Capítulo V – São Roque x Nova Iorque
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O novo milênio…
e o enfrentamento de cada dia.
O meio rural da parte do oeste mineiro é cenário de trabalho, um ambiente de luta contínua. Somente no cinema ou em fotos vemos as espetaculares propriedades agrícolas, tais como em Iowa ou Quebec. Nada a ver com o nosso canto. A singeleza das construções e o estado de conservação das instalações e equipamentos revela dinheiro contado. Um produtor comentou que, feito o pedido, espera quarenta e cinco dias até receber a ração, mas a liquidação da fatura tem prazo de um mês. Quer dizer, ele financia a indústria rica. E desabafa: “Eu passo apertado”. No campo, a dádiva, o maná, passam longe.
Outra conta. Se a patroa de um pequeno produtor consegue prensar dez peças por dia, e quiser vender o legítimo, maturado, precisa ver diariamente nas prateleiras, “dormindo”, dia após dia, cerca de meio milheiro de peças. Ao preço de venda da unidade na ordem de quarenta reais, comporia um imobilizado de vinte mil reais. É um montante inviável para a maioria. Esperneia, mas não arrebanha, espicha e enverga, mas não consegue amealhar. Entre os antigos era a prática, “causa de que” o impunham as restrições de escoamento. Então talvez esteja faltando capital ao artesão de hoje. Financiamento de estoque inicial de trinta dias e dar a partida ao processo de venda maturada. Não sendo desta maneira ele se submete ao depósito na cidade do intermediário.
Mais entraves: no Brasil, quem empreende e emprega é penalizado. Vem lá o Leviatã, intrépido, famélico, gastrólatra voluptuoso e poreja imposto por todas as glândulas, baba taxas a não mais poder e ainda atola o infeliz em uma papelada sem fim de guias, alvarás, licenciamentos, declarações, recolhimentos, direitos trabalhistas (parecer social), um suplício.
A mecanização, mais barata, pode ter aliviado alguma coisa — não fica doente, não move ação na Justiça. No polo oposto atrai as limalhas cortantes do desemprego.
O convênio com produtores franceses (citado anteriormente) vem colaborando nas pesquisas e na organização. É mais um esforço de atualização e sustento da produção artesanal. Em uma das reuniões na capital mineira, a discussão corria sobre a importância da pasteurização. A turma da indústria dizendo, o leite cru é uma bomba, nocivo, traz problemas gastrointestinais, um perigo permanente, supondo limitação de conhecimento da plateia. Um técnico da equipe gaulesa, calado lá no canto, ouvia. Os produtores refutavam: “servimo-nos dele, bota tempo, e estamos aqui vivinhos, nunca tivemos problemas”. Na réplica, os burocratas acenavam com o mundo moderno, de limpeza, controle sanitário, higiene, inútil querer nadar contra a corrente. Nesse momento, o monsieur pediu aparte, levantou-se e, sorrindo, explicitou sua estranheza. Vocês têm aqui, de graça no queijo, o que lá na França pagamos buscando melhora de características.
Ato contínuo, abrindo de vez o jogo, o pessoal que fala “oui” comentou que lá “no France” estão montadas trincheiras tentando deter o avanço “inimigo”, protegendo a cultura e a tecnologia artesanal contra o projeto da globalização, essa que junta todos em uma cidadania única, amorfa, sem identidade. E nós por aqui? Quem nos acode? A melhor estratégia está na união de esforços visando manter o espaço dos nossos queijos. Neste compasso, os produtores começaram a se ver atores — “consciência para si” — a se entender como peças importantes, mesmo em meio às trocas globais. Essa percepção emprestou alento na crítica à legislação, lá no nascedouro. É a sociedade no encalço do Estado, forçando-o a regulamentar após ouvir também o embargado e altissonante ulular das vozes do trabalho e não somente os sussurros insidiosos do capital.
Virando o jogo.
Em junho de 2008 o modo mineiro artesanal de processar o leite cru passou a ocupar um lugar honroso na seleta lista oficial de bens culturais de natureza imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), do Ministério da Cultura. Viva. Nosso queijo engalanou-se e passou a desfilar ao lado de importantes referências nacionais, tais como o samba do Rio de Janeiro, o Círio de Nazaré, a Feira de Caruaru e demais pesos-pesados da nossa brasilidade. Ora viva.
