tenha sido esta a melhor amostragem, suficiente para entender que a produção escrita autóctone, telúrica, mesmo vazada em autêntico regionalismo, não destaca referências sobre o nosso queijo. Não se trata de um “pito” — longe disso. Melhor tomar como provocação nas próximas investidas, tanto dos renomados, da velha guarda, ou da nova geração de escritores. Até lá fica a vaidade diante da possibilidade deste trabalho, Trilhas do Queijo, emplacar o título de mais extenso trabalho específico sobre o tema, em língua portuguesa pelo menos.

Vários desses autores, em especial Mário Palmério e Autran Dourado, citam cachaça e fumo de rolo. Esses dois patrimônios culturais fixam presença tão mais relevante que o queijo em nossa construção e vivência culturais, justificando esse maior chamamento nos romances? Uma boa caninha e um cigarro de palha ensejam mais inspiração literária? Eles propiciam melhores estratégias simbólicas, induzem mais facilmente a ficção? Apontam melhores possibilidades estéticas? Parece que sim, a julgar, inclusive, pelas dezenas de sinônimos criados na referência à “cajibrina” e a profusão de nomes, aos milhares, na criatividade dos rótulos das garrafas. Alguns textos citam o truco, jogo de cartas tão bem encaixado à índole alterosa, na desconfiança, na conversa mole, cumprida, matreira, sempre assuntando muito, “mode” se expor ao mínimo.

Sentados na varanda da fazenda, puxando pito, dois vizinhos olhavam tudo em volta. De repente passa um boi voando. Troca de olhares, sem comentários. Mais um pouco, outro boi, voando na mesma direção e depois outro, talvez fêmea, acompanhada de um seu rebento.

Mais olhares circunspectos, pigarros, até que um deles comenta: – É cumpadre, parece que a ninhada deles é naquelas bandas.


Certamente, deve ser mais fácil montar literatura em seu derredor, um rico e imenso espaço de expressões, metáforas, alegorias, estórias e personagens. É solo fértil a ser explorado por um hábil escritor. Tudo bem, mas será o nosso queijo tão simples, a torná-lo impotente na sugestão de enredos ou de participar de alguma trama?

Outros espaços, a música e a culinária.

Em publicações fora da criação literária, nosso personagem não conta com melhor sorte no desempenho de papéis a altura de seu curriculum.

O “Lugar de memória” editado pela Fundação Calmon Barreto, apresenta 61 resumos biográficos, entre os ilustres cidadãos araxaenses, 10 estão ligados ao meio rural. Não citam a produção do queijo em meio à criação de gado, empreendedorismo, pioneirismos etc. Da mesma instituição há um interessante registro de 48 páginas sobre tradição rural, detalhando dezesseis propriedades antigas. Em quatro delas aparece rapidamente a produção de queijo. Bem pouco. Um desconto: os registros cuidam mais dos aspectos arquitetônicos das sedes das fazendas.

Por seu turno, os encartes especializados em turismo raramente dedicam espaço ao queijo. Por exemplo, o Guia anexo à edição de 11 e 12 de dezembro de 2010 do jornal “O Tempo” é dedicado às “Belezas que só Minas tem”. Inclui comidas típicas e artesanato, mas o “redondo” aparece só de relance, acanhado, reduzido a um vocábulo somente.

Em nosso cancioneiro popular menos ainda. Muitas letras da MPB sorvem a “marvada” ou puxam baforadas, mas exaltando o queijo não foram encontradas referências. Tratou-se de uma rápida pesquisa, podem existir ocorrências, mas aquém daquelas duas citadas forças da mineiridade.

Parece que essa insuficiência não se dá somente no queijo. Frieiro cita Dante Costa, onde nossa literatura, de uma maneira geral, “é pobre de descrições de grandes pratos, ou de almoços e de festas de mesas”, confirmando o que ele considera como “indiferença anímica dos brasileiros pela alimentação”. [3] Mesmo entre autores naturalistas, são raras as referências porque é rara a presença na vida mediana do povo.

Nas estantes especializadas em culinária, a propósito bastante profícuas e concorridas, a regra geral é aproximadamente a mesma.

O livro “Terra de Minas” detalha dezenas de receitas. O queijo comparece acessoriamente em cinco delas, duas especificando que seja mineiro e três recomendando outras procedências. É suficiente? Seguramente não, se considerarmos o título dado ao trabalho. E mais: se Cointreau ocupa espaço… Textos bem escritos, falam da nossa cultura, mas sem queijo.