No final de 2011 mais dois bons ventos sopraram. O MAPA, através da Instrução Normativa nº 57, de 15 de dezembro, liberou a produção e a comercialização, obedecidas determinadas condições. Nosso protagonista não figuraria nas páginas policiais e seriam abertas outras perspectivas, incluindo entrada no mercado internacional. E o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), estabeleceu indicação geográfica para Piumhi, Vargem Bonita, São Roque de Minas, Medeiros, Bambuí, Tapiraí e Delfinópolis como reserva da produção do legítimo Canastra.
Esses ganhos deram novo empuxo. Oficializada a atividade, abriram-se novas investidas. A competência técnica da Emater e a experiência em gestão empresarial do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) vieram ao encontro da necessidade de adequações e de movimentos.
Vários artesãos se engajaram nos preceitos de produção, incorporando mais escrúpulo e aplicando espetacular “upgrade”, nas instalações e nos processos de produção. E alcançaram condição de vender o seu queijo diferenciado, legítimo. Ao “pedigree” de longa data, ajuntaram o selo oficial de cadastramento no IMA.
Quem põe a mão na massa (literalmente), tradicionalmente é a esposa do proprietário. Passou a se paramentar, com botas e aventais plásticos brancos e touca. Ninguém mais entra na queijeira. O leite chega até ao interior do cômodo através de acesso externo.
O curral da ordenha foi cimentado e se abrasileirou no banho diário [1]. Os aparelhos de ordenha passaram a ser higienizados após o uso. Tudo limpo, sem cheiro. O novo processo de produção envolveu mais água potável. Foram instaladas captações de fonte própria, incluindo tratamento. Nos trinques. Esses outros espaços também são de acesso restrito, com pouco trânsito de pessoas, em favor da higiene do local.
O “quartim” fez plástica. Atendendo à legislação, ele foi ampliado compondo os três ambientes exigidos. Mesas, formas, prateleiras, tudo novo, paredes azulejadas (em uma queijeira o cuidadoso proprietário mandou o teto). As janelas receberam tela fina impedindo entrada de insetos. Encerrada a produção do dia, o piso é lavado com água.
Nos lugares onde estive, chegando sozinho, sem agendar, sem aviso, pedindo “’censa” ali, na hora, encontrei obediência a essas condições e preceitos descritos, atendidos espontaneamente. Para estes, era mesmo página virada o tempo antigo de improvisação de recursos. Ora pois, se “em antes” não ocorriam problemas de doença, menos ainda agora.
Mais artesãos, percebendo a importância, aderiram aos novos tempos, enquadram-se nos novos regulamentos. E o número de cadastrados vem crescendo continuamente.
Antônio Costa comenta: “o propósito de disseminar as melhores práticas é lúcido e generoso. Mas a pretensão de fazê-lo mecanicamente é, além de reducionista, mesquinha. Mesquinha porque tolhe a iniciativa e a criatividade das bases e, por isso mesmo, nega-lhes oportunidades reais de empoderamento”. A contar pela nova queijeira, asséptica, azulejada, e a indumentária (roupa, avental, touca e máscara) toda alva, imaculada, trazidas pelas novas regras, a feitura do queijo artesanal aproxima-se dos procedimentos de higiene de instalações mecanizadas. “Parece mais um hospital”, no dizer de uma mulher encarregada da prensagem manual diária do produto. Talvez o autor incorra em excesso de zelo. Todas essas providências se apequenam diante da preservação de todo o processo manual, circunscrito ao mundo da propriedade. O cerne encontra-se preservado. O leite cru, os procedimentos naturais e, principalmente, a mão, símbolo da dedicação, da singularidade, continuam. Pular da cama de madrugada, tantos afazeres. Amém. Importa é a preservação das origens, a artesania, a irradiação das condições específicas de produção, do solo único, do telúrico. A bola de futebol atual é pura tecnologia, mas a “ginga” sobrevive.