Entre as 100 receitas de petiscos apresentadas no “Comida di Buteco”, doze delas incluem queijo na composição. Contudo a maioria pede catupiry, provolone ou gorgonzola. Somente duas exigem o nosso, de Minas, sem dizer qual é, e apenas uma recomenda o Canastra. Uma miséria. Além disso, os pratos sugeridos são sofisticados, de elaboração complicada, deixando dúvidas se é mesmo tira-gosto e, menos ainda, se há preocupação de garantir identidade nossa, mineira. Em um deles a desanimadora lista de ingredientes quase inviabiliza o preparo. Quem lê desiste de fazer.

O caprichado “100 classic and creative recipes” tenta levar algo do Brasil até às “estranjas”, mas apronta confusão ao tratar do queijo Minas apresentando-o como branco e fresco, e sabor entre ricota, mozarela e feta (grego). E faz concessões, estrangeiro nenhum ponha defeito: o pé de moleque leva mel e xarope de milho, e o pão de queijo é feito na batedeira, com parmesão ou pecorino romano.

Nas aquarelas e óleos de nossos conterrâneos explorando o tema da natureza morta, ao contrário, o queijo se faz mais presente que “mata-bicho” ou “pito”, mas no cenário, não é artista principal.

Arrematando.

Trazendo Gilberto Freyre, nossa “civilização do gado” também assistiu à chegada colonial traçando os contornos do etos regional. A parcela relativa de contribuição africana e indígena é bem menor se comparada ao Nordeste, na Bahia, ou mesmo no Rio. Faz sentido. Não tivemos naquele tempo por aqui as “plantations”, então extensivas em mão de obra. Do pouco que tínhamos, os exploradores dizimaram. Resultado, na religião, nas artes, na cozinha, nas composições étnicas, no ver o mundo é tênue a presença do patrimônio nativo ou afrodescendente por estas bandas. Talvez somente se manifeste mais explicitamente em festejos anuais. (Comentado anteriormente).

E no frigir dos ovos, uma conclusão se extrai de todas estas considerações: a não existência de uma relação clara, encorpada, impregnada, entre o nosso queijo e as manifestações culturais externalizadas no nosso oeste mineiro investigado. Essa constatação nos permite concluir que, a não ser aqui e ali, a produção artesanal do queijo de leite cru encontra-se diluída em meio a outros interesses econômicos. Em São Roque, talvez a única exceção, ele começa a dividir o quarto com os visitantes, ou perder a liderança para eles.

Os citadinos visitados não o têm em conta representativa entre as principais manifestações de regularidade e estabilidade da ordem social. Ele não ocupa espaço relevante na consciência coletiva. O materialismo histórico traz contribuições: se o meu trabalho é alienado, acompanham a escrita as minhas percepções. E o pior é que o mundo vai se nivelando por baixo, não é privilégio ocidental. Tudo isso, afinal, compõe razões suficientes justificando reunião de forças na recuperação de espaços, enquanto herança cultural a ser mantida. E, então, temos pela frente um longo caminho a trilhar até conseguir melhor lugar enquanto representação social identificada e reconhecida.

Talvez este seja o início da história. Vale dizer, as ações rumo à conquista de posição econômica e comercial relevante do queijo artesanal do oeste mineiro, dialeticamente, contribuirão para o fortalecimento da cultura em geral. Sim, porque as pessoas em geral se apresentaram mais como cerceadas por um quadro institucional mais amplo, que não se questiona, do que dispondo de uma competência e de um conhecimento próprios ou de capacidade de crítica sobre a situação vigente. Enxergam o mundo como algo dado, acabado e tendem a rotular como mistério, no misticismo, a razão das coisas que não sabem explicar. Além disso, a maioria entende não ser possível a justiça no mundo dos homens, cada um vê as coisas como sendo desta maneira, fazer o quê, e abandonam, postergam na transcendência, em outra dimensão, futura, o que não conseguem alcançar aqui e agora na Terra.

Diante das perguntas formuladas, a imensa maioria das respostas é simples, acanhada, na assiduidade dos monossilábicos. As raras externalizações discursivas, mais ainda as críticas, denotam, talvez, fraco exercício em reflexão. O questionário pode não ter conseguido incentivar o encompridar das conversas — falha nossa. De qualquer modo, os conteúdos das percepções dos entrevistados nos autorizam a ver as pessoas não se identificando e não se exercitando plenamente como atores do processo. Não são “idiotas sociais”, mas há um longo caminho a trilhar até se conseguir desenvolver plenamente uma consciência mais clarificada da vida para si. Pois então, menos ainda hão de querer e saber conservar vínculos com instituições imateriais, aparentemente menos afeitas ao chão batido das suas jornadas.