Percorrendo as diversas fazendas fui provando in loco cada queijo produzido. Cheguei a experimentar quatro ou cinco tipos num mesmo dia, prestando atenção e podendo cotejar os sabores, guardados na memória em curto espaço de tempo. Neste aprendizado pude constatar a existência, de fato, de muitas diferenças, algumas sutis, outras mais perceptíveis. Ou seja, apesar de todas as alterações, não obstante as exigências padronizadoras, o jeito artesanal de fazer preserva o seu berço, remonta ao passado, é o retrato do gado e do capim e, também, guarda bom espaço de realização pessoal, cada um dos artesãos.
Tomados aleatoriamente dois queijos, mesmo vizinhos geograficamente, eles se distinguem. Oriundos do pasto exclusivo e do cuidado próprio, as especificidades de cada um estão presentes, nas diferenças de textura e cor, cheiro e sabor. Em comum dispõem de legitimidade, de identidade e, em vários casos, pleno atendimento aos mais exigentes paladares.
E, ainda, ao contrário do que se podia esperar dessa ponta de padronização, encontra-se criatividade. No design dos rótulos certificados, nos folderes de apresentação etc. Alguns produtores diferenciados, de São Roque e de Medeiros, passaram a oferecer caixinha de madeira (“de bom parecer”). Acondiciona e ressalta a excelência dos seus esforços. Curiosas, atraentes, servem também como um recipiente de proteção.
E eis, pois que, a partir desse tempo bons horizontes passaram a ser divisados. Mas, também com problemas sérios aguardando solução. É imperioso estender a todo o Pindorama a legalidade do nosso “partido”. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) é visto como órgão mais conservador. Na sua lógica, as coisas tendem a continuar como estão por mais tempo (que me perdoem os funcionários, ouvi dizer, estou vendendo pelo preço de custo). [3] Uma estratégia seria mexer os pauzinhos políticos e de tal maneira que o Ministério de Desenvolvimento Agrícola (MDA) pegue o bastão, com equipe mais jovem, dizem, mais identificada com a fixação do homem no campo, com uma visão social do problema. Essa transferência de encargo é possível, pois a fronteira de atuação entre os dois é difusa.
Por que dois órgãos se ocupam de afazeres aparentemente iguais? É razoável aceitar que, com o aumento da complexidade da gestão da coisa pública e demanda de técnicos na regulamentação e acompanhamento das atividades, novos órgãos vão sendo criados. No caso do Brasil, mais cartões corporativos independentes de alto nível atendem à necessidade de contentar o bloco aliado. Tiremos proveito dessa composição política. Segundo Stiglitz, não importa tanto o tamanho da estrutura, mas sim o que ela faz em favor do povo.[4] Estamos “viajando na maionese”, a conversa vai-se encompridando. Voltemos ao tema.
João Leite considera: “pelo lado cultural, histórico, tradicional, chegamos à questão da maturação. O que é o queijo Canastra? É o que nasceu e foi armazenado para ser consumido durante a entressafra. Mesmo havendo pessoas que entendem que o queijo tem que ser frescal, sou defensor da ideia de que precisamos voltar às origens. O que acontece do lado gourmet? O queijo advém do leite. Este depende de vários fatores como clima e período, características que se fixam mais, que se sobressaem no queijo curado. A bioquímica e a biologia do queijo são intrínsecas à região onde foi produzido. A flora é específica desta serra. Então, sendo características próprias, vamos registrá-las no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), forçando rumo às mudanças necessárias na legislação. O sabor específico é intrínseco ao lugar. Queijo fresco é quase igual em qualquer parte. A cura é que confere identidade ao queijo, relacionada ao gosto, ao sabor, é a parte mais importante. Não existe outra Serra da Canastra no mundo”.
Os próximos anos, certamente, serão acompanhados pela expansão e pela mudança do perfil de demanda de alimentos. O crescimento da população, reforçado pela urbanização e pela elevação da renda nos emergentes, terão como consequência o aumento da necessidade de pão. Além disso, os anseios por um tempo melhor, mais saudável, o aumento da participação feminina na força de trabalho, a reinvenção das famílias e a homogeneização dos padrões de compra decorrentes da globalização e da difusão de produtos regionais levarão a mudanças nos hábitos e nas necessidades de munição de boca. O contexto mundial deve incentivar o crescimento do setor mesmo no compasso do avanço do processo de industrialização. Ou seja, enquanto grande fortuna é amealhada pelo capital, que se eleve também a renda familiar rural. Além de tudo isso, o cliente vai sofisticando suas exigências, se interessando também em rastreabilidade, bem-estar animal e sustentabilidade ambiental. A agropecuária continuará desempenhando relevante papel no crescimento econômico brasileiro, tanto nessa pressão pelo aumento da produção, mas também no fechamento do balanço das contas externas. [5]
Quem sabe um dia nosso bom queijo poderá começar a falar inglês, ser trocado por “verdinhos” e adquirir notoriedade além?
O turismo puxa a demanda com nova força, e melhor, incrementando o varejo direto, na porta da queijeira. O produtor recebe pessoas com interesse e atenção. Ele sabe da disposição de pagar um pouco mais pela garantia da procedência. O visitante, por sua vez, areja a mente nas vantagens da visita, desfruta o ambiente, percebe e “assunta” todo o ambiente, a vida. Os filhos, caso estejam acompanhando, viverão experiência única. Que se amplie cada vez mais ainda essa relação. Ao artesão, a remuneração completa, limpinha, pelo seu produto, sem intermediação. Esse homem tende a permanecer no campo.
Outro novo entrante, pouco a pouco, tomando corpo, delineia vultos sobre nossos horizontes. Os tempos são de sinalização a favor da diversificação de geração de energia. No Brasil, o agronegócio se apresenta como alvissareiro, vantajoso, enquanto produção de biocombustível em favor do perfil sustentável da matriz energética. Além disso, a atividade apoiaria a fixação do homem no campo ao abrir possibilidades de cogeração rural e mais renda ao produtor. Contudo, melhor seria se resultasse em outra ordenação na apropriação dos resultados, em favor do pequeno ruralista, “agarantindo” fixação no campo. Tudo isto comporia um “círculo vicioso” benfazejo de crescimento e prosperidade reais. Porém, tem acontecido ao contrário em outros locais. A mão oficial com jeito mamulengo, segue determinação alienígena, sob o comando dos fortes lobbies do capital, nesse caso a riqueza gerada será apropriada por poucos.
A agroenergia precisa, ou deve, favorecer o homem rural. Mas ela pode, contado um tempo, converter-se em atividade de escala maior e ser abocanhada por poucos atores de vulto, restando ao pequeno produtor o papel de simples fornecedor de matéria-prima. Mais uma vez. Por isso, as associações, a luta e o protesto de todos devem manter significativa influência política na cadeia de produção. A maior parte das benesses não seja levada pelos principais players.
Cada litro de álcool ou biodiesel produzido em instalações de porte significa centavos de dólar a menos nas mãos do produtor rural. A intermediação através de uma distribuidora de combustíveis significa mais dinheiro nos bolsos dos magnatas e mais desigualdade social. Além disso, a produção em larga escala avança sobre espaços do artesanato e “em riba” do seu conteúdo cultural. Quanto mais empreendimentos, automatizados, de capital intensivo, menos desenvolvimento efetivo é possível. Filme visto várias vezes. Em repetição monótona.
De fato. Em uma das referências bibliográficas, se lê o seguinte trecho de um “inflamado discurso” do deputado Alcindo Guanabara: “Há, de fato, um mistério, o mistério da nossa progressiva miséria. Somos um povo que trabalha, um povo que produz, que tem, por assim dizer, o monopólio virtual de dois gêneros indispensáveis e não vemos o fruto de nosso trabalho, não usufruímos da nossa produção, somos cada vez mais pobres”. Foi proferido em 1895. (Não está errada a grafia, é século XIX mesmo). A história é antiga. Nosso suor é derramado em favor de terceiros. E a desigualdade continua grassando.
Em uma das entrevistas pelas cidades da região escolhida, conversei com um comerciante de Carmo do Paranaíba. Disse-me ele: “O produtor rural, recebendo o pagamento do leite ou do queijo, vem aqui na minha loja e leva um chapéu, uma camisa, um pano. Os capitães empresários compram é em Nova York ou Paris”. Provavelmente esse pequeno lojista não tem pós-doutorado em Economia em Harvard, mas, seguramente: ele não é um “idiota social”.
Vários autores comentaram sobre esse avanço da produção da agricultura segundo modelo baseado em alta tecnologia, as plantations modernas, pioradas porque mecanizadas, dispensam mão de obra. Na cabeça do homem comum, ainda que intuitivamente, mais presente o território se faz quanto mais significar construção social, quanto mais o ensejar as práticas de grupo e a defesa dos seus valores. Uma usina de açúcar reduz essas possibilidades. O patrimônio deixa de ter função socioeconômica na sua plenitude. As propriedades perdem a identidade e se juntam em um único e imenso tapete de canoilas, no qual o proprietário só consegue localizar seus limites se munido de GPS.
As democracias vão aprendendo que é necessário conter os excessos do atual sistema de trocas. E ouvindo Saramago, que vê muitas dificuldades na sua operacionalização frente ao forte poder econômico, colocaram rédeas levando a “mais vencedores e menos perdedores”. Milhões de pessoas puderam ascender a melhores condições de vida com os ganhos obtidos. Enquanto isto, no Pindorama, a desigualdade social ainda paira, não como um espectro intangível, uma distante névoa fantasmagórica, mas uma crueldade nacional, bem visível, palpável, objetivamente identificada na reprodução da vida, na existência, de fato. Somos um entre os vinte campeões do mundo nesse torneio de maldade. [6]
À organização social cabe o papel de minimizar os efeitos danosos dessa perversa regra secular. Quanto mais estrutura exibir a sociedade, na participação efetiva de seus membros, melhores são as possibilidades de estancar a derrama, maiores são as chances de fazer brilhar na igreja local o ouro aqui produzido e não nas catedrais de países alhures.
Nos EUA e na Europa, os biocombustíveis são suportados por políticas sob premissas do aquecimento global. Parecer social. As nações mais independentes defendem o seu produtor rural, a sua terra. Ser social. A preservação ambiental, cada vez mais premente, mais necessária, vira discurso para cercear desenvolvimento alhures. Mais “ser social”. Por aqui, seguimos ao sabor do mercado, essa força invisível, superior, contra a qual nada se pode fazer, dizem, “esse princípio tão universal quanto à ideia de Deus”. Se a história for servida requentada, virá mais concentração da riqueza e aguçamento da desigualdade social. As cidades pequenas continuarão remoendo suas dificuldades, beirando a penúria, enquanto as imensas “Shangais” resplandecerão reluzentes.
E mais: os biocombustíveis, entendidos como commodities, por si só não necessariamente catalisarão efetivo desenvolvimento no meio rural. Resultados mais eficientes serão alcançados na agregação de valor, por exemplo, usando a bioenergia local em mecanização de atividades internas, na geração de eletricidade doméstica, no transporte interno, no acionamento de bombas de irrigação e outras aplicações e/ou venda direta ao sistema nacional. Será bem-vinda qualquer alternativa cujo resultado signifique ganho dos produtores, minimizando o atravessador no processo produtivo. Garanta-se a entrada do pequeno ruralista cerceando a produção de larga escala centralizadora, característica da produção do álcool.
O problema do crédito existe, mas pode ser resolvido, basta a tal da vontade política abandonar o sorriso preferencial. Quando é solicitado pelos poderosos vira disposição determinada, em prazo curto, bem atendido. Quando é a vez do pequeno, é um vamos ver, quem sabe, há dificuldades regimentais a transpor.
Importa é a regulamentação protegendo o mais fraco e não seja ele esmagado nesta luta entre titãs. “Os burros brigam e os barris se quebram”, diz um antigo e afortunado provérbio italiano. A injustiça tem início na própria definição da pauta das reuniões. A iniquidade continua na elaboração da lista dos participantes. Em boa hora, se não tardiamente, se exige mais transparência, “reconhecida como um dos antídotos mais poderosos contra a corrupção”. Como diz a expressão “o melhor antisséptico é a luz do sol”. Apoiando em Habermas, a ação somente consegue se comunicar com o fim colimado se expurgado todo intento estratégico enquanto pretensão de poder. Ela será tanto mais democrática quanto mais se despir da necessidade de exercer influência, quanto menos significar disputa de cargos, corrupção rejeitada na garupa. Finalmente, citando Pedro Demo, o Estado não se pode dar ao luxo de duas coisas pelo menos: uma é praticar o abuso privado de espaços públicos por não sentir o peso do controle democrático; outra é juntar forças com as potências na imbecilização da população, ao manter a educação como eterna prioridade no fundamento da dinâmica da miséria.
O Brasil, guardando condições climáticas e disponibilidade de recursos naturais favoráveis em sua extensão territorial, detém potencial de expansão da produção agrícola. Em contrapartida, o aumento do nível educacional, especialmente nas áreas rurais, rediscute a disponibilidade de mão de obra na agricultura, se botar mais lenha na fogueira do êxodo rural. Visto desta maneira, a agroenergia representaria oportunidade e ameaça. Felizmente, cresce a consciência e a atuação da sociedade civil, de olho no uso do solo e desenvolvendo o ambientalismo. Em ajustada ressonância, cuida-se cada vez mais da educação ambiental e aprimoram-se os diplomas reguladores da atividade humana, condicionando-a ao uso adequado dos recursos naturais, sustentabilidade à frente.
A administração dos recursos e dos subsídios deve observar o percentual que, efetivamente, chega às mãos do produtor rural, qual a parte das benesses apoia e ameniza a dura vida no campo, transformando em algo palpável. É preciso, impedir desvios no meio do caminho, otimizar os esquemas de distribuição, conferir ao produtor melhores condições de barganha.
Queijo e biocombustíveis. Entre utopias e sonhos, permeando vontades e feitos, as cooperativas desempenham papel fulcral no processo de desenvolvimento. São movimentos sociais portadores de futuro. O cooperativismo fomenta mudanças, no estabelecimento de novas relações entre o capital e o trabalho, e na apropriação dos favores da produção, sob o império benfazejo de propostas comunitárias. Conceitualmente atadas ao desenvolvimento, conferem mais vigor e maior independência dos grupos sociais. São mais mãos abrindo as portas de acesso a todas as bênçãos da democracia, renovada a cada raiar de aurora. Adaptando Ernest Renan, a cooperativa é plebiscito de cada dia. É o templo do exercício do protagonismo de todos e da manifestação dos interesses de cada um. A prática do associativismo nutre um processo permanente de desenvolvimento de autopromoção, em cumplicidade com o individual e o coletivo, conquistando, incansavelmente, no cuidado de cada dia, a crítica de toda hora e a participação. Por ele, alcança-se melhor crescimento econômico baseado em compromisso social. Como corolário inevitável da sua presença, a autopromoção dispensa, de uma vez por todas, “as ajudas ao desenvolvimento”, as campanhas de assistência, a tutela, a caridade pública, a “coisa de pobre para pobre”.
As cidades do interior sob análise vão conhecendo esse mecanismo de proteção da riqueza gerada. São Roque de Minas, recentemente, concretizou essa vantagem. Homens e mulheres uniram esforços e gravaram história. Araram terreno fértil do desenvolvimento material e social. Semearam e a expectativa é de que colham bons frutos, tanto econômicos quanto de espírito comunitário.
Os interessados não podem deixar de ler o apaixonante livro de André Carvalho e João Leite sob o título “A cidade morria devagar: o romance de uma cooperativa”.[7] Em escrita atraente, convidativa (difícil interromper a leitura), os autores narram o esforço da população de São Roque em geral e em especial de um punhado de determinados rumo à conquista do objetivo de montar uma instituição de apoio ao produtor rural. Discorrem com cuidado, carinho e propriedade todas as idas e vindas da cronologia do processo de criação, os enfrentamentos das muitas dificuldades e também emblemáticos exemplos de cidadania. Uma luta. É a saga de gente destemida, “teimosa”, “um bando de loucos”, irmanados em torno da criação de uma instituição financeira em uma cidade falida, ávidos em reverter a aflita situação de um município à venda. Uma frente de mãos dadas pela “estrada do porvir”, peitando enormes barreiras, das intempéries naturais, das estradas precárias quase inviabilizando visitas e encontros, das dificuldades de comunicação, tudo sob o olhar vigilante das corporações do ramo, interessadas no fracasso da iniciativa. Um esforço hercúleo, um exemplo. O Brasil precisa menos de “vamos esperar amanhã”, de reuniões, de articulações, e mais gente indignada, possessa.
Outras localidades empreenderam esforços semelhantes e continuam ativando a capacidade de participação, de discussão dos problemas, de zelo pelos seus destinos. O Dr. José Pessoa vê a Cooperativa Agrícola de Cotia como “plasmador” de uma nova revolução cultural e agrícola” na região de São Gotardo, condição persistente até os dias de hoje com a Cooperativa Agropecuária do Alto Paranaíba (Coopadap). Contudo, parece, a participação comunitária ali pode ter sido abalada pelos interesses de olhos puxados. Corrija-se o título do presente capítulo: versus também Tóquio, Pequim, Paris, Berlim… É muita luta.
A Emater também tem desempenhado função da maior relevância. Acode tecnicamente na certificação, orienta os programas de melhoria e se faz presente no acompanhamento operacional da produção. Trata das relações institucionais estabelecendo convênios e intercâmbios, apoiando e patrocinando encontros, treinamentos, seminários, exposições, festivais e concursos, locais e regionais, com júri e premiação. Em parceria com as associações, promove feiras, inclusive no exterior mais recentemente.
O Centro de Qualidade de Medeiros é outro resultado de meritório trabalho desse tipo, um marco histórico na produção do queijo artesanal da região, importante propulsionador do desenvolvimento local. Ele favorece a lucratividade, aperfeiçoa a cadeia de distribuição e garante a procedência junto ao consumidor final. Mais uma profícua união de esforços de cidadãos, com apoio, da Emater e de organizações locais.
Prefeituras, empresas, instituições e a população em geral devem somar. São incontáveis as alternativas de participação. Desde incentivos fiscais até marketing em vitrines, doações de brindes etc. É só deitar disposição. Muitas ideias não faltarão.
As escolas públicas têm nas mãos uma poderosa arma: a conscientização. Uma iniciativa trouxe-nos quase uma centena de poesias sobre o queijo. Maravilha. Os benefícios serão colhidos ao longo de toda a vida.
No Instituto Ellos de Educação, da Cooperativa Educacional de São Roque, iniciativa da Saromcredi, a infância e juventude locais recebem ensino da melhor qualidade. A didática privilegia o fomento ao empreendedorismo, a prática dos preceitos de ética e de cidadania, e estreito fortalecimento das conexões com as coisas da terra.
Conheci esta instituição. Em uma sala vi que algo poderoso estava acontecendo. A professora de sociologia discutia com os alunos de 16 anos os conceitos de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, propostos por Durkheim (a adesão à sociedade pelas semelhanças e pelas diferenças, respectivamente). Adiantando-se ao ensino superior, a educadora alçava aqueles jovens a vantagens de conhecimento. Uma maravilha! À mestra, parabéns, com afeição.
É um canto separado, já dissemos, mas de gente esperta, pega as “ciências” assim oh, com facilidade. Desassombrados, todos se interessam por tudo e logo alcançam apurado conhecimento, bons autodidatas, sem passar por faculdade, ou dificuldade.
– Que se “assucedeu”? perguntou Delfino aos dois homens sentados na beira da estrada, junto ao caminhãozinho, carregado de queijo.
(De onde apareceu esse caipira? explicar para ele, vai lá entender que tentando sair da vala o empuxo foi muito forte e a coroa do diferencial quebrou, já tinha constatado isto ao abrir a caixa).
– Tem problema não gente. Vamos prá minha casa logo ali embaixo, junto ao córrego. Tenho um bom pedaço de braúna, eu faço outra.
Encurtando “causo”. Incrédulos, mas sem outro recurso passaram três dias na humilde casa do retireiro, assistindo à “fabricação” da nova peça. Medidas certas, riscando a partir dos pedaços, entalhe dos dentes com paciência mineira e têmpera final, colocando sob o sol após molhar com urina de jaratataca. Três vezes.
Colocaram a nova coroa no lugar, para espanto dos dois citadinos, pois que ela se ajustou como uma luva. Após muitos agradecimentos entraram no caminhão, foi dada a partida no motor, com todo o cuidado do mundo, após engatar marcha soltaram a embreagem lentamente. Ora pois, nova admiração: o veículo respondeu e iniciou o deslizamento sobre o cascalho fino.
Passada uma boa meia hora de muita cautela, pouco a pouco, o motorista foi ganhando confiança e botava mais fé no milagre. Chegando na cidade, com oficina à vista, resmungou: – Agora quero ver sua danada. Enfiou a roda traseira em grande buraco da rua, engatou primeira, acelerou e soltou a embreagem de uma vez.
O ruído esquisito de atrito infernal foi ouvido a quarteirões de distância dali. Na oficina, o mecânico abriu a caixa e diagnosticou. Vai ter que trocar o pinhão, virou farelo.
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Caro(a) leitor(a)
Notícias
“É oficial. Mundial do queijo do Brasil 2022 será em São Paulo.
De 15 a 18 de setembro de 2022, está confirmado o 2º Mundial do Queijo do Brasil, na capital paulista. O evento, em sua segunda edição, promete animar o cenário do queijo artesanal e autoral, cada dia mais queridinho do público brasileiro, com feira de produtores, concursos e programa técnico no mais novo teatro de São Paulo, o B32, uma construção moderna na avenida Faria Lima, inaugurada em plena pandemia.
O Mundial é realizado pela associação SerTãoBras em parceria com a Guilde Internationale des Fromagers. A primeira edição ocorreu em Araxá em 2019, atraiu 32 mil pessoas e uma comitiva de 18 membros da Guilde da França, Austrália, Itália e Japão. Foram julgados mais de 900 queijos. (Portal do Queijo, 16/2/2022).”
Ver detalhes e outras notícias em Arquivos Notícias – Portal do Queijo
“Reconhecimento: Queijo Minas Artesanal ganha selo Postal com forma de valorizar sua história e tradição.
O Queijo Minas Artesanal foi uma das oito iguarias que ganharam destaque na coleção de selos especiais Queijos do Brasil, lançada pelos Correios em parceria com o Sebrae. “Uma homenagem merecida aos produtores mineiros que se dedicam em fazer um queijo que se destaca pelo sabor e qualidade, e que mesmo diante das dificuldades trabalham muito para consolidar a identidade do Queijo Minas Artesanal no mercado”, justifica o analista da Unidade de Agronegócios do Sebrae Minas, Ricardo Boscaro. Café com Notícias 26/8/2021.”
A notícia acima destaca as dificuldades, várias vezes apontadas neste nosso livro, “Trilhas do Queijo de Leite Cru”.
NOTAS
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José Menezes vê mais. Para ele, “o curral de ordenha e a queijaria são espaços de tranquilidade e não de convivência e sociabilidade. Aí exige-se serenidade e parcimônia, higiene e pouco trânsito de pessoas. As vacas escondem o leite e o queijo incha se eles não forem ambientes saudáveis. Todos os cuidados aí são responsabilidades do vaqueiro e do queijeiro, e cobrados ou divididos com o proprietário da fazenda, quando este está presente na propriedade”. ↑
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No final do livro está listada parte da legislação, incluindo os preceitos de criação de gado, cuidados na elaboração do queijo, entre outros. ↑
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Em 2011, através da Instrução Normativa nº 57, o MAPA liberou a produção e a comercialização em determinadas condições. Novos ventos. ↑
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STIGLITZ, Joseph E. Globalização: como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. ↑
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Este parágrafo é da versão original, portanto, escrito em 2011. Avaliação de cenário bem conduzida. Somente acrescentaria agora, nesta edição de 2022, que a sofisticação citada envolve outra característica, não indicada na época e que será tratada mais adiante. ↑
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Encontra-se dificuldade em encontrar na Internet valores atuais do Índice de Gini a partir de 2015. O site https://www.statista.com/forecasts/1171540/gini-index-by-country informa que, em 2020, o Brasil é o sexto pior do mundo em desigualdade em um total de 124 países. ↑
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CARVALHO, André; LEITE, João. A cidade morria devagar: o romance de uma cooperativa. Belo Horizonte: Armazém das Ideias, 2004. ↑