Muita coisa ainda precisa e deve ser escrita sobre o queijo de leite cru e sua luta. “A seara é imensa”. São praticamente os mesmos campos de batalha a enfrentar o próprio país até conseguir alçar posição privilegiada em desenvolvimento humano. O futuro dos quatro irmãos, Canastra, Araxá, Salitre e Cerrado, está intimamente atado à maior independência do Brasil na gestão dos seus destinos, apagando seu nome da vergonhosa lista dos campeões mundiais em desigualdade social, mãe e filha cruéis de todas as nossas mazelas, nascente e foz caudalosas de todas as misérias, montante e jusante de todas as injustiças.

Campo com montanhas ao fundo

Descrição gerada automaticamente
Linda vista de altos mais ao norte.
Em hora infeliz, deram o nome de “Horizonte Perdido”.
Talvez aceitável se for referência à ausência do queijo no consciente.

A plenitude da existência do legítimo queijo ao longo do século XXI se relaciona com a possibilidade de projetos próprios da nação, dispensando a vinda de alguém a dizer o que nos convém. A partir daí, livres, autônomos, podemos assumir uma posição social mais afinada com nossa magnífica grandeza, correspondente à nossa população, ao espaço geográfico, à riqueza e à economia. Ocupando posto de destaque no concerto das nações, poderemos, de fato, nos orgulhar da brasilidade, de peito inflado, exibindo ao mundo algo sintonizado com a pujança de nossas belezas naturais.

“Meu amor me breganhô, qui mi importa laça-venha,
mais mió do que vancê eu mandei rachá prá lenha.”


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Capítulo X


NOTÍCIAS

“Com delícias do queijo, Festival “Só no Tira-Gosto” volta a acontecer em Patos de Minas. As inscrições já estão abertas

Após de uma suspensão em 2020 em decorrência da pandemia da Covid-19, o “Festival Só no Tira-Gosto” está de volta este ano ao calendário de eventos de Patos de Minas. Nesta 8ª. Edição, os participantes deverão usar o queijo como ingrediente obrigatório nas receitas. (Patos Hoje, 22/9/2021)”.

Ora viva. Parabéns. Entre centenas e centenas, mais uma ideia luminar. Outra maneira de prestigiar a produção local ao mesmo tempo em que fomenta o turismo regional. O site Brasil.2049 não conseguiu obter a informação garantida, mas, muito provavelmente, o Festival terá lugar também em 2022.

“Queijos artesanais avançam em Minas e terão norma para versão com fungo.

Tradição secular em Minas Gerais amplia, de forma surpreendente, seu espaço na geração de renda e emprego no Estado. A produção do queijo minas artesanal (QMA) promete boas notícias num cenário de dificuldades para a economia, queda na previsão de crescimento do país e mais aperto no orçamento das famílias. Está previsto também para 2022 o regulamento do QMA com fungo branco, variedade promissora da iguaria mineira. (Estado de Minas, 18/3/2022)”.

Além disto, o Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA), prepara portarias para a criação de mais duas regiões de origem controlada do QMA: Diamantina (porta de entrada para o Vale do Jequitinhonha), e Entre Serras (abrangendo Caraça e Serra da Piedade). É um quadro que garante, definitivamente, a presença distinguida, soberana, do nosso tradicional queijo. Ganha também a nossa gastronomia local.


CURIOSIDADES

Produtos artesanais mineiros alcançam nichos em outros segmentos

Uma das considerações angulares do livro “Trilhas do Queijo”, chama a atenção para a importância de explorar espaços peculiares, de elaboração cuidadosa, manual, fugindo da inútil competição com as máquinas, que produzem em massa, a preços vantajosos. Uma dessas especialidades está consolidada na fabricação do queijo artesanal mineiro. E, mais recentemente oferece sofisticação através, principalmente, das fazendas da região de Serras do Ibitipoca e Alagoa.

Pois eis que outras oportunidades estão sendo exploradas aqui nas Alterosas e vão alcançando sucesso. Uma delas é a da produção de azeite. Deste a primeira extração, em 2008, a produção vem crescendo continuamente chegando atualmente a cerca de 50 marcas, muitas delas premiadas, com sabor complexo, de primeira qualidade. O polo produtor se encontra nos entornos da Serra da Mantiqueira: Maria da Fé, Alagoa, Aiuruoca, Delfim Moreira, Cristina e Andradas. Epamig e Embrapa se fazem presentes apoiando o desenvolvimento.


NOTAS

  1. Em fevereiro de 2022 foram consultados os 20 primeiros sites após entrar no Google com a palavra “Araxá”. Entre empresas, companhias de turismo, Prefeituras e Câmaras Municipais, portais de notícias, somente um (o vigésimo) citou o queijo, dedicando três palavras. Entre os sites comparece a Wikipédia, com grande material sobre a cidade, mas não inclui queijo.

  2. SIF: Serviço de Inspeção Federal – órgão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Brasil. Epamig: Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais.

  3. FRIEIRO, Eduardo. Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. São Paulo: USP, 1982.

Posted by Brasil 2049

